Comunidade Quilombola Contente tem terras e vidas destruídas com construção da ferrovia Transnordestina

UF: PI

Município Atingido: Paulistana (PI)

População: Quilombolas

Atividades Geradoras do Conflito: Hidrovias, rodovias, ferrovias, complexos/terminais portuários e aeroportos, Mineração, garimpo e siderurgia, Monoculturas

Impactos Socioambientais: Alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território, Assoreamento de recurso hídrico

Danos à Saúde: Acidentes, Insegurança alimentar, Piora na qualidade de vida

Síntese

A comunidade quilombola de Contente está localizada na zona rural do município de Paulistana, no sudoeste do Piauí. É um território quilombola reconhecido pela Fundação Cultural Palmares (FCP) como área de remanescentes de quilombo desde 2010.

Em 2023, as terras da comunidade foram reconhecidas e declaradas como terras da Comunidade Remanescente de Quilombo Contente por meio da Portaria Nº 104, de 29 de maio de 2023, publicada no Diário Oficial da União (DOU) de 6 de junho de 2023 pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)

De acordo com pesquisa de Patrícia Ferreira e Lincoln de Souza (2017), os moradores de Contente estão desde 2009 em conflito com a empresa Transnordestina Logística S. A (TLSA) devido às obras de implantação da Nova Ferrovia Transnordestina, que atravessa suas terras. As famílias tiveram sua ocupação tradicional do território alterada, e os caminhos percorridos historicamente pelos moradores foram modificados pelos trilhos e cercas.

Eles foram separados fisicamente do açude, que é a principal fonte de água da comunidade, tendo que caminhar longas distâncias para alcançá-lo. Em 2013, a ferrovia passa a ser denominada Ferrovia Transnordestina Logística (FTL).

De acordo com a Controladoria Geral da União (CGU), a Ferrovia Transnordestina Logística (FTL) pretende ligar o sertão do Piauí, partindo do município de Eliseu Martins, aos Complexos Portuários de Pecém, no Ceará, e Suape, em Pernambuco.

O projeto prevê a construção de 1.728 km de ferrovias cortando cerca de 80 cidades nos três estados. O empreendimento foi entregue por concessão de 30 anos à empresa Transnordestina Logística S.A, que, por sua vez, terceirizou as obras à empreiteira Odebrecht.

De acordo com o Blog do Carlos Brito (2013), embora seja hoje uma parceria público-privada, a Transnordestina nasceu como um projeto para ser executado pelo governo federal. Foi desenhada para escoar a produção de novas fronteiras agrícolas da região e incentivar investimentos no semiárido, como exploração de ferro e gesso, interligados aos novos portos de calado profundo que podem receber navios de grande porte.

Além disso, de acordo com a dissertação de Patrícia Ferreira (2018), o processo de desapropriação das terras para a instalação do empreendimento, sob responsabilidade do governo estadual, não pagou as indenizações devidas. Muitos foram os casos em que apenas R$5,00 por hectare foram oferecidos às famílias como indenização por suas casas e terras.

O valor inicial do projeto, em 2007, era de R$ 5,4 bilhões. Em agosto de 2013, com muitos atrasos nos prazos inicialmente estabelecidos, os gastos atingiram R$ 8 bilhões, e as obras não chegaram nem à metade do cronograma de obras previstos até ali. A maior parte dos investimentos para a construção é oriunda de recursos públicos.

Embora o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) tenha reconhecido o território por meio de portaria publicada no Diário Oficial da União (DOU) de 6 de junho de 2023, a concretização da titulação territorial ainda tem um longo caminho a ser percorrido, e a comunidade continua a lidar com a inviabilização material e imaterial do modo de vida quilombola.

A Transnordestina, enquanto isso, atua por meio de diversos constrangimentos e práticas jurídicas social e ambientalmente racistas, conforme denuncia Rogério Portela Gomes (2018).

 

Contexto Ampliado

O caso aqui descrito diz respeito aos conflitos e injustiças ambientais gerados a partir das obras de implantação da Ferrovia Nova Transnordestina sobre a comunidade quilombola de Contente, localizada no município de Paulistana, Piauí. As obras estão inseridas no trecho entre Eliseu Martins (PI) e Trindade (PE) da ferrovia, que atravessa boa parte do estado do Piauí, com obras em 21 municípios.

Em Pernambuco, a obra cortará sete municípios. O município de Paulistana está localizado no sudeste do estado e, segundo dados do Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), possui população de 21.055 pessoas, com 53,9% vivendo em áreas urbanas. A cidade possui um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) baixo, de 0,605.

De acordo com levantamento de comunidades quilombolas realizado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), Paulistana abriga as comunidades quilombolas reconhecidas e em processo de reconhecimento pela Fundação Cultural Palmares (FCP): Angical, Angical de Baixo, Angical Paulista, Barro Vermelho, Carico, Chapada, Chupeiro, Contente, Extrema e São Martins.

De acordo com o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (Rtid), de 2018, a comunidade de Contente foi formada por meio da negociação de terras entre Elias Mariano, homem alforriado, com seu ex-senhor, o visconde Antônio Coelho. Essa foi a origem de todas as famílias constituídas na área envolta ao território mais amplo onde se insere Contente – que passou a ser delimitado a partir do casamento de Elias e Lediógara (cabocla).

De acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), desde essa união já se passaram sete gerações, cujos laços de pertencimento, descreve o Incra: “são constantemente enaltecidos e marcam as narrativas de seus moradores”.

De acordo com a pesquisa de Lucas Pereira (2020) sobre o conflito socioambiental e os impactos da Transnordestina sobre os quilombos de Barro Vermelho e Contente, Seu Mariano, neto de Elias Mariano, contava que seu avô era vaqueiro e cuidava do gado do senhor de escravos conhecido como visconde Antônio Coelho.

Baseando-se no Rtid do Incra, este relato resgata o momento em que Elias Mariano conhece Lediógara, quando, caminhando pelas terras do visconde,

“(…) deu fé dela (Lediógara), se enamorou e voltou para a fazenda do Visconde, na Baixa Alegre. Chegando lá contou que viu a brancona e que ia casar. O véio Coelho disse para ele escolher o terreno para lá perto dela e construir casinha para eles morar. A brancona disse que queria ele, aceitava casar. Amor que nem fogo de lenha cavou um buraco e botou um pilão, dizendo que ali agora ia se chamar Contente, porque ele tava era contente demais porque a brancona disse que queria ele, mas trabalhou que só cachorro de cego para construir sua família e pagar suas terras perto do umbumzeiro, onde morava o povo dela que era família de caboclo brabo”.

À esquerda, Mariano Rodrigues (já falecido), morador mais antigo do quilombo e descendente de Elias Mariano. Fonte: RTID – Incra/PI.

Portanto, este conflito é um dos muitos oriundos deste megaempreendimento que abrange três estados nordestinos: Ceará, Pernambuco e Piauí. Por uma questão de melhor entendimento, cada caso será apresentado separadamente pelo Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, dada a complexidade das diferentes situações encontradas no trajeto da ferrovia. São comunidades quilombolas, indígenas, agricultores familiares e populações urbanas as impactadas pelo projeto.

Sendo assim, para relatarmos o caso do conflito da comunidade quilombola Contente, cabe explicar como se deu, como um todo, o empreendimento da Nova Ferrovia Transnordestina, para compreendermos como ela afetou especificamente o território em questão.

O projeto original da ferrovia Transnordestina está em pauta no governo federal desde meados da década de 1980, atendendo a orientações do Plano Nacional de Viação, de setembro de 1973. Tinha como meta a interligação dos polos industriais de Fortaleza, Recife, Salvador, São Luís e da Região Sudeste por rotas ferroviárias mais competitivas e a conexão do conjunto à navegação do rio São Francisco.

Segundo o pesquisador Flavio Cavalcanti (2006), do blog Centro-Oeste Brasil, originalmente previa apenas a reconstrução de um trecho ferroviário abandonado de Iaçu a Senhor do Bonfim, na Bahia, e a construção de três novos trechos:

  • De Salgueiro, no oeste do Pernambuco, a Missão Velha, no sul do Ceará;
  • De Salgueiro a Petrolina, no trecho pernambucano do rio São Francisco;
  • De Piquet Carneiro a Crateús, ambos no Ceará, sendo o último próximo à divisa do Piauí.

O Ministério dos Transportes, junto ao Grupo Executivo de Integração da Política de Transportes (Geipot), destinou verba, em fins de 1987, para a realização do projeto de engenharia da Transnordestina, cuja concessão foi adquirida pelo consórcio Consbel-Esteio-Ampla, que tinha prazo previsto de um ano para entrega da obra.

As obras do primeiro trecho tiveram início apenas em 1990 e, por falta de recursos, foram paralisadas em 1992, já no governo de Fernando Collor de Mello (partido da Renovação Nacional –PRN). Segundo Cavalcanti (2006), durante os oito anos do governo de Fernando Henrique Cardoso (Partido da Social Democracia Brasileira –PSDB), as obras não avançaram, mesmo tendo sido incluídas no Plano Avança Brasil (2000-2003).

A malha ferroviária do Nordeste do Brasil, pertencente à Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA), foi privatizada e leiloada em 1998. A concessão para operar foi adquirida, nesta ocasião, pela Companhia Ferroviária do Nordeste (CFN), criada nesse ano, que passou a ser responsável pelos ramais SR1 (Recife), SR11 (Fortaleza) e SR12 (São Luiz), totalizando 4.238 quilômetros de ferrovias em sete dos nove estados nordestinos.

De acordo com a Associação Nacional do Transporte Ferroviário (ANTF), a CFN iniciou a operação dos serviços públicos de transporte ferroviário de cargas em primeiro de janeiro de 1998. Em 1999, a CFN deu início a um projeto de alteração do traçado inicialmente proposto para a Ferrovia Transnordestina, visando incluir um ramal para atender ao polo gesseiro do Araripe/CE. A situação deste polo – associado à monocultura de eucalipto, e os impactos sobre a região da Chapada do Araripe – foi relatada por este Mapa de Conflitos.

O processo de licenciamento ambiental para a Nova Transnordestina teve início em 2003, durante o primeiro mandato presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Naquele ano, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) iniciou os projetos de engenharia, cujos estudos tinham por finalidade a captação de recursos para as obras da ferrovia e as áreas que seriam desapropriadas para a construção da faixa de domínio dela.

Um ano depois, em 2004, foram publicados o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (Rima) do projeto, elaborado pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT).

Empresa de capital aberto, a Transnordestina Logística S.A tem como acionistas a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), com 48,04% do capital; a Infra, com 36,47%; o Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES), com 7,72%; o BNDES Participações (BNDESPar) – 6,13%; e a Agência Especial de Financiamento Industrial (Finame), com 1,64%, segundo dados da CSN (2023).

Inserido, com destaque, no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal em 2007, o projeto da Nova Transnordestina em nada se assemelha ao original.

A Nova Transnordestina, segundo a TLSA, passou a ter o propósito de ligar os estados do Ceará, Pernambuco e Piauí aos Complexos Portuários de Pecém (CE) e Suape (PE), por meio da construção de novos trechos e ramais, da remodelação de trechos de ferrovias desativados, além da instalação de dois terminais portuários privativos nos dois portos mencionados, capazes de receber navios de maior calado para a exportação das matérias primas industriais.

As obras da Nova Transnordestina que afetam a comunidade quilombola de Contente estão no trecho Eliseu Martins/PI – Trindade/PE, que liga o sertão do Piauí ao sertão de Pernambuco. São 434 km ferroviários que não constavam no projeto original da década de 1980.

De acordo com informações da CSN, no segundo semestre de 2007, o traçado já estava definido, os projetos de execução da obra já haviam sido contratados, bem como a empresa responsável pela elaboração do EIA/Rima, o DNIT e o requerimento da Licença Prévia (LP), protocolado junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). O canteiro de obras em Paulistana foi instalado, segundo o blog 180 Graus, em novembro de 2009.

Faz parte do projeto de desenvolvimento econômico e integração do Nordeste, e as principais cargas a serem transportadas por estes ramais seriam açúcar, calcário, combustíveis, fertilizantes agrícolas, grãos, como soja e milho, minérios e óleo de soja destinados à exportação pelos portos de Pecém e Suape.

Cerca de 5,4 bilhões de reais era o valor total estimado dos custos da obra no lançamento do projeto, cuja execução foi viabilizada, em sua maioria, por investimentos e financiamentos oriundos de recursos públicos.

De acordo com Lucas Pereira (2020), a maior parte dos recursos foi promovida pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), por meio de seus fundos de investimento regionais, como o Fundo de Desenvolvimento do Nordeste (FDNE) e o Fundo de Investimentos do Nordeste (Finor), o último operado pelo Banco do Nordeste.

O restante do financiamento foi dividido entre uma grande parcela do BNDES e uma parcela menor da VALEC Engenharia, Construções e Ferrovias S.A. No entanto, entre 2007 e 2010, R$ 2,06 bilhões já haviam sido investidos e, com base em informações da Revista Grandes Construções (2013), outros 3,24 bilhões estavam previstos para o período de 2011-2014, totalizando R$ 6,8 bilhões em investimentos.

Em 2024, de acordo com Tufi Daher, diretor-presidente da Transnordestina Logística em declaração para o Diário do Nordeste, o trecho da ferrovia que passa por Piauí até o Porto de Pecém estava com 40% da obra realizada e seria necessário um aditivo de contrato no valor de R$ 3,8 bilhões para que a obra da ferrovia Transnordestina fosse totalmente concluída até 2027.

Segundo Camargo, com dados de 2013, somente 30% do recurso necessário foram dos empreendedores, e os 70% restantes distribuem- se entre diversos empréstimos públicos e incentivos fiscais.

Em 2024, a ferrovia já contava com um financiamento aprovado de pouco mais de R$ 1 bilhão, sendo R$ 234 milhões do Fundo de Investimento do Nordeste (Finor), em uma modelagem construída com o BNDES, e R$ 811 milhões do FDNE, já repassados, segundo o Poder 360.

Camargo (2013) analisou, também, que este cenário significava o múltiplo envolvimento do Estado brasileiro no empreendimento: ora como idealizador e planejador da proposta da Ferrovia Nova Transnordestina, também analisando os estudos necessários à sua execução; ora como implementador, pois participou das desapropriações de terras, e como financiador do empreendimento por meio de subsídios e empréstimos para a realização das obras, como demonstrado acima.

Pesquisa de Camargo (2013) também analisou que as atenções governamentais e do empreendedor estavam voltadas ao avanço das obras, enquanto os conflitos e as questões decorrentes da desapropriação e das transformações fundiárias foram discutidos quase que exclusivamente pelas comunidades eclesiais de base (ECBs), apoiadas pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Desde então, a empresa passou por uma série de mudanças, visando a ampliação dos serviços oferecidos, inclusive com a mudança de razão social em 2008, quando passou a denominar-se Transnordestina Logística S.A. (TLSA).

A Licença de Instalação (LI) nº 638/2009, que compreende o trecho do estado do Piauí, foi emitida em 5 de agosto de 2009 pelo Ibama. Ainda segundo a ANTF, a construção foi iniciada em novembro de 2009 e, por causa de uma série de atrasos, sua conclusão ficou prevista para 2014 – a primeira estimativa de entrega era em 2010. Toda a construção da ferrovia ficou a cargo da construtora Odebrecht, que, em dezembro de 2020, passou a se chamar Novonor.

Em setembro de 2010, a comunidade passou a contestar a dinâmica de intervenção da empresa concessionária responsável pela obra, a Odebrecht, no interior dos territórios quilombolas, como mostrou a pesquisa de Lucas Pereira (2020), de forma que Contente produziu uma carta-denúncia, com a assinatura de 55 pessoas da comunidade, e encaminhou para a sede do Ministério Público Federal (MPF) no município de Picos/PI e para a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (6ªCCR) do MPF em Brasília/DF.

A carta pedia a “intervenção junto ao empreendimento devido ao início das obras da ferrovia sem a devida consulta prévia e escuta da comunidade, bem como pelas indenizações ínfimas oferecidas às (aos) proprietárias (os)”.

De acordo com a página da Fundação Cultural Palmares (FCP), a comunidade do Contente recebeu sua certificação de Remanescente de Quilombo pela própria FCP em 20 de setembro de 2010.

Segundo informações da Secretaria Estadual de Transportes do Piauí (Setrans/PI), que enviou representantes à comunidade em novembro de 2010 para conversar sobre os impactos das obras da ferrovia Transnordestina, pelo menos 12 famílias viviam em Contente. De acordo com a Comissão Pró-Índio de São Paulo (Cpisp) e Incra, em 2023 o número de famílias havia aumentado para 49, com cerca de 170 moradores.

Com o objetivo de avaliar o andamento das obras no estado e realizar reuniões com as comunidades quilombolas, Norma Sales, secretária de Estado dos Transportes do Piauí, visitou em novembro de 2010 o canteiro de obras do empreendimento nos municípios de Curral Novo, Paulistana e Simões. Nestes locais, visitou comunidades quilombolas para discutir o andamento da obra.

Segundo a assessoria de imprensa do órgão, na ocasião, a secretária esclareceu aos moradores da comunidade de Contente sobre o processo de pagamento das desapropriações necessárias, garantindo que os impactos no cotidiano das comunidades seria o menor possível.

Entretanto, em 3 de dezembro de 2010, o procurador da República Frederick Lustosa de Melo instaurou o Inquérito Civil Público (ICP) nº 1.27.001.000071/2010-83 para apurar as denúncias apresentadas na carta encaminhada pela 6ª CCR do MPF meses antes.

De acordo com notícia da revista Grandes Construções (2013), no pico das obras, em 2011, o trecho entre Eliseu Martins, no Piauí, e o Porto de Suape, com uma extensão de cerca de 1.200 km, havia 9.600 pessoas trabalhando, número que caiu em março de 2013 para cerca de 3.700.

Segundo um técnico entrevistado pela revista, os trabalhos prosseguiam em ritmo lento, e havia quem considerasse que a conclusão das obras dez anos depois de iniciadas era uma previsão otimista.

De acordo com Rodrigo Gomes (2018), as obras da ferrovia no território das comunidades quilombolas Barro Vermelho e Contente tiveram início no ano de 2011 e, desde então, o conflito se agravou com os inúmeros danos socioambientais ocasionados pelo avanço das obras.

As comunidades denunciavam que a empresa responsável pela construção não avisara sobre o início das atividades, nem pediu autorização dos respectivos proprietários para acessar as terras do seu interior. Segundo os moradores, o principal impacto que a comunidade quilombola de Contente passou a sofrer diz respeito à dificuldade de acesso à água:

“A construção da ferrovia estabeleceu uma barreira física entre as casas e o açude, principal fonte de abastecimento de água, além de ter dificultado também a chegada às suas roças, fonte de sustento das famílias”.

Uma longa distância teve que ser percorrida pelos moradores para chegar ao ponto permitido para cruzar as cercas da via, que, em maio de 2012, segundo o Correio Nagô, já estava construída, faltando apenas serem colocados os trilhos.

Além da obstrução dos caminhos tradicionais das comunidades, que trouxe dificuldade de deslocamento nas atividades diárias dos moradores, como buscar água e ir à escola, outro grave problema é de caráter econômico.

Segundo o blog Combate Racismo Ambiental, a comunidade de Contente, como muitas outras no estado, estava ameaçada por sérios prejuízos financeiros, pois o estado ofereceu pagar indenizações irrisórias, conforme reconheceu o secretário de Transportes do Estado do Piauí, Avelino Neiva, em julho de 2013. Em alguns casos, as indenizações não passaram de R$ 5 por hectare.

Também se incluem no rol das violações as denúncias de violência psicológica e moral, provocadas por ameaças e intimidações com uso de força policial, produzindo sentimentos de medo e insegurança.

Pesquisa de Gomes (2018) elenca uma série de danos neste sentido, como invasão nas propriedades sem autorização; fluxo de pessoas estranhas à comunidade; tratamento desrespeitoso para com os moradores e constrangimento às lideranças; uso de explosivos sem aviso prévio; qualidade de vida piorada pelo empreendimento; e intimidações em reuniões para que as comunidades aprovassem os Planos Básico Ambiental Quilombola (PBAqs) apresentados pela empresa.

Em relação à produção econômica e subsistência, Gomes enumera os seguintes pontos:

i.1) impactou a pecuária, caprinocultura, avicultura e suinocultura com o deslocamento forçado dos animais; fechamento de passagens, restringindo o movimento dos animais; mortes por atropelamentos das máquinas e carros da empresa; fuga das criações com o rompimento das cercas ou por conta de cercas frágeis que foram construídas pela empresa; acidentes com máquinas e carros da empresa reduziram o número dos rebanhos, situação que se agravará com a operação do trem; i.2) afetou a apicultura, houve a alteração do ciclo de vida das abelhas, pois o uso de explosivos ocasionou barulho e poeira; alteração da flora – com a destruição da vegetação silvestre reduziu-se a variedade de flores para produção do pólen e néctar; alteração do local da Casa do Mel, a antiga sede pela proximidade da faixa de domínio precisou ser abandonada, todavia, a nova sede encontra-se com instalações inconclusas; após início das obras relata-se dificuldade na certificação do mel como orgânico; i.3) impactou a agricultura com a perda da produção, em razão da destruição de cercas, roças e vazantes por conta da terraplanagem; redução da produção com a dificuldade de acesso às roças, em decorrência da faixa de domínio do trem – [precisam] se deslocar entre 1km e 2km para atravessar a faixa de domínio –, perda de território produtivo com as desapropriações, destruição de cisternas e barreiros que acumulavam água com o uso de explosivos e terraplanagem”.

Sobre a questão das indenizações, o Correio Nagô (2012) acrescentou ainda a análise da professora Maria Suely, da Universidade Federal do Piauí (UFPI), e uma afirmação do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí (TJ/PI). Para a professora, esta situação se caracteriza como violação dos direitos humanos das famílias; o TJPI reiterou a gravidade ao afirmar que as propostas de indenizações não pagam nem o papel pelo qual estão sendo feitas.

Suely informou também que a comunidade, apesar de reconhecida, ainda passava por processo de titulação das áreas; ao mesmo tempo, passou a sofrer um mandado de deslocamento compulsório. A professora explicou: “Um braço do governo está dando de um lado e retirando do outro”.

Entre os dias 13 e 16 de maio de 2012, a comunidade de Contente sediou o 1º Encontro Estadual de Mulheres Quilombolas do Piauí, organizado pela Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí – CECOQ-PI , que contou com cerca de 400 participantes.

O encontro teve como tema “Mulheres quilombolas combatendo os impactos sociais, ambientais e culturais”, cuja importância reside, de acordo com o Correio Nagô, no fato de que muitas mulheres nestas comunidades respondem pelo sustento das unidades familiares e precisam discutir e articular formas específicas de resistência neste cenário.

Durante o evento, as participantes organizaram uma manifestação e ocuparam momentaneamente o canteiro de obras da Transnordestina no dia 14 de maio. Com instrumentos e faixas, as mulheres quilombolas demonstraram sua insatisfação com o empreendimento, que já causava transtornos às comunidades.

Em agosto de 2012, o então ministro dos Transportes, Paulo Passos, afirmou à revista Grandes Construções que a então presidenta Dilma Rousseff (PT) pretendia impor um ritmo mais rápido nas obras para garantir a conclusão em 2014. Segundo ele, era preciso acelerar as obras entre Trindade (PE) e Eliseu Martins (PI) – 167 km -, que na época estavam paradas devido a problemas de desapropriações, de responsabilidade do governo do Piauí.

Em 1º de novembro de 2012, cerca de 3.500 funcionários da construtora Odebrecht, responsável pela obra, paralisaram os serviços devido à falta de acordo com relação aos pagamentos. Segundo o blog 180 graus, este número representava 40% do total de funcionários envolvidos na construção.

Por isso, as obras seguiam lentamente, segundo Luís Coelho, então prefeito de Paulistana (Partido Republicano Progressista – PRP), mas não foram completamente paralisadas. Em entrevista ao Cidadeverde.com, o prefeito afirmou que a falta de mão de obra era uma das principais causas da lentidão das obras.

Em dezembro de 2012, a TLSA e a FCP firmaram um Termo de Compromisso para dar cumprimento às medidas de mitigação e compensação aos impactos da Ferrovia Transnordestina sobre todas as comunidades quilombolas atingidas pelo empreendimento nos estados do Ceará, Piauí e Pernambuco.

De acordo com pesquisa de Lucas Pereira (2020) acerca do impacto do empreendimento sobre as comunidades quilombolas Barro Vermelho e Contente, este documento foi importante para que o Ministério Público Federal (MPF) movesse uma Ação Civil Pública (ACP) em 2016 contra o Ibama e Transnordestina Logística.

Com previsão de ter 1.728 km de extensão, segundo a revista Grandes Construções, em 2013 a construção da ferrovia focou em obras de infraestrutura e superestrutura dos trechos: Eliseu Martins (PI)-Trindade(PE); Missão Velha (CE)-Salgueiro (PE); Pecém-Missão Velha (CE); Salgueiro-Suape (PE) e Salgueiro-Trindade (PE).

A geógrafa Paula Camargo (2013) estimou que três mil imóveis rurais seriam afetados pelo empreendimento, sendo 88% deles imóveis de particulares em diversas situações de posse e propriedade, majoritariamente pequenas propriedades rurais.

No mês de março de 2013, mais uma vez, as mulheres tomaram a frente na resistência aos impactos da ferrovia. Na manhã do dia 8, cerca de 300 pessoas, na maioria mulheres camponesas vinculadas ao Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e outras organizações do movimento quilombola, ocuparam o canteiro de obras da Odebrecht para a construção da Transnordestina. O ato fez parte da celebração do Dia Internacional da Mulher daquele ano.

Segundo o MPA, as manifestantes seguiam em conflito devido ao baixo valor das indenizações pagas pelo governo do estado. Camponeses e quilombolas muitas vezes não recebiam a indenização pela desapropriação de suas terras.

Em 15 de março de 2013, o Ministério Público Federal (MPF), por meio da Procuradoria da República no estado do Piauí, instaurou Inquérito Civil Público (ICP) para averiguar as denúncias recebidas pelo órgão de violação ou ameaça de violação aos direitos humanos de comunidades quilombolas, povos indígenas, assentados, dentre outros, em razão da construção de grandes projetos públicos e privados, tais como as barragens hidrelétricas no rio Parnaíba, a instalação da empresa Suzano Papel e Celulose no estado e a construção da Ferrovia Transnordestina.

O inquérito também se destinava a avaliar os impactos sofridos pelas comunidades frente aos referidos empreendimentos.

Em maio de 2013, segundo a Agência Estado, a obra já estava com dois anos e meio de atraso sem ter chegado à metade do traçado previsto. Seu custo foi revisto e subiu para R$ 7,5 bilhões.

Diante deste quadro, a Agência Nacional de Transporte Terrestres (ANTT) prometeu, segundo a revista Grandes Construções, fazer alterações no contrato com a TLSA, adequando prazos e incluindo penalidades pelo não cumprimento, podendo inclusive chegar ao cancelamento do contrato no caso de se repetirem falhas no cronograma.

Também a partir de maio, o governo federal se comprometeu a monitorar de perto a atuação da Odebrecht, empreiteira contratada pela TLSA.

A então presidenta da Associação dos Moradores da Comunidade de Contente, Jucélia Xavier, declarou ao Diário do Povo do Piauí, em junho de 2013, que o problema não estava restrito apenas à comunidade de Contente, mas em muitas outras áreas remanescentes de quilombos ao longo da ferrovia, e que estivera em Brasília várias vezes para denunciar que supostos representantes da TLSA estavam tentando comprar terras com o valor irrisório de R$ 5,00 por hectare, sem contar que a obra da ferrovia havia cortado a comunidade em duas partes, afirmando: “Nós também denunciamos que invadiram parte das nossas terras e que nunca houve uma negociação”.

A fim de dar prosseguimento às investigações e discussões para solucionar os problemas que a comunidade quilombola de Contente      enfrenta     va devido às obras da Transnordestina, o MPF, por meio da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (que trata das Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais), realizou uma reunião com os agentes envolvidos no conflito.

Estiveram presentes à sede da Procuradoria Geral da República, em Brasília, no dia 22 de julho de 2013, a subprocuradora-geral da República, Maria Eliane Menezes de Farias; o procurador da República em Picos, Francisco Alexandre de Paiva Forte, e representantes do Departamento Nacional de Infraestrutura (Dnit), da Fundação Cultural Palmares (FCP), da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), da Secretaria de Transportes do Piauí (Setrans/PI) e da Transnordestina (TLSA).

As deliberações desta reunião, segundo o MPF, foram:

  • Representantes da Transnordestina e da FCP se comprometeram a melhorar a comunicação com a comunidade quilombola de Contente com o objetivo de informá-la dos passos da obra;
  • A Transnordestina se comprometeu a encaminhar ao MPF o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do empreendimento;
  • Os órgãos presentes se comprometeram a estudar mudanças de parâmetros para rever o valor da indenização às famílias quilombolas.

A FCP, em 21 de novembro de 2013, anexou todas as comunicações realizadas com a TLSA que deram origem à assinatura do termo de compromisso entre os dois órgãos, bem como a cópia do ofício enviado ao Dnit em que solicita a alteração dos critérios das desapropriações realizadas em comunidades quilombolas, segundo Pereira (2020).

As obras da ferrovia foram executadas pela empreiteira Odebrecht entre o ano de 2009 até setembro de 2013, momento em que o contrato entre a concessionária e a construtora foi rescindido, paralisando a obra, retomada somente em dezembro de 2013 no trecho Eliseu Martins, no Piauí (01 EMT), pela Civilport Engenharia.

De acordo com Gomes (2018), as irregularidades no licenciamento ambiental aumentaram com a renovação automática da licença de instalação sem que as condicionantes tenham sido cumpridas pelo empreendimento. Assim, a renovação da LI ocorreu em 2014, após expirar o prazo de quatro anos da licença.

A partir desse período, sucederam-se inúmeras reuniões com o empreendedor; todavia, não resultaram em medidas concretas para cumprimento das ações de mitigação e compensação dos danos. Pelo contrário, desencadeou várias ocasiões de violência, ameaça e intimidação.

O autor cita o estudo do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) para expor a relação de violência sobre a comunidade, além de ameaça e desrespeito, por meio de relato de um dos moradores do território, que embora não identificado, denuncia:

“[…] A gente quer pelo menos o nosso reconhecimento, os nossos direitos. Que nós tendo os nossos direitos, ela pode passar hoje, não temos nada a ver. O Oriosvaldo chegou a falar, quinta-feira, para gente, que eu achei… Até depois eu peguei e fiquei imaginando que podia até me punir, porque ele chegou dizendo que daqui a dois ou três meses… Dois a três meses, a Via Magna passa aqui, ou que queira, ou que não queira. Nem que seja com a Polícia Civil, o governo federal, com a Polícia Federal, passa aqui. Aí eu não lembrei na hora, porque eram várias coisas, eu podia ter falado: ‘Cadê? Qual foi o dia que nós impedimos de vocês passarem? Nós queremos as nossas partes’. Vamos dizer, tem casa bem aqui na comunidade, e na outra comunidade de Barro Vermelho, que os moradores estão esperando, qualquer hora, a casa cair por cima. Por quê? Por causa da Transnordestina. Eles falaram que não é, diz que é por causa disso, daquilo, vai fazer ainda… Como que é? Vai fazer uma vistoria nas casas para ver. Nas casas, para ver se foram danos da Transnordestina. Mas foi, porque eu estou com 46 anos, que eu moro aqui na comunidade, que eu nasci e me criei aqui, e as casas quebravam, rachavam, mas não é desse tanto, não. E hoje, em Contente, nós temos 43, 44 residências…. Pode ser até mais disso aí… E você pode caçar, nelas todas que não tem nenhuma que não é quebrada. Aí quebraram casa, quebraram cisterna, é tudo. E eles dizem que não são eles, não é culpa deles”.

Em 25 de fevereiro de 2015, o Ibama chegou a emitir parecer técnico (nº 02001.000647/2015-41) contrário à renovação da licença de instalação, indicando a suspensão das atividades. Mas, de acordo com o MPF, o órgão não adotou as medidas necessárias para concretizar a sua paralisação.

Em 13 de agosto de 2015, o Coletivo Antônia Flor protocolou uma manifestação em que relata um histórico das violações aos direitos humanos a que as comunidades quilombolas de Barro Vermelho e Contente foram submetidas ao longo da relação com a construção da ferrovia Transnordestina, especialmente o descumprimento da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e de negociações e desrespeito aos acordos estabelecidos, os assédios e situações de criminalização praticados pela TLSA.

Pereira (2020) também aborda que o coletivo denunciou:

“(…) as questões jurídicas relevantes como a não prorrogação automática da licença ambiental de instalação, a necessidade de realização de consulta prévia, livre e informada e do parecer técnico da coordenação de transportes do IBAMA, de 25 de fevereiro de 2015, que recomenda a suspensão da licença ambiental por uma série de descumprimentos de condicionantes estabelecidas”.

Em 02 de março de 2016, a Corregedoria Geral da União (CGU), por meio de uma auditoria, apresentou as conclusões de um relatório sobre as obras de construção da ferrovia Transnordestina em audiência pública da comissão externa da Câmara dos Deputados que acompanhou a construção da ferrovia.

Wagner Rosa Silva, diretor de auditoria da área de infraestrutura, apontou a fragilidade nos controles internos dos órgãos gestores e nos relatórios de acompanhamento das obras, que possuíam poucos detalhes técnicos, sem descrição da metodologia adotada. Na avaliação do deputado Raimundo Gomes de Matos (PSDB-CE), que coordenou a comissão, isso favorecia o descumprimento de prazos e o déficit no orçamento.

Ele informou que foram realizadas audiências públicas com a participação de diferentes órgãos, como a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), Banco do Nordeste do Brasil (BNB), BNDES e Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), mas as informações eram desencontradas. O Tribunal de Contas da União (TCU), presente na audiência, também apontou graves irregularidades, como o descumprimento dos cronogramas de obras e dos investimentos previstos nos contratos.

Por conseguinte, em maio de 2016, o MPF ajuizou uma Ação Civil Pública (ACP nº 1635-08.2016.4.01.4004) em face da Transnordestina Logística (TLSA) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Segundo o documento da ACP, a TLSA e o Ibama descumpriram o Termo de Compromisso Ambiental firmado com a Fundação Cultural Palmares (FCP), deixando de implementar várias medidas mitigatórias.

A implementação dessas medidas, de acordo com instrução normativa do Ibama, era condicionante para a concessão da licença de instalação. Porém, conforme apurado pelo MPF, a licença foi renovada (2014) mesmo sem a TLSA cumprir os termos e prazos assumidos com a FCP.

Para o procurador da República Marco Aurélio Adão, autor da ação, a inércia do Ibama em suspender a licença ambiental do empreendimento constituiu omissão em razão da prestação ineficiente do seu poder de controle ambiental.

Como observou: “Permitir a prorrogação automática resulta em evidente violação ao princípio de prevenção ambiental, bem como majora os impactos ambientais negativos para a Comunidade Quilombola de Contente”.

Com isso, o MPF requereu que a TLSA fosse obrigada a cumprir as medidas de controle e mitigação de impactos; e elaborar e implementar programas de mitigação e compensação dos prejuízos relativos à produção econômica da comunidade.

Além disso exigiu que a Transnordestina apresentasse proposta referente à compensação de perda de parte ou totalidade do território; realizasse consultas prévias sobre o Componente Quilombola do Projeto Básico Ambiental Quilombola (PBAq); e encaminhasse relatórios semestrais concernentes à implantação dos programas ambientais constantes no PBAq.

Importa diferenciar, assim como Pereira (2020) faz em sua pesquisa, os mecanismos de mitigação dos mecanismos de compensação. As medidas de compensação se referem à reparação de bens materiais ou imateriais, que, caso não possam ser substituídos integralmente ou reformados, o empreendimento deve oferecer benefícios que indenizem as comunidades afetadas. Já medidas de mitigação “são reparações que visam amenizar os impactos que não podem ser sanados completamente”.

Em 14 de junho de 2016, a justiça federal da Vara Única de São Raimundo Nonato, por meio do juiz Pablo Baldivieso, considerou “o aspecto social da demanda, o relevante interesse público que envolve a obra da Ferrovia Transnordestina para o desenvolvimento nacional e os princípios positivados no Novo Código de Processo Civil”.

Com isso, designou uma audiência de conciliação e concedeu a possibilidade de manifestação da TLSA antes de decidir sobre o pedido de tutela antecipada para suspender a licença de instalação nº 638/2009.

Em 10 de agosto de 2016 ocorreu uma audiência de conciliação em que a TLSA não propôs nenhuma alternativa para a solução do conflito, o que fez o juiz agendar logo em seguida uma inspeção judicial para o dia 22 de setembro de 2016 nas comunidades de Barro Vermelho e Contente antes de decidir sobre o pedido de tutela antecipada.

No entanto, no dia anterior (21), a TLSA protocolou sua contestação repetindo as argumentações da primeira manifestação e apelando para a ilegitimidade do MPF por não demonstrar a relevância social necessária para a intervenção do órgão.

Na alegação da empresa, seria um grupo de indivíduos que estaria sofrendo um impacto desvinculado sobre a coletividade, e não relacionado ao patrimônio sociocultural quilombola, pois as residências são individuais e as propriedades também.

Em dezembro de 2016, a justiça federal da Vara Única de São Raimundo Nonato, por meio do juiz Pablo Baldivieso, acolheu o pedido do MPF e determinou a suspensão da licença de instalação e a paralisação das obras da Ferrovia Transnordestina até que o Termo de Compromisso Ambiental realizado entre a FCP e a Transnordestina fosse cumprido em sua integralidade.

No entanto, este argumento não se sustenta devido ao respaldo constitucional que garante às comunidades quilombolas a propriedade coletiva, como o artigo 17 do Decreto 4887 de 20 de novembro de 2023: “a Titulação prevista para as comunidades quilombolas será reconhecida e registrada mediante outorga de título coletivo e pró-indiviso às comunidades”.

De acordo com a decisão do juiz Pablo Baldivieso, as obras ficariam suspensas até o cumprimento integral do termo. Ele intimou a FCP a informar mensalmente o cumprimento dos acordos, além de fixar multa diária de R$ 10 mil em caso de descumprimento da decisão.

Ele também fundamentou a decisão baseando-se na Convenção 169 da OIT e na Constituição Federal, que assegura a proteção ao patrimônio imaterial, a cultura e o modo de vida dos grupos formadores da sociedade brasileira, aos quais a Constituição dá especial tratamento para as comunidades quilombolas.

De acordo com Pereira (2020), a partir daí foi possível observar que o setor jurídico da TLSA mobilizou recursos na tentativa de evitar e depois reverter os efeitos da ACP sobre a continuidade da obra, pois a empresa realizou 20 manifestações no prazo de quase três anos, em que os argumentos foram quase sempre repetitivos e em torno da descaracterização da demanda quilombola como coletiva, e da ilegitimidade de intervenção do MPF.

Em 2017 o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou a suspensão de repasses de recursos públicos para a TSLA por verificar descompasso entre os valores efetivamente recebidos e a parcela de obra já executada.

Conforme o TCU, os recursos financeiros estariam sendo empregados de forma indevida, além de analisarem o risco concreto de danos ao erário, decorrente da liberação de novos recursos para o empreendimento irregular, já que não havia certeza em relação ao valor real do investimento necessário para a conclusão da construção da ferrovia.

Após diversos embates provocados pela TLSA, em 23 de maio de 2018 foi publicada a sentença final que considerou procedente a ação civil pública, mantendo a licença de instalação nº 638/2009 suspensa até a TLSA cumprir o termo de compromisso firmado com a FCP em 2012.

O juiz federal Rodrigo Britto Pereira Lima, da 4ª subseção judiciária de Raimundo Nonato, considerou que a Constituição Federal de 1988 reconheceu expressamente o direito dos povos indígenas e afro-brasileiros, conforme redação do art. 215, § 1º70, o que reflete a concepção multicultural da nação brasileira, pois os direitos fundamentais destes grupos devem ser assegurados de maneira imediata em razão de sua própria identidade.

Portanto, não seria prudente acolher o argumento de que somente quando “plenamente formalizadas as comunidades” deveriam ser consultadas pela TLSA.

Comunidade quilombola Contente (2017). Foto de Wagner Sarmento. Fonte: TV Globo.

A decisão confirmou a medida liminar deferida em dezembro de 2016, na ACP do Ministério Público Federal (MPF) no Piauí, de autoria do procurador da República Marco Aurélio Adão, contra o Ibama e a Transnordestina Logística S/A.

O juízo julgou procedente o pedido do MPF e determinou as seguintes medidas, nos termos do art. 536 do CPC:

“a) a suspensão dos efeitos da Licença de Instalação nº 638/2009 no trecho Elizeu Martins(PI) e Trindade(PE), devendo ser suspensas quaisquer atividades desenvolvidas pela TLSA no trecho, até que seja cumprido em sua integralidade o Termo de Compromisso Ambiental realizado entre a Fundação Cultural Palmares e a Transnordestina Logística S/A; b) condenar a TLSA na obrigação de realizar melhorias nos acessos das comunidades entre os lados da ferrovia e seus acessos externos; adequação da utilização da casa do mel, bem como a construção do depósito de feno destas comunidades no prazo de 120 dias, sob pena de multa diária no valor de R$ 1.000,00”.

Em relação aos efeitos sobre a comunidade quilombola, foi determinado que fossem realizadas consultas prévias sobre o Plano Básico Ambiental Quilombola (PBAQ) antes do cumprimento das medidas determinadas. Além disso, determinou-se que a FCP manifestasse sua aprovação, ou não, sobre o PBAQ apresentado pela TLSA, no prazo de 90 dias, a contar da intimação da decisão, sob pena de multa diária de R$ 1.000,00.

Em relação ao Ibama, determinou-se que promovesse atos administrativos consistentes em suspender a licença de instalação e supressão de vegetação de nº 638/2009, no prazo de 30 dias, sob multa de R$ 1.000,00.

Em 28 de novembro de 2018, a comunidade quilombola Contente teve o edital do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (Rtid) publicado nas edições de 12 e 13 de novembro do Diário Oficial da União. De acordo com o Incra, ele: “aborda informações históricas e antropológicas, cartográficas, fundiárias, agronômicas, ecológicas, geográficas e socioeconômicas obtidas em campo e junto a instituições públicas e privadas”.

Em 12 de setembro de 2019, o Coletivo Antônia Flor, que produziu o documentário “A quem será que se destina a Transnordestina?”, divulgou seu lançamento nas comunidades Barro Vermelho e Contente.

Orientado por um roteiro a partir da pergunta “Como era a vida antes, e como é a vida depois da chegada da ferrovia transnordestina no território quilombola?”, o documentário é fruto de uma parceria do Coletivo Antônia Flor e de advogados populares que atuam junto às comunidades, e foi realizado pela Flores.Ser Comunicação Coletiva e d’O Corre Diário.

Cartaz de lançamento do filme “A quem será que se destina a Transnordestina?” Fonte: Coletivo Antônia Flor, 2019.

A continuidade das desapropriações decorrentes das obras da Ferrovia Transnordestina foi tema de audiência pública promovida pelo MPF em 26 de novembro de 2019 na Câmara Municipal de Simplício Mendes (PI). A reunião teve como objetivos: “ouvir as indagações e demandas das comunidades afetadas, verificar a extensão do dano por elas suportado, colher esclarecimentos dos órgãos públicos e agentes privados sobre o andamento da obra e as medidas de compensação e reparação pelos danos provocados”.

A audiência pública foi presidida pelo procurador da República Igor Goettenauer, titular da Procuradoria da República no Município de São Raimundo Nonato (PI). Participaram as lideranças das comunidades localizadas nas áreas pelas quais passa a Ferrovia Transnordestina, representantes do MPF, Dnit, ANTT e TLSA.

Em 06 de junho de 2023, o território da comunidade quilombola de Contente foi declarado como terras de quilombo pelo Incra, que estabeleceu seus limites e confrontações, com 686,4 hectares.

Na ocasião, a comunidade possuía 49 famílias, com cerca de 170 moradores, conforme o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (Rtid), elaborado por técnicos do Incra/PI e pela empresa de consultoria contratada para produção dos estudos antropológicos, Terra Consultoria em Engenharia e Meio Ambiente.

Quanto aos aportes de fundos públicos e do BNDES, o plenário do TCU autorizou, em julho de 2023, a retomada de aportes para as obras de construção da Ferrovia Transnordestina e determinou que, no prazo de 120 dias, a ANTT pactuasse com a concessionária um novo cronograma para realização das obras.

Por outro lado, a Corte manteve a proibição de a estatal Valec destinar recursos ao empreendimento, vedação que também vale aos orçamentos do Ministério da Infraestrutura.

 

 

Atualizado em abril 2024

 

Cronologia

1900 – Comunidade de Contente é formada por meio da negociação de terras entre Elias Mariano e o visconde Antônio Coelho. É a origem de todas as famílias constituídas na área envolta ao território mais amplo onde se insere Contente.

1997 – Leilão da Malha Ferroviária Nordeste pertencente à Rede Ferroviária Federal SA (RFFSA); concessão é obtida por 30 anos.

1998 – Criação da Companhia Ferroviária Nacional (CFN); início do transporte de cargas.

2002 – Estudos para a implantação de novo traçado do projeto Transnordestina.

2003- Início do processo de licenciamento ambiental para a Nova Transnordestina. Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) inicia projetos de engenharia para captação de recursos para as obras da ferrovia.

2004 – Apresentação do novo traçado e trechos da ferrovia Transnordestina.

2006 – Início das obras da ferrovia Transnordestina pelo trecho Missão Velha/CE-Salgueiro/PE.

2007 ­ Estudos básicos e contratação dos projetos executivos dos demais trechos.

2008 – CFN passa a se chamar Transnordestina Logística S.A (TLSA).

05 de agosto de 2009 – Aprovação do projeto da Transnordestina pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e obtenção da licença de instalação LI no 639/2009.

Novembro de 2009 – Instalação do canteiro de obras em Paulistana/PI.

Setembro de 2010 – Carta-denúncia, com a assinatura de 55 pessoas da comunidade quilombola de Contente, é encaminhada para a representação do Ministério Público Federal (MPF) no município de Picos/PI e para a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (CCR) do MPF em Brasília/DF.

20 de setembro de 2010 – Publicada pela Fundação Cultural Palmares (FCP) a certificação de autorreconhecimento da comunidade de Contente como “remanescente de quilombo”.

Novembro de 2010 – Norma Sales, secretária de Estado dos Transportes do Piauí, visita o canteiro de obras no município de Paulistana e conversa com moradores da comunidade de Contente.

3 de dezembro de 2010 – O procurador da República Frederick Lustosa de Melo instaura inquérito civil público nº 1.27.001.000071/2010-83 para apurar as denúncias apresentadas em carta encaminhada à 6ª CCR do MPF pelos quilombolas de Contente.

2011- Início das obras da ferrovia no território da comunidade quilombola de Contente.

13 a 16 de maio de 2012 – Comunidade de Contente sedia o 1º Encontro Estadual de Mulheres Quilombolas do Piauí, com cerca de 400 participantes.

14 de maio de 2012 – Manifestação de mulheres quilombolas com ocupação temporária do canteiro de obras da ferrovia Transnordestina.

01 de novembro de 2012 – 3.500 funcionários da construtora Odebrecht paralisam os serviços devido à falta de acordo com relação aos pagamentos.

Dezembro de 2012 – A TLSA e a FCP firmam um Termo de Compromisso para dar cumprimento às medidas de mitigação e compensação aos impactos da Ferrovia Transnordestina sobre todas as comunidades quilombolas atingidas pelo empreendimento nos estados do Ceará, Pernambuco e Piauí.

08 de março de 2013 – Mulheres camponesas vinculadas ao Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e ao movimento quilombola ocupam canteiro de obras da Odebrecht.

15 de março de 2013 – Ministério Público Federal instaura Inquérito Civil Público para averiguar denúncias de violação aos direitos humanos de povos quilombolas, indígenas e assentados pelas obras da barragens hidrelétricas no rio Parnaíba, a instalação da empresa Suzano Papel e Celulose no estado e a construção da Ferrovia Transnordestina.

22 de julho de 2013 – Reunião do MPF com representantes da TLSA., Dnit, FCP e Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da Presidência de República (Seppir) para discutir os problemas que a comunidade quilombola de Contente está enfrentando com a construção da ferrovia Transnordestina.

2014 – Renovação da Licença de Instalação (LI) das obras da ferrovia Transnordestina.

25 de fevereiro de 2015 – O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) emite parecer técnico (nº 02001.000647/2015-41) contrário à renovação da licença de instalação, indicando a suspensão das atividades.

13 de agosto de 2015 – O Coletivo Antônia Flor protocola manifestação relatando histórico das violações aos direitos humanos que as comunidades quilombolas de Barro Vermelho e Contente vêm sendo submetidas ao longo da construção da ferrovia Transnordestina, especialmente o descumprimento da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

02 de março de 2016 – A Corregedoria Geral da União (CGU), por meio de uma auditoria, apresenta relatório sobre as obras da ferrovia Transnordestina em audiência pública da comissão externa da Câmara dos Deputados, que acompanhou a construção da ferrovia.

Maio de 2016 – O MPF ajuíza Ação Civil Pública (ACP -1635-08.2016.4.01.4004) em face da TLSA e do Ibama.

14 de junho de 2016 – A justiça federal da Vara Única de São Raimundo Nonato/PI, por meio do juiz Pablo Baldivieso, designa audiência de conciliação e concede a possibilidade de manifestação da TLSA antes de decidir sobre o pedido de tutela antecipada para suspender a licença de instalação nº 638/2009.

10 de agosto de 2016 – Ocorre uma audiência judicial de conciliação em que a TLSA não propõe nenhuma alternativa para a solução do conflito.

22 de setembro de 2016 – O juiz Pablo Baldivieso agenda inspeção judicial nas comunidades de Barro Vermelho e Contente antes de decidir sobre o pedido de tutela antecipada.

Dezembro de 2016 – A justiça federal da Vara Única de São Raimundo Nonato, por meio do juiz Pablo Baldivieso, acolhe pedido do MPF e determina a suspensão da licença de instalação e a paralisação das obras da ferrovia Transnordestina, até que o Termo de Compromisso Ambiental realizado entre a FCP e a TLSA seja cumprido em sua integralidade.

2017- Tribunal de Contas da União (TCU) suspende repasse de recursos públicos para a TSLA ao verificar vícios de contrato entre o Fundo de Investimentos do Nordeste (Finor), Fundo de Desenvolvimento do Nordeste, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE) e a TLSA.

23 de maio de 2018 – Publicada a sentença final que considera procedente a ação civil pública e que suspende a licença de instalação nº 638/2009 até que a TLSA cumpra o termo de compromisso firmado com a FCP em 2012.

28 de novembro de 2018 – O edital do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (Rtid) do território da comunidade quilombola de Contente é publicado nas edições de 12 e 13 de novembro do Diário Oficial da União (DOU) pelo Incra.

12 de setembro de 2019 – O Coletivo Antônia Flor divulga o lançamento do documentário “A quem será que se destina a Transnordestina?” nas comunidades de Barro Vermelho e Contente.

26 de novembro de 2019 – MPF promove audiência pública na Câmara Municipal de Simplício Mendes/PI para “ouvir as indagações e demandas das comunidades afetadas, verificar a extensão do dano por elas suportado, colher esclarecimentos dos órgãos públicos e agentes privados sobre o andamento da obra e as medidas de compensação e reparação pelos danos provocados”.

06 de junho de 2023 – O Incra declara o território da comunidade quilombola como terras de quilombo e estabelece seus limites e confrontações.

Julho de 2023- O plenário do TCU autoriza, em julho de 2023, a retomada de aportes para as obras de construção da Ferrovia Transnordestina e determina que, no prazo de 120 dias, a ANTT pactue um novo cronograma para realização das obras.

 

Fontes

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