SE – Ameaças de violência contra quilombolas de Brejão dos Negros que lutam pela titulação atingem também padre e bispo

UF: SE

Município Atingido: Brejo Grande (SE)

Outros Municípios: Brejo Grande (SE)

População: Quilombolas

Atividades Geradoras do Conflito: Atuação de entidades governamentais, Atuação do Judiciário e/ou do Ministério Público, Monoculturas

Impactos Socioambientais: Alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território, Falta / irregularidade na demarcação de território tradicional

Danos à Saúde: Piora na qualidade de vida, Violência – ameaça

Síntese

Brejo Grande, Sergipe, é hoje um município dividido. A estrutura fundiária do município é dominada por lideranças conservadoras e tem sido alvo da cobiça de grandes empreendedores. Em resposta, grupos e comunidades tradicionais estão se organizando para reivindicar seu direito à terra. Se em Resina é a antiguidade que legitima a luta dos pescadores tradicionais contra a instalação de um resort da Norcon, em Brejo Grande é a identidade quilombola que articula a luta dos moradores da localidade pela garantia do direito à terra de seus antepassados.


Brejão dos Negros, com cerca de 280 famílias, é uma comunidade remanescente de quilombos localizada neste município. Além dessas famílias, mora na localidade grande número de pessoas que, embora com parentesco com as famílias auto-reconhecidas como quilombolas, não se identificam como tal. A diversidade étnica e identitária é um dos pontos de tensão na localidade. Grupos influentes de Brejo Grande aproveitam-se da situação para construir uma frente de oposição à titulação do território quilombola de Brejão dos Negros e criar barreiras para a aceitação do auto-reconhecimento daquelas pessoas, enquanto remanescentes de quilombos.


Segundo os moradores, a hostilidade à titulação da terra quilombola é fomentada pelo prefeito da cidade, Carlos Augusto Ferreira (PSB), pela juíza da comarca de Neópolis, Rosivan Machado, por vereadores, fazendeiros e outras pessoas influentes no município – notícia do Brasil de Fato. Ostensivamente, estes segmentos estariam se opondo ao que denominam como ação fraudulenta, incentivada e organizada pelo pároco local, o Padre Isaías Carlos do Nascimento Filho (membro da Cáritas da Diocese de Propriá) – importante aliado dos quilombolas de Brejão dos Negros, como dos pescadores de Resina – e a Associação Santa Cruz. Esta associação tem organizado e conduzido o processo de auto-reconhecimento pela população e de titulação do território quilombola.


A luta pelo reconhecimento oficial da comunidade como remanescente de quilombos teve início em 2005. Em julho de 2006, a Fundação Cultural Palmares (FCP) emitiu a certidão de auto-reconhecimento, oficializando a condição da comunidade como quilombola. Desde então, a luta da associação tem se direcionado para a titulação do território, processo que é de responsabilidade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e que está parado na burocracia daquela instituição desde 2007.


A frente de oposição à titulação do território quilombola de Brejão dos Negros tem se utilizado de informações distorcidas para criar um clima de hostilidade ao processo junto às famílias não quilombolas do município. Entre as informações que fizeram circular em Brejo Grande, há desde afirmações de que outras terras seriam objeto de reforma agrária, de que as casas e terrenos dos quilombolas seriam transferidas para trabalhadores rurais sem-terra, até notícias de que os procedimentos de reconhecimento e titulação significariam a volta à escravidão.


A propagação de informações mentirosas propicia o estabelecimento de um clima de apreensão e medo entre a população essencialmente rural e, na sua maioria, desinformada dos procedimentos relacionados à titulação das terras quilombolas. Tal fato foi agravado por uma série de reportagens, veiculadas em junho de 2007 pela Rede Globo, as quais citavam os integrantes da comunidade de Brejão dos Negros, entre outros que a emissora também questionava, como "quilombolas suspeitos". Utilizando-se de argumentos de caráter ambiental, ou baseados em interpretações históricas, sem maior embasamento antropológico, a reportagem da emissora dava a entender a fragilidade da atribuição quilombola à comunidade.


A Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC), do Ministério Público Federal (MPF) em Sergipe, em parceria com o Incra e outras instituições, organizou então uma série de audiências públicas a fim de esclarecer à população local o processo de titulação das terras e suas consequências, desta forma combatendo a manipulação da informação, dos fatos e o desencadeamento de mais violência na localidade.


Até o momento, a titulação da Comunidade Quilombola de Brejão dos Negros não ocorreu. O Incra iniciou os estudos necessários para a elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação do Território (RTID), necessário à definição da área a ser demarcada e à consequente legalização da posse daquela comunidade sobre seu território tradicional.

Contexto Ampliado

O processo de reconhecimento da comunidade quilombola de Brejão dos Negros teve início no ano de 2005. Formada por pequenos agricultores e pescadores, a população desta localidade se viu diante da necessidade de romper com o processo secular de dominação e negação de sua identidade étnica. Subjugados durante séculos pelos desmandos de grandes fazendeiros e grupos políticos locais, os moradores de Brejão dos Negros ainda se dividem entre assumir ou não sua identidade étnica, estigmatizada por séculos de preconceito e discriminação. Até mesmo se dizer negro pode ser um problema para algumas dessas pessoas. A questão racial na localidade ultrapassa a adesão identitária em torno dos conceitos de raça, cultura, origem. Assumir sua herança cultural, em Brejo Grande, significa também enfrentar interesses arraigados, o que muitas vezes pode resultar em ameaças de morte e até mesmo assassinatos.


Empenhada na articulação da resistência aos interesses oligárquicos locais, a Associação Santa Cruz e seus diretores são apontados, pelos opositores em Brejo Grande, como os principais idealizadores de uma fraude que teria como objetivo atender a interesses pessoais de alguns indivíduos. Os que promovem este discurso não visualizam a comunidade de Brejão dos Negros como um ator social capaz de decidir seu próprio futuro, mas como massa de manobra a atender interesses diversos.


Além dos diretores da Associação Santa Cruz, o Padre Isaías, da Paróquia de Brejo Grande (ou Brejão), é apontado como um dos idealizadores da reivindicação quilombola e identificado, pelos grupos dominantes locais, como um adversário do povo de Brejo Grande. A campanha de difamação do pároco culminou com ameaças de morte e violento episódio de hostilidade, ocorrido em 2 de setembro de 2007, quando, após uma celebração do Bispo da Diocese de Propiá, Dom Mario Sivieri, reunido um grupo dos fiéis presentes para esclarecimento das dúvidas a respeito do que vinha ocorrendo, a igreja foi invadida por pessoas, aos gritos de abaixo o padre e mata o padre. Padre Isaías foi preventivamente convidado a passar alguns dias em Propiá a fim de aguardar que os ânimos no município se acalmassem. O prefeito, alguns fazendeiros e uma juíza, mulher do vice-prefeito de Brejo Grande, foram acusados de instigarem o ato agressivo na igreja do Brejão.


Em junho de 2007, a Rede Globo de Televisão se envolveu no conflito. Sob o pretexto de denunciar supostas fraudes na política de reconhecimento e titulação das comunidades e terras quilombolas – conferidas pelo decreto 4.887/2003, a emissora veiculou em rede nacional uma série de reportagens que questionavam a legitimidade de algumas demandas de comunidades. Suspeitas a respeito do reconhecimento da comunidade de Brejão dos Negros foram então suscitadas.


É importante lembrar que o conceito de remanescente de quilombo operado pela emissora não encontra respaldo na teoria antropológica que embasa os atuais Relatórios de Identificação e Delimitação do Território (RTID) quilombola ou pelas próprias organizações do movimento negro. Segundo a interpretação atualmente consagrada, ficou ultrapassada a idéia de reconhecimento de comunidade quilombola, baseada na descendência direta de seus integrantes de escravos fugidos. O conceito operado pelas políticas voltadas aos quilombolas foca nos processos sociais ocorridos do período colonial aos primeiros anos da República, na diversidade de relações construídas entre setores da população livre e a população negra (escrava ou não) e nos séculos de dominação e invisibilidade a que estas populações estiveram submetidas. Ao subordinar a legitimidade das demandas quilombolas à sua presença na historiografia oficial, a Rede Globo teria ignorado os processos que limitaram às tradições históricas orais, passadas de geração a geração, a preservação dos registros de parte significativa da história social dos negros e seus descendentes no Brasil.


A versão da emissora provocou diversas respostas e críticas dos movimentos e organizações ligadas aos quilombolas e repercutiu negativamente entre as entidades nacionais que lutam pela promoção dos direitos humanos, pelos direitos quilombolas e por justiça socioambiental. Por outro lado, a Globo conseguiu impulsionar uma campanha contrária à titulação.


Outra consequência das campanhas que se opõem à titulação e difamam as famílias e lideranças envolvidas na defesa das comunidades e territórios quilombolas foi a percepção, por parte das autoridades federais, da necessidade de esclarecimento à população sobre os processos de reconhecimento e delimitação dos territórios quilombolas no Brasil.


Para tanto, uma primeira audiência pública foi realizada no dia 21 de junho de 2007, em Brejo Grande. Em resposta, a Câmara Municipal de Vereadores convocou audiência extraordinária para o dia 15 de agosto de 2007, a fim de discutir o assunto. Na semana seguinte, a Juíza Rosivan Machado convocou o padre Isaías Nascimento e lideranças ligadas à Associação Santa Cruz para uma audiência. Segundo denúncias de membros da comunidade quilombola, essas audiências comporiam uma estratégia para desarticular a luta pela titulação. Como a juíza e diversos vereadores já haviam se manifestado abertamente contrários às pretensões da comunidade quilombola de Brejão dos Negros, tanto o padre, quanto as lideranças quilombolas não compareceram à audiência convocada pela juíza.


Entre outubro e dezembro de 2007, o MPF e outras autoridades, preocupadas com a propagação de notícias enganosas e o crescente clima de hostilidade em Brejo Grande, realizaram uma série de audiências públicas para esclarecer a população sobre o que de fato estava acontecendo. Em 19 de outubro de 2007 a Secretaria de Estado da Inclusão, Assistência e Desenvolvimento Social (Seides) coordenou audiência pública para "apresentar aos moradores os esclarecimentos necessários sobre o processo de reconhecimento da área como remanescente de quilombo". A audiência contou com a participação de membros da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC) do Ministério Público Federal em Sergipe (MPF/SE) e da Ouvidoria Agrária do Incra/SE. Em 23 de outubro de 2007, nova audiência pública debateu a questão quilombola no município, desta vez com a presença da Ouvidoria Agrária do Incra e da Fundação Cultural Palmares. Em 19 de dezembro, foi realizada a última audiência pública de 2007, com representantes do Incra, da Prefeitura Municipal e da Assembleia Legislativa de Sergipe. O tema foi a titulação das terras da comunidade quilombola de Brejão dos Negros.


Em fevereiro de 2009, a Fazenda Batateiras foi desapropriada como de interesse social e disponibilizada para os quilombolas do Brejão. Em fevereiro de 2009, o Incra promoveu reunião restrita com os cadastrados como quilombolas de Brejo Grande, reunião que contou com a participação de representantes da Diretoria Nacional e da Superintendência Regional do Incra, do Ministério Público Federal, e da prefeitura de Brejo Grande. A juíza Rosivan Machado teria sido convidada a se retirar da reunião. Em maio o Incra procedeu à contratação de uma antropóloga para conduzir os estudos, que se iniciariam no mês seguinte. Entre o reconhecimento da comunidade como remanescente de quilombo e o início dos estudos de identificação e delimitação das terras se passaram três anos – isso deixou a comunidade apreensiva com relação à vontade política do governo federal, representado pelo Incra, e sobre o destino que sua luta teria.


Enquanto o estudo não é concluído, a tensão permanecerá na região e os quilombolas de Brejão dos Negros continuarão na luta por seus direitos. Todo esse clima de tensão e insegurança jurídica tem fortes impactos sobre a qualidade de vida da comunidade e de seus apoiadores, e se constitui como um fator de risco para a sua saúde e integridade física.

Última atualização em: 14 de outubro de 2009

Fontes

ARTICULAÇÃO POPULAR DO BAIXO SÃO FRANCISCO. Quilombolas do Brejão dos Negros no Baixo São Francisco sofrem ataque da Globo e dos latifundiários. Disponível em: LINK. Acesso em: 22 abr. 2009.


__________. Conquista Quilombola em Brejão dos Negros na Foz do São Francisco. Disponível em: LINK. Acesso em: 22 abr. 2009.


BRASIL DE FATO. Sergipe: Autoridades usam mentiras para manter quilombolas sob domínio. Disponível em: LINK. Acesso em: 22 abr. 2009.


CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO ELOY FERREIRA DA SILVA. A mídia e os quilombos: parte da imprensa ignora conceitos e direitos das comunidades quilombolas. Disponível em: LINK. Acesso em: 22 abr. 2009.


COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO. Ficha Resumo do Território: Brejão dos Negros. Disponível em: LINK. Acesso em: 22 abr. 2009.


FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Certidões Atualizadas: Sergipe. Disponível em: LINK. Acesso em: 22 abr. 2009.


OBSERVATÓRIO QUILOMBOLA. Bispo sai em defesa de quilombolas de Brejão. Disponível em: LINK. Acesso em: 22 abr. 2009.

__________. Quilombolas, quem tem medo de auto-reconhecimento? Disponível em: LINK. Acesso em: 22 abr. 2009.

__________. Audiência explica reconhecimento para comunidade quilombola. Disponível em: LINK. Acesso em: 22 abr. 2009.

__________. Questão dos quilombolas é tema de audiência na cidade de Brejo Grande. Disponível em: LINK. Acesso em: 22 abr. 2009.

__________. Incra reinicia processo de regularização do quilombo Brejão dos Negros. Disponível em: LINK. Acesso em: 22 abr. 2009.


Dom SIVIERI, RELATÓRIO SUCINTO DOS ACONTECIMENTOS DO BREJÃO NO DIA 2 DE SETEMBRO DE 2007.

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Presidente da Assembleia apoia luta do padre Isaías, em Brejo Grande (10/09/2007)

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Com MPF ativo, quilombolas conquistam os seus direitos – Brasil de Fato – (12 de março de 2009).

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Titularizar o território e… resistir – enquanto espera por processo de titulação, comunidade de Brejão dos Negros não deixará que juíza e outras figuras a intimide.

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4 comentários

  1. Olá, tudo bem? última atualização foi em 2009, gostaria de saber se agora, em 2022, os quilombolas de Brejão dos Negros continuam lutando por seus direitos? O que aconteceu de mudança nesse período de treze anos?

    • Olá, Laleska,
      O Mapa vem enfrentando dificuldades e, por conta delas, trabalhando com equipe mínima desde 2016. Continuamos na luta, mas obrigad@s a nos ater, no caso das atualizações, a casos a respeito dos quais temos certeza quanto à existência de conflitos em ‘ebulição’. Não é o caso do Brejão dos Negros, até onde sabemos, mas ele está na nossa lista para ser revisto assim que possível.

      • Ah, compreendi, é triste saber o que muitas comunidades quilombolas passaram e ainda passam, tendo em vista que mesmo depois de muitos anos houve poucas mudanças…

  2. Me chamo Wellington de Jesus Bomfim, minha tese de doutorado (PPGS/UFS) trata desse caso. No entanto, defendi em 2017 e pouco acompanhei (bem como mudou) nos últimos anos o processo por lá. Sei que as Batateiras seguem com o grupo do Brejão dos Negros, e parte da área da Fazenda Capivara em posse do grupo da Resina, posse essa conseguida frente a SPU que cedeu as terras da união que correspondiam a essa propriedade (entre idas e vindas)… E mais recentemente, a luta é contra a carcinicultura e as investidas de uma empresa de exploração de petróleo que pretende se instalar na região da foz do rio São Francisco.

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