Resex Guaíba Roosevelt luta por sobrevivência própria, da floresta e de sua biodiversidade

UF: MT

Município Atingido: Colniza (MT)

População: Agricultores familiares, Beiradeiros, Extrativistas, Povos indígenas, Ribeirinhos

Atividades Geradoras do Conflito: Atuação de entidades governamentais, Madeireiras, Mineração, garimpo e siderurgia

Impactos Socioambientais: Alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território, Desmatamento e/ou queimada, Erosão do solo, Invasão / dano a área protegida ou unidade de conservação

Danos à Saúde: Piora na qualidade de vida, Violência – ameaça

Síntese

De acordo com a Associação dos Moradores Agroextrativistas da Reserva Extrativista (Resex) Guariba-Roosevelt (ARROMAR), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a Survival Internacional e o Instituto Socioambiental (ISA), a Reserva Extrativista Guariba Roosevelt foi criada em 1996 por meio do decreto Estadual 952/96, com área inicial de 57.630 hectares.

É a única reserva extrativista de Mato Grosso e uma das últimas áreas de extrativismo tradicional no estado. No entanto, seu tamanho inicial sempre foi considerado insuficiente pelos moradores da região, que sobrevivem da coleta da castanha, do óleo de copaíba e da borracha, além da prática da agricultura orgânica.

Para os moradores, segundo informações do Ministério Público Estadual de Mato Grosso (MP-MT), a área inicialmente abrangia apenas sete das 40 colocações da comunidade no Rio Guariba. Ou seja, a maior parte das áreas de roças, os castanhais, os seringais nativos e os locais privilegiados de pesca, coleta e caça estava fora do limite protegido.

O modo de vida das famílias extrativistas na Resex remonta a uma cultura de, pelo menos, 150 anos. A lógica de reprodução da vida ali praticada é perseguida por conceitos de sustentabilidade; no entanto, vem sendo cada vez mais ameaçada por grileiros, madeireiros e pela prática de queimadas criminosas para que parte do território seja transformado em pastagens para a pecuária, por exemplo.

Ao longo dos anos desde a criação da Resex, os moradores também brigam com o governo estadual num esforço para interromper o ciclo vicioso de implementação de decretos de redução da área que seria de usufruto e proteção exclusiva dos moradores.

Contexto Ampliado

De acordo com a definição trazida por reportagem de O Eco “O que é uma Reserva Extrativista”, as Reservas Extrativistas (RESEX) são espaços territoriais protegidos cujo objetivo é a proteção dos meios de vida e da cultura de populações tradicionais, assegurando o uso sustentável dos recursos naturais da área: “O sustento destas populações se baseia no extrativismo e, de modo complementar, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte”.

Ronaldo Silveira Lobão e Luciana Loto (2012) afirmam que o movimento dos seringueiros no Acre, na década de 1980, estimulou os trabalhadores, que recolhiam borracha das árvores de seringa na floresta amazônica, frente à pressão pela Reforma Agrária, chegarem a um consenso com o Governo estabelecendo uma área que conservasse a capacidade produtiva da floresta e assegurasse a permanência das famílias em suas colocações. Criam-se então as Reservas Extrativistas Florestais:

“Este modelo foi visto como positivo porque tinha o mesmo objetivo que a Reforma Agrária: que a terra cumprisse uma função social. E estava também incluído no conceito de atividades ecologicamente sustentáveis, recentemente adotado na comunidade cientifica. Estes seringueiros se reconheceram como extrativistas, e reconheceram que tal conceito abrangia outras formas de extrativismo.”

Ana Margarida Euler, Jean Everson da Silva e Hadamilton Almeida (2021) complementam que o conceito de reserva extrativista (Resex) surgiu em 1985, durante o Primeiro Encontro Nacional dos Seringueiros, em Brasília, liderado pelo seringueiro Chico Mendes. Este evento foi apoiado por organizações não governamentais e grupos universitários e deu início à proposição da “reforma agrária dos seringueiros”. Nesse debate, surgiu a ideia de Resex como espaço público, concedido a comunidades locais que têm na terra e nos seus recursos naturais sua condição fundamental de vida, de participação econômica e política, de produção e expressão sociocultural.

No caso da luta pela proteção territorial da Resex Guariba Roosevelt, os seringueiros também foram atores fundamentais. De acordo com Regina Aparecida da Silva (2011), eles foram incentivados pelas campanhas do governo brasileiro para enfrentar a selva amazônica e, conforme relatos nativos capturados pela autora, alguns deles chegaram no MT por volta de 1870 em meio a conflitos com indígenas.

Quando, mais de 100 anos depois, em 1988, foi assassinada a liderança Chico Mendes, em Xapuri, no Acre, emergiu a necessidade política da coletividade se firmar enquanto identidade e concretizar a criação das reservas extrativistas no país.

Regina Silva também aponta que, na reserva Guariba Roosevelt, os seringueiros também são conhecidos como beiradeiros, pois vivem às margens do rio Guariba e do rio Roosevelt, no município de Colniza, extremo noroeste do Estado.

Além dos beiradeiros, outro trabalho de Edima Silva (2015) acrescenta que a Resex Guariba-Roosevelt é também habitada por uma miscigenação de grupos sociais com interesses diversos: indígenas, extrativistas, pequenos agricultores, posseiros e outros grupos.

Há um devassamento e uma ocupação altamente conflituosa que se arrasta por mais de 100 anos de história ocupacional, refletindo o que vem ocorrendo em todo o território amazônico, “que em poucos anos, foi palco do mais gigantesco e permissivo apossamento de terras públicas, um apossamento cartorial escamoteado, que se soma ao apossamento pelo atual esquema de grilagem de terras devolutas”.

Reportagem da Agência Brasil realizada no interior da Resex, em 2016, resgatou a narrativa de um dos moradores sobre anos anteriores à criação da reserva. Segundo o Presidente da Associação dos Moradores da Reserva Extrativista Barra-Guariba, Ailton Pereira dos Santos, até o final dos anos 1980 não havia acesso por estradas até cidades de Mato Grosso. “Essa região não era reconhecida pelo estado. Até 1995, não tinha dinheiro aqui.”

“O único contato dos ribeirinhos com o mundo exterior era por meio dos ‘marreteiros’, como eram chamados os atravessadores que vinham do Amazonas e passavam de barco pelas comunidades trocando mercadorias pela produção dos extrativistas. Trabalhávamos o ano todo e no final sempre ficávamos devendo, recorda o extrativista Valterino Ferreira Santos, também morador da reserva.

Quando o governo de Mato Grosso, no início da década de 1990, criou pontos de fiscalização no Rio Guariba para impedir o acesso dos marreteiros  (como eram chamados os atravessadores que vinham do Amazonas e passavam de barco pelas comunidades trocando mercadorias pela produção dos extrativistas)a comunidade enfrentou problemas sérios. “Muitas famílias foram embora nessa época, foi difícil sobreviver aqui” contou Valterino, o Teca, lembrando que nesse período os que ficaram vendiam o que extraiam por preços muito baixos para atravessadores que apareciam ocasionalmente.

Diante destes e demais problemas relevantes que inviabilizavam a permanência e a sobrevivência no território, os povos desta região foram impulsionados pela concretização da primeira Resex no Brasil em 1990, o Alto Juruá no Acre, e pela identificação com os demais povos da floresta e sindicatos rurais na vasta Amazônia brasileira. Criaram assim, no ano de 1993, a Associação dos Seringueiros do Guariba Roosevelt, surgida da discussão inicial do sindicato dos trabalhadores de Aripuanã e conquistando o apoio popular, segundo afirma Regina Silva (2011).

Em 19 de junho de 1996, por meio do decreto 952 foi criada a Resex Guariba-Roosevelt, com 57.630 hectares, para assegurar a conservação dos recursos naturais na área por meio da exploração autossustentável promovida pela população extrativista.

Posteriormente, com a pressão popular junto à Associação dos Seringueiros e movimentos sociais, discutiu-se a ampliação da reserva para abarcar áreas e atores que denunciavam ter sido excluídos do tamanho oficialmente homologado, além de denunciarem a falta de proteção da Resex, pois a mudança de status do território para uma reserva ambiental não os poupou das crescentes invasões de madeireiros e das queimadas.

A partir desta constatação, foram realizados estudos técnicos com abordagem territorial, cultural, social, ambiental e econômica, como resgatou o Ministério Público do Estado do Mato Grosso (MP- MT), que demonstraram a importância da definição de uma área que garantisse as formas sustentáveis de exploração dos recursos, as singularidades culturais e reais possibilidades de sobrevivência.

A criação da reserva extrativista estadual ainda não garantiu regularização fundiária da área protegida. Em reportagem da Agência Brasil (2016), constatou-se que os fazendeiros com terras na região estavam com as propriedades interditadas, aguardando indenização. Quando da criação da reserva constavam registros e processos de títulos definitivos em favor de 37 proprietários, entre pessoas físicas e jurídicas.

Nesse ano de 2006, a comunidade passou a ter o apoio do Projeto Pacto das Águas, patrocinado pela Petrobras, que capacitou os extrativistas em boas práticas e prestou assessoria para a elaboração de projetos para captação de recursos e construção de parcerias comerciais mais justas.

De acordo com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Aripuanã, o projeto teve como missão consolidar estratégias de desenvolvimento pautadas na manutenção da floresta amazônica e da cultura destas populações, que buscavam opções de renda distintas da pecuária, mineração e madeireiras.

Em 2007, o projeto apoiou a produção de castanha, o que estimulou, em 2010, a criação da Associação dos Moradores Agroextrativistas da Resex Guariba Roosevelt Rio Guariba (AMORARR).

De acordo com a Agência Brasil, com o recurso advindo das práticas concretizadas pelo projeto, a associação compra a produção das famílias à vista e estoca a castanha para negociar posteriormente com o melhor valor. “Hoje a gente que dá o preço, não precisamos mais dos atravessadores. São as empresas que procuram a gente, nem precisamos ir atrás”, disse Ailton.

Em 2007, a Resex foi ampliada por meio da Lei 8.680/07 em mais 80.462ha, totalizando aproximadamente 138.092ha, como também informa o Instituto Socioambiental. No entanto, a referida Lei (8.680/07) definiu que as áreas ampliadas serviriam para regularização e compensação ambientais de assentamento na área denominada “4 reservas”.

O MP-MT, nos autos do processo n° 739-12.2012.811.0085, classifica a área como um condomínio florestal que totaliza 86.354 hectares. Segundo o Tribunal de Justiça na Comarca de Terra Nova do Norte, trata-se de área que envolve relevante discussão agrária e ambiental incidente nos Municípios de Terra Nova do Norte, Nova Guarita e Colniza.

De acordo com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a Compensação de Reserva Legal – CRL é um dispositivo, previsto no inciso III e parágrafos 5° a 7° do art. 66 do Código Florestal (Lei Federal n° 12.651/2012), por meio do qual as Unidades de Conservação de domínio público com pendência de regularização fundiária podem receber, em doação, imóveis privados localizados em seu interior para fins de Compensação de Reserva Legal de imóveis fora da UC desde que sejam localizados no mesmo bioma.

Nesse intuito o ICMBio, após análise técnica, emite certidão de habilitação do imóvel para este fim assegurando aos interessados a legitimidade da transação do imóvel.

Segundo o MP-MT, a Lei 8.680/2007 foi declarada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça em abril de 2013. No entender do então juiz substituo Alexandre Sócrates Mendes:

“(…) quando o Estado fomenta a transferência da reserva legal para a mencionada Reserva Extrativista, com fundamento na lei estadual n° 8.680/2.007, estava falsamente incutindo nos proprietários das ‘4 Reservas’ que o passivo ambiental incidente em suas propriedades estará definitivamente resolvido, quando, em verdade, tal fato não encontra ressonância no art. 225 da CRFB.

Ora, a Reserva Extrativista está ocupada ilegalmente, e em processo de crescente degradação ambiental. Com isso a responsabilidade ambiental dos proprietários não será elidida pela citada legislação estadual e, esvaindo-se a reserva legal transferida, subsistirá a responsabilidade propterrem – automática – dos proprietários em, novamente, recomporem suas reservas legais.

De outra banda, o perigo da demora também é evidente. Inicialmente pelo latente dano ambiental no interior da Reserva Extrativista Guariba Roosevelt, que dia a dia vem aviltando a situação dos proprietários que efetuaram a permuta e transferiram sua fração ideal das ‘4 Reservas’ para a Reserva Extrativista Guariba-Roosevelt.”

De acordo com o Instituto Socioambiental, em janeiro de 2015, a área da Resex foi reduzida para o limite original pela Lei 10.261/2015. Conforme interpretação dos moradores da reserva, o então governo, visando atender posseiros do município de Terra Nova do Norte:

“revoga o decreto de ampliação da Resex, e altera a destinação da área, que passaria a servir como área de compensação de reserva legal dos referidos posseiros do município de Terra Nova do Norte. Posseiros estes que invadiram as áreas de reserva legal do assentamento denominado Quatro Reservas. “

Em 13 de abril do mesmo ano, o governo do estado voltou atrás na decisão e ampliou a área por meio do decreto no 59: “Fica ampliada a área da Reserva Extrativista Guariba-Roosevelt, que foi criada pelo Decreto no. 9.521, de 19 de junho de 1996, localizada nos Municípios de Aripuanã e Colniza, totalizando aproximadamente 164.224,00 ha (cento e sessenta e quatro mil duzentos e vinte e quatro hectares), e perímetro de 654,74 km.”

No entanto, em dezembro de 2016, o Decreto Legislativo nº 51/2016, da Assembleia Legislativa do Mato Grosso, sustou o anterior, reduzindo a área de aproximadamente 164 mil hectares para cerca de 57 mil hectares. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), na época, a reserva abrigava 300 seringueiros, em 36 comunidades.

A Survival Internacional noticiou que a desafetação da Resex acontecia na esteira de outras medidas de desmonte de mais áreas protegidas e do próprio Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), instituído pela Lei n.º 9.985, de 18 de julho de 2000. Os moradores da comunidade lançaram uma petição contra o Decreto Legislativo nº 51/2016.

Em junho de 2017, por meio de Ação Civil Pública ajuizada pelo MPE, uma decisão da Justiça, em caráter liminar, suspendeu o Decreto Legislativo no 51/2016 e a Resex voltou a ter 164.224,00ha. Em 30 de janeiro de 2019, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso informou que a Vara de meio ambiente da comarca de Cuiabá julgou procedente ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Estado de Mato Grosso e declarou nulo o Decreto Legislativo 51/2016, que estabelecia a redução da Guariba Roosevelt.

A sentença, proferida pelo juiz de Direito Rodrigo Roberto Curvo, determinou ainda o cancelamento da tramitação de todos os processos de regularização e legitimação de posse de áreas inseridas nos limites da Reserva Extrativista Guariba-Roosevelt, em conformidade com o Decreto Estadual 51/2015. Novos títulos de propriedade também não poderiam ser concedidos.

Mesmo após o aval da justiça respaldando os limites territoriais em benefício dos moradores da Resex, as pressões do estado para o favorecimento de particulares no seu interior continuaram. O promotor Daniel Luís dos Santos declarou à Agência Brasil que a rotatividade de promotores na região era enorme. Segundo ele, na última grande operação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), em meados de 2015, foram autuadas 30 pessoas e encontradas grandes áreas devastadas, uma delas de 4 mil hectares de desmatamento.

“Uma estrada saía da vila do Guariba, passava por uma fazenda e ia para dentro da Reserva Extrativista Guariba Roosevelt. Essa estrada não tinha outro caminho, não tinha outra finalidade senão entrar na Resex. Lá foi encontrada uma esplanada onde se explorava madeira e era escoada por essa estrada para, provavelmente, ter toras esquentadas em Guariba mesmo, pois não vale a pena transportar a madeira bruta para muito longe. É provável que essas toras tenham sido serradas em Guariba e escoadas como legais.”

A Secretaria de Meio Ambiente do estado avaliou em parecer técnico que a Resex, além de preservar o meio ambiente e o modo de vida dessas populações, contribui para a conectividade ambiental da região noroeste e “ao lado das demais unidades de conservação do noroeste de Mato Grosso maximiza os esforços de conservação e funciona como barreira ao avanço do Arco do Desmatamento em sentido norte”.

Gerente da reserva, o funcionário da Secretaria de Meio Ambiente José Cândido Primo contou que a estimativa é de que 4 mil cubos de madeira tenham sido retirados da Resex em 2015. “No distrito Guariba tem 42 serrarias no papel. Instaladas, são 18. Aptas para operar, são apenas 8.” Segundo ele, existe uma operação montada na região para forjar notas e transformar madeira ilegal em legal.

Para a mesma reportagem da Agência Brasil, Ailton Pereira dos Santos, então presidente da Associação dos Moradores Agroextrativistas da Resex Guariba-Roosevelt, rio Guariba (Amorrar), disse que os órgãos de fiscalização passaram a focar cada vez mais na reserva, o que era raro em 2015.

Ele defendeu a delimitação da área da reserva como medida para impedir invasões e definir a área protegida. “Hoje não tem placa, cerca, nada. Isso vai facilitar até para que nós, moradores, também possamos ajudar a fiscalizar.”

Alísio Pereira dos Santos, irmão de Ailton, lamentou ter visto o desmatamento avançando tão rapidamente na região. “Apesar de a gente cuidar e manter a floresta conservada aqui na reserva, essa destruição total da mata em volta da área protegida está levando à diminuição de animais de caça e do volume da água do Rio”, avalia.

Ele contou que, nos últimos 20 anos, sempre a partir de agosto, a fumaça toma conta de toda a região. “É uma prática generalizada, especialmente entre grileiros. A gente ainda come carne de bicho do mato, mas está difícil caçar por aqui agora. Os catetos, os veados, foram embora por causa das queimadas anuais.”

Um dos principais problemas relatados pelas famílias à Agência Brasil era a dificuldade de buscar atendimento médico em casos de urgência, bem como acessar políticas públicas. Ailton Pereira dos Santos acrescentou a ocorrência de uma nova modalidade de violação ao território, denominada grilagem da castanha. Isto passou a ocorrer quando o alimento ganhou maior visibilidade e começou a dar dinheiro após os planos de manejo.

Segundo ele, na última temporada da castanha (2015), que foi de novembro a abril, os moradores da Resex perceberam que alguns castanhais haviam sido saqueados: “Aqui na comunidade todo mundo se conhece e sabe bem quais são os locais de coleta. Ao chegarmos em algumas áreas, vimos que a castanha já havia sido levada. Na associação, só compramos castanha dos associados, mas é possível vender com preço um pouco mais baixo em outros locais.”

Muitos moradores da Resex reclamaram que a Cooperativa Mista do Guariba (Comigua), criada a partir de uma parceria com a Universidade Federal do Mato Grosso para beneficiar a castanha-do-Brasil, pode representar um risco para a Associação de Moradores da Resex, por viabilizar a venda de castanha de origem desconhecida.

A cooperativa paga R$ 3,00 pelo quilo da castanha com casca e qualquer pessoa pode se tornar cooperado mediante o pagamento de uma taxa de R$ 1,5 mil. A Comigua tem maquinário superior ao da Associação de Moradores da Reserva, o que permite que possam embalar a castanha e fabricar barras de cereais e biscoitos.

Apesar desta ameaça, o gerente da Resex Guariba-Roosevelt, José Cândido Primo, afirmou que o objetivo não é concorrer com a associação, mas incentivar a cadeia econômica da castanha na região e envolver cada vez mais a população local, sem distinção entre extrativistas tradicionais e pessoas que atuavam em outros ramos. “Queremos mostrar que existem alternativas econômicas na região que não dependem da destruição da floresta”, afirmou à Agência Brasil.

Reportagem do De Olho nos Ruralistas (out. 2019) denunciou que um avião pulverizador sobrevoou a Resex Guariba-Roosevelt, no dia 28 de fevereiro de 2019. A aeronave fez voos rasantes sobre as casas dos moradores e espalhou veneno. O caso foi registrado na delegacia. Este episódio foi marcante na vida dos moradores, pois sinalizava a reação dos apoiadores do discurso do então presidente eleito Jair Bolsonaro.

A reportagem resgata quando este compareceu em Mato Grosso, no dia 29 de agosto de 2019, afirmando ter “congelado” a criação de novas unidades, medidas que “atrasam o progresso para a região”. Em reunião com o governador Mauro Mendes (DEM), Bolsonaro afirmou:

“No Mato Grosso, está previsto para ser demarcado um parque nacional Taiamã. Está em estudo avançado a criação da Reserva Extrativista Guariba-Roosevelt. Isso é de governos anteriores. No meu, está congelado. E também a ampliação do Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense. O meu entendimento é que o estado se inviabiliza se esse tipo de política continuar a se fazer presente.”

A partir dessas declarações os moradores denunciam que a vida na reserva, que já era difícil, piorou: “A troca de governo mudou tudo por aqui, agora eles falam que a reserva tem que acabar, que o presidente pensa o mesmo que eles”, afirmou Ailton Pereira dos Santos. “Isso provocou um aumento de desmatamento no entorno, invasões na reserva para desmate e queimadas”.

Raimundo Rodrigues dos Santos, que denunciou o ataque junto a outros moradores à Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema), diz ter sido ameaçado de morte depois do episódio: “Nos últimos meses têm se intensificado as invasões de extração de madeiras, grilagem de terra, grandes desmates, assim como várias construções na margem esquerda do Rio Guariba, próximo ao Distrito Guariba. Pessoas que passaram por um córrego na reserva afirmaram que também está ocorrendo exploração garimpeira sem nenhuma autorização.”

Apenas em agosto de 2019, a Sema nomeou Alcemir Pereira de Freitas como gerente da área. A Sema afirmou à reportagem, em nota, que acatou a indicação feita pelas associações extrativistas.

Em 24 de agosto de 2020, reportagem de Marcio Camilo para o Amazônia Real  levantou as consequências do período de queimada recorrente em terras que abrangem o estado de Mato Grosso. A estiagem agravava os focos de calor em áreas de agropecuária já degradadas e expandia para áreas nativas provocando grandes incêndios florestais, sobretudo no Pantanal, atingindo Unidades de Conservação (UCs) e Terras Indígenas. Agosto foi analisado como o mês mais crítico, registrando 690 focos, bem mais do que julho, que terminou com 567 queimadas.

De acordo com o coordenador do Núcleo de Inteligência Territorial do Instituto Centro de Vida (ICV), Vinicius Silgueiro, dos 595 focos de Colniza, pelo menos 400 acontecerem desde 1º de julho, quando começou o período proibitivo das queimadas (de 1° de julho a 30 de setembro), estabelecido pelo governo estadual. “Ou seja, de tudo que ocorreu em Colniza esse ano, 96% é com toda certeza ilegal e criminoso”, ressalta Vinicius.

Em relação às categorias fundiárias, o pesquisador ressaltou que 17% dos focos ocorreram “na Reserva Extrativista (Resex) Guariba-Roxosevelt, 36% em imóveis com CAR [Cadastro Ambiental Rural], concedidos pela Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema-MT); 42% em áreas não cadastradas e 5% em assentamentos”.

Juliana Arini, da InfoAmazonia, também complementou informações sobre as queimadas no estado com dados do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes-Inpe). Trata-se de um projeto do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais que monitora o desmate por corte raso na Amazônia Legal e produz desde 1988 as taxas anuais de desmatamento na região.

Segundo a pesquisa, 17.565 hectares da Resex Guariba-Roosevelt (11% da área total) foram desmatados até 2019. Desse total, apenas 17% (2.915 hectares) já estavam assim na data de sua criação, em 1996. O restante (14.650 hectares) foi desmatado desde então, principalmente por invasores em busca de madeira. Em 2019, a Resex foi a terceira sob gestão estadual com mais focos de calor em todo o território nacional.

A moradora Raimunda da Silva analisou para a reportagem um conjunto de situações segundo as quais as queimadas tornavam-se tão ameaçadoras na região: “A gente fica ali, do outro lado do rio sufocado e fitando a linha de fogo que se espalha por todos os lados. Dá aquela agonia, só de pensar nas chamas chegando.

A colocação de seringa [os caminhos da floresta que levam às árvores de onde se extrai o látex] do meu marido fica perto de áreas de fazenda [na verdade, invasões à resex]. Se pegar fogo, acabou tudo. Mas, não vamos sair. Ninguém nos tira da resex. É nossa casa. A floresta cuida de nós, e nós cuidamos dela. Somos como as árvores, enquanto estivermos de pé, vamos ficar.”

No novo ciclo de queimadas de 2020, iniciado em julho, foram inúmeros os registros de áreas de floresta derrubadas por invasores na forma de leira. O termo, explica Arini, é usado para definir o primeiro estágio de uma das técnicas de queimada para conversão de áreas florestais em pastagens: depois que a floresta é derrubada, galhos e tocos são amontoados.

Em protesto, os moradores da Resex fizeram um manifesto de resistência nas redes sociais. Intitulado “Desabafo dos seringueiros”, o vídeo foi gravado às margens do rio Roosevelt durante uma venda de borracha na rede social Facebook. Ailton Pereira dos Santos mandou a mensagem para a Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (SEMA-MT), relembrando que nenhum representante da entidade estava presente na primeira venda do fabril de sangria do látex, no início de setembro de 2020. “Estamos resistindo, apesar da falta de apoio”, disse.

De acordo com o Comando do Batalhão do Corpo de Bombeiros Militar de Mato Grosso, a corporação conta com dois Instrumentos de Resposta Temporários (IRT) para atender à reserva extrativista: em Aripuanã, a Brigada Municipal Mista 7 é composta por dois bombeiros militares, ao passo que, em Colniza, a Base Descentralizada Bombeiro Militar 11 é formada por quatro bombeiros militares, sem a atuação de aeronaves.

Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), o desmatamento na Resex Guariba-Roosevelt aumentou em 300% entre 2016 e 2020, pressionando tanto os moradores da unidade de conservação como os indígenas isolados que vivem em um território limítrofe.

Reportagem de Marcio Camilo para o Amazônia Real divulgou que, no início de maio de 2022, uma operação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) queimou cerca de 20 barracos de grileiros dentro da Resex Guariba-Roosevelt. Em represália, a sede administrativa e o barracão de armazenamento de castanha do Brasil da Amorarr foram queimados durante ação criminosa, no dia 18 de maio de 2022.

O atentado aconteceu no mesmo dia em que seria realizada uma audiência pública promovida pelo MP-MT para debater o avanço da grilagem e que acabou sendo cancelada pelo próprio órgão para a realização de reuniões técnicas no distrito de Nova União, em Colniza, envolvendo todas as populações atingidas.

“Tocaram fogo no barracão da Resex hoje de manhã (ontem, dia 18). Aqui o cantil com gasolina e pano”, disse um morador da comunidade que fez a gravação, ao apontar a câmera para o recipiente, jogado próximo ao local, indicando que se tratava de uma ação criminosa. O cantil foi encaminhado para perícia e a comunidade registrou um Boletim de Ocorrência na polícia. O barracão serve para armazenar amêndoas como a castanha do Brasil, além de equipamentos como secador e qualificador, que servem para o beneficiamento dos produtos.”

Em nota, as duas Associações dos Moradores Agroextrativistas da Resex Guariba Roosevelt (Amorrar e Amarr) repudiaram o ataque:  “É uma tentativa de nos calar e de nos intimidar frente às nossas constantes reivindicações para consolidação do nosso território tradicional”.

O ataque à Resex Guariba-Roosevelt revelou que os grileiros têm se aproximado cada vez mais da Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo, onde vive o povo isolado Kawahiva, no município de Colniza. Isso porque o lado oeste da Resex, onde encontra-se o Rio Guariba, faz divisa com a TI.

“Ela [a reserva] está servindo como porta de entrada para o território dos Kawahiva. Já ocorreram vários registros sobre isso. Nós levamos ao conhecimento da Funai [Fundação Nacional do Índio] essas situações”, afirma Elias Bigio, indigenista da Operação Amazônia Nativa (OPAN), organização com sede em Mato Grosso.

A Amazônia Real questionou a Sema-MT sobre as medidas que o órgão desenvolve na região com o objetivo de combater a grilagem no interior da Resex. A Secretaria, por meio da assessoria de imprensa, informou que encaminharia uma nota sobre o assunto, o que não ocorreu até a publicação da reportagem.

Já a Polícia Civil informou que investiga o caso. Detalhou que uma testemunha foi até o núcleo da Polícia Militar do distrito de Guariba e relatou que, ao passar em frente à associação, notou que na parte dos fundos do galpão havia fumaça, e depois constatou que se tratava de um incêndio.

“Ele e outras pessoas que estavam no local conseguiram controlar o incêndio e encontraram no barracão um pedaço de algodão e um recipiente vermelho com um restante de gasolina dentro. A Polícia Civil investiga o caso”, destacou a polícia, em nota.

A Funai foi procurada para falar sobre a ameaça aos indígenas isolados, mas não respondeu. A reportagem também procurou o Ministério Público Federal em Mato Grosso, mas o órgão tampouco se pronunciou.

Enquanto as ameaças contra os moradores da Resex vão sendo cumpridas paulatinamente, seja por meio da prática mais direta dos grileiros, pelas declarações advindas do então presidente da República, ou mesmo por meio das iniciativas do governo estadual de sustar a ampliação da Resex (ou promovê-la beneficiando produtores alheios ao território), a população exige seu direito de permanecer de forma digna às margens dos rios Guariba e Roosevelt.

Sabem elas desde muito tempo que seu modo de viver deve ser respeitado e protegido, pois só assim pode ser garantida também a sobrevivência da floresta e de toda a diversidade da vida que nela se abriga.

 

Atualizado: Julho 2022

 

Cronologia

1985 – Primeiro Encontro Nacional dos Seringueiros, em Brasília, liderado pelo seringalista Chico Mendes, inaugurando o conceito de reserva extrativista (Resex).

1988 – Assassinato de Chico Mendes em Xapuri, no Acre, emergindo a necessidade política da coletividade se firmar enquanto identidade e concretizar a criação das reservas extrativistas no país.

1990 – Governo de Mato Grosso cria pontos de fiscalização no Rio Guariba para impedir o acesso dos marreteiros, comerciantes ambulantes, provocando dificuldades de sobrevivência na vida da comunidade.

19 de junho de 1996 – Criada a Reserva Extrativista Guariba Roosevelt por meio do decreto Estadual 952/96, com área inicial de 57.630 hectares.

2006 – A comunidade da Resex passa a ter apoio do Projeto Pacto das Águas, patrocinado pela Petrobras, que capacita os extrativistas em boas práticas e presta assessoria para a elaboração de projetos para captação de recursos e construção de parcerias comerciais mais justas.

2007 – O projeto Pacto das águas inicia apoio à produção de castanha.

2007 – A Resex é ampliada por meio da Lei 8.680/07 para mais 80.462ha, totalizando-se aproximadamente 138.092há. No entanto, a referida norma define que as áreas ampliadas serviriam para regularização e compensação ambientais de assentamento na área denominada “4 reservas”.

2010 – Criação da Associação dos Moradores Agroextrativistas da Resex Guariba Roosevelt Rio Guariba (AMORARR).

Abril de 2013 – A vinculação da ampliação da RESEX com compensação ambiental por déficit de reserva legal é julgada pelo Tribunal de Justiça, e a Lei 8.680/2007 é declarada inconstitucional.

Janeiro de 2015 – A área da Resex é reduzida para o limite original pela Lei 10.261/2015.

13 de abril de 2015 – O governo do estado do MT volta atrás na decisão e amplia a área por meio do decreto no 59.

Dezembro de 2016 – O Decreto Legislativo nº 51/2016, da Assembleia Legislativa do Mato Grosso, susta o anterior, reduzindo a área de aproximadamente 164 mil hectares para cerca de 57 mil hectares.

28 de fevereiro de 2019 – Um avião pulverizador sobrevoa a Resex Guariba-Roosevelt com voos rasantes sobre as casas dos moradores e espalhando veneno.

29 de agosto de 2019 – O então presidente Jair Bolsonaro, em Mato Grosso, afirma ter “congelado” a criação de novas unidades de conservação, como as Resex que, segundo ele, atrasam o progresso da região.

Agosto de 2020 – Mês analisado como o mais crítico de queimadas no Mato Grosso.

Julho de 2020 – Registros de áreas de floresta derrubadas por invasores na Resex.

Maio de 2022 – Operação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) queima cerca de 20 barracos dos grileiros dentro da Resex Guariba-Roosevelt.

18 de maio de 2022 – Em represália à atuação do Ibama no início de maio de 2022, a sede administrativa e o barracão de armazenamento de castanha do Brasil da Amorarr são queimados durante ação criminosa.

 

Fontes

ARINI, Juliana. Extrativistas cercados pelo fogo se dizem abandonados. Info Amazonia, 16 set. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3y1Qpi5. Acesso em: 11 jul. 2022.

BORGES, Lázaro Thor. Com Bolsonaro, a vida na única reserva extrativista do Mato Grosso está mais difícil. De Olho nos Ruralistas, 08 out. 2019. Disponível em: https://bit.ly/3uvCkc7. Acesso em: 11 jul. 2022.

CAMILO, Marcio. Amazônia em Chamas: Povo Bororo perde árvores frutíferas e medicinais para o fogo no Mato Grosso. Amazônia Real, 24 ago. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3OK8ubl. Acesso em: 11 jul. 2022.

_____ Criminosos colocam fogo em sede e barracão na Resex Guariba-Roosevelt, a única do Mato Grosso. Amazônia Real, 20 maio 2022. Disponível em: https://bit.ly/3nkXaGY. Acesso em: 11 jul. 2022.

DINIZ, Mariana. Contra a corrente, guardiões da floresta lutam para manter a Amazônia em pé. Agência Brasil, 19 maio 2016. Disponível em: https://bit.ly/3nkx07p. Acesso em: 11 jul. 2022.

JUSTIÇA garante ampliação da Reserva Extrativista Guariba-Roosevelt. Tribunal de Justiça do Mato Grosso, 14 fev. 2019. Disponível em: https://bit.ly/3Aakhvl. Acesso em: 11 jul. 2022.

LOBAO, Ronaldo Joaquim S.; LOTO, Luciana. Análise de dois casos de modelos de gestão compartilhada em pescarias artesanais: Reservas extrativistas marinhas (Brasil) vs. áreas de manejo e exploração de recursos bentônicos (Chile). Confluências, vol. 14, n. 1. Niterói: PPGSD-UFF, dez. 2012.

RESERVA no Mato Grosso é nova vítima de políticos. Survival Internacional, 31 mar. 2017. Disponível em: https://bit.ly/39VE0UY. Acesso em: 11 jul. 2022.

REVELADO: Plano genocida para abrir território de tribo isolada na Amazônia. Survival Internacional, 11 abr. 2017. Disponível em: https://bit.ly/3OxMEYT. Acesso em: 11 jul. 2022.

SILVA, Regina Aparecida. Do invisível ao visível. O mapeamento dos grupos sociais do Estado do Mato Grosso. Tese de Doutorado. Universidade Federal de São Carlos, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde. Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Recursos Naturais, 2011. Disponível em: https://bit.ly/3NYru59. Acesso em: 11 jul. 2022.

 

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