Comunidade de Sítio Conceiçãozinha, no bairro Vicente de Carvalho, luta por sobrevivência e contra expansão do Porto de Santos

UF: SP

Município Atingido: Guarujá (SP)

População: Moradores em periferias, ocupações e favelas, Pescadores artesanais

Atividades Geradoras do Conflito: Atuação de entidades governamentais

Impactos Socioambientais: Alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território, Poluição de recurso hídrico

Danos à Saúde: Piora na qualidade de vida

Síntese

No município de Guarujá, região metropolitana da Baixada Santista/SP, existe uma comunidade vizinha ao Porto de Santos com 1.700 famílias, cerca de 6 mil pessoas. O lugar é conhecido como Sítio Conceiçãozinha, no bairro Vicente de Carvalho, cuja ocupação remonta ao final da década de 1890, segundo depoimentos dos moradores mais antigos.

Em diversos períodos após a década de 1960, eles foram ameaçados por projetos de crescimento do Porto e contaminados por metais pesados advindos de indústria química, como a Dow Chemical. De acordo com Carlo Romani (2010), na entrada do canal de Santos, a antiga vila de Conceiçãozinha encontra-se literalmente encravada entre áreas ocupadas pelas empresas Dow e Cargill e o Terminal de Fertilizantes (Tefer).

Conforme levantamento da Associação Brasileira de Terminais e Recintos Alfandegados (ABTRA), o Porto de Santos, inaugurado em 1892 pela então Companhia Docas de Santos (CDS), foi, até 2022, considerado o terceiro maior da América Latina, depois de Porto de Colón, no Panamá, e Porto de El Calao, no Peru.

Segundo Marina Souza (2018) e Carlo Romani (2010), esse fato foi responsável por muitas transformações na cidade e na Baixada Santista como um todo. Agentes privados e a ação articulada entre as três esferas executivas do poder público geraram uma exploração do estuário, modificando a faixa costeira com o desmatamento de restingas e o aterro de mangues.

 

Contexto Ampliado

Conforme entrevista de Newton Rafael Gonçalves, o Newton da Conceiçãozinha, da Coordenação dos Movimentos Populares (CMP) de Guarujá à TV dos Trabalhadores (TVT) em 24 de fevereiro de 2023 e transmitida pelo canal do Youtube, a comunidade caiçara do sítio Conceiçãozinha é uma comunidade secular, “talvez até milenar”, complementa. Antigamente, era chamada de Ilha de Itapema, próxima ao rio Santo Amaro, relembrando a presença Guarani, que, embora pouco numerosa, de acordo com seu relato, foi muito significativa para a formação da população de Conceiçãozinha.

A entrevista de Newton da Conceiçãozinha, articulada com análise histórica de Carlos Romani (2010), oferece alguns elementos para entender como se configurou o conflito em Sitio Conceiçãozinha. A construção da atual Base Aérea de Santos foi o primeiro empreendimento a causar conflito no território. A proposta inicial data de 1920, e seria instalada em uma faixa de 500 por 2.000 metros de extensão sobre manguezais a serem aterrados no território. No entanto, a execução do projeto nesse sítio foi abandonada por ser o terreno demasiado pantanoso, segundo parecer emitido pela construtora encarregada, mas já se previu nessa mesma área uma reserva de espaço para a futura expansão portuária.

A mudança de endereço da base aeronaval propiciou aos moradores do Sítio Conceiçãozinha a continuidade do usufruto de uma extensa área, com uma dezena de ranchos ao longo da faixa costeira do bairro de Vicente de Carvalho. Essa paisagem permaneceu relativamente inalterada até o início da década de 1960, quando houve a instalação da primeira empresa em Sítio Conceiçãozinha, a Indústria Nacional de Apetrechos de Pesca (Inap).

Essa reconstrução coincide com relato de Newton (2023), pois, na década de 1960, com a construção do Iate Clube de Santos nas proximidades do rio Santo Amaro, os Guarani se dispersaram e parte deles se deslocou para o núcleo do Sítio Conceiçãozinha, que já abrigava uma indústria de pesca, a Inap, o que atraiu mais gente para a comunidade caiçara:

“Essa comunidade nativa lá do rio Santo Amaro, que era uma comunidade Guarani, pouco a pouco foram saindo. Eu também venho desta descendência. Parentes meus nasceram na cidade de Itanhaém. De lá para cá, a Ilha era constituída dos serviços dos bananais e um pouquinho do turismo”.

De acordo com tese de Fernanda Moreira (2018), em 1972, o Decreto Federal nº 71.398 declarou a margem esquerda do canal de Santos como de utilidade pública para assegurar a ampliação física das atividades portuárias na região. A partir de então, as áreas ao longo da margem esquerda do canal foram desapropriadas, tornando-se domínio da União.

A vocação portuária surge, então, como principal gerador da incerteza sobre a permanência da comunidade em seu território de origem. Conceiçãozinha passa a se situar em um território de flagrantes contradições, com potencial econômico de projeção financeira na cidade e, por outro lado, o lugar da ilegalidade, “da iminente remoção, da destruição, da criminalização e do não reconhecimento”, complementa a autora.

Trabalho de Carlos Eduardo Vicente (2002) resgata relatos de moradores sobre a história do bairro, afirmando que, na década de 1970, a autoridade portuária instalou, na única via de acesso por terra, uma guarita com a presença de segurança, que controlava a entrada de materiais de construção na comunidade. Isso impediu, além da chegada de mais migrantes, a melhoria das condições de infraestrutura que pudesse manter os moradores, tanto antigos quanto novos, com relativa qualidade de vida.

Também na década de 1970, a atuação de agentes externos à comunidade, como o Projeto Rondon do governo federal e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada à Igreja Católica, estimularam a reorganização do território e a organização dos moradores, resultando na formalização, em 1979, da Sociedade de Melhoramentos de Conceiçãozinha (Somecon), ecoando a voz das famílias nas reivindicações de melhorias no bairro e de direitos sobre a posse da área e luta pela garantia da terra, afirma Moreira (2018).

A luta pela posse da terra também ganhou fôlego com a organização popular na presença da figura de Edinéia Ladewing, integrante do projeto Rondon, como pontuado por Newton da Conceiçãozinha (2023), para a proposta de um projeto de pesca sustentável apresentada em 1974. Newton, também em depoimento para Romani (2010) complementa: “Ela começa a trabalhar com os pescadores, para transformar o Sítio Conceiçãozinha numa agrovila. Daí começam as discussões com a comunidade sobre a posse da terra, organização da pesca, e essas ideias ajudam na criação da Somecon”.

Também nessa mesma época, Ladewing tenta formar uma associação de pescadores para que pudessem assegurar a continuidade de sua cultura e para que a pesca permanecesse parte da renda familiar. Fundam então a União dos pescadores (Unipesc), que não estava juridicamente legalizada por falta de instrumentos, ainda sob a Ditadura Militar.

Ambas as ações convergem para que enfrentassem os problemas ambientais trazidos pelo ‘progresso’ portuário-industrial. O 1º Plano para Conceiçãozinha, nome dado ao projeto de transformação do Sítio em uma agrovila, tinha como pauta o empreendimento de ações que permitissem à comunidade deixar de ser somente extrativista dos recursos marinhos para se tornar criadora de camarões, construindo reservatórios de ostras, caranguejos e mariscos [carcinicultura e aquicultura].

A segunda etapa fracassou no decorrer dos anos oitenta, em parte pela falta de iniciativa da comunidade, que não conseguiu dar continuidade ao projeto anterior, quando da saída de seus dois principais articuladores. Por outro lado, o inchamento populacional da antiga vila, levando praticamente à constituição de uma favela urbana, enfraqueceu a luta dos velhos moradores em torno de uma proposta política de valorização da cultura tradicional, dependente de uma estreita integração da comunidade ao meio, e que foi esvaziando-se”.

A crise econômica que se iniciou na década de 1980 e a ascensão do neoliberalismo levaram a uma significativa diminuição da intervenção e regulação do estado brasileiro nos territórios, provocando concessões de espaços do entorno, pertencentes à União, para exploração pela iniciativa privada. De acordo com Romani (2010) e Moreira (2018), em 1980, com o fim da concessão da Companhia Docas de Santos (CDS), o porto passa à administração da Companhia das Docas do Estado de São Paulo (Codesp), sociedade de economia mista, permanecendo sob controle da Empresa de Portos do Brasil S.A. (Portobras) até março de 1990. Nesse momento, a Portobras é extinta e a Codesp passa a ser vinculada diretamente ao Ministério dos Transportes e, posteriormente, à Secretaria de Portos (SEP), vinculada ao Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil e denominada Secretaria Nacional de Portos.

Em 1989, ao percorrer o país com a Caravana da Cidadania, o então candidato à presidência Luiz Inácio Lula da Silva (PT) visitou o bairro e prometeu, caso fosse eleito, garantir a posse da terra aos moradores, como relembrou Newton da Conceiçãozinha (2023). Lula não foi eleito, sendo derrotado em segundo turno pelo candidato Fernando Collor de Mello (PRN).

Em 1993, o governo federal, já na gestão de Itamar Franco, que assume após o impedimento de Collor em 1992, criou a Lei 8.630, conhecida como “lei de modernização de portos”, que permitiu a exploração portuária por meio de empreendedores particulares; os terminais privativos deixaram de ser específicos para os produtos das próprias empresas e passaram a operar livremente. A nova lei impulsionou o loteamento de toda a área costeira de Vicente de Carvalho com a concessão da exploração portuária para várias empresas: Bunge Limited (produtos agropecuários), Cargill Inc. (produtos agropecuários e farmacêuticos), Localfrio (armazenagem refrigerada) e Santos-Brasil (containers e logística).

Como analisou Romani (2010), a instalação dessas indústrias causou danos ao ecossistema estuarino que, apesar de já sofrer com a poluição do porto, como o derrame constante de óleo, ainda não havia sido contaminado por resíduos industriais de alta toxidade. Essa contaminação provocada pela concentração elevada de metais pesados e compostos organoclorados na água, nos sedimentos e nos organismos aquáticos tornou-se crônica e acumulativa.

A respeito do processo de ocupação do bairro popular, conforme demonstra o depoimento de Newton Gonçalves, na década de 1980 houve uma ocupação estimulada pelo então capitão Dante Sinópolis, que induziu, junto com outros políticos, uma ocupação de médio porte a partir de 1983. De 1994 em diante, outra ocupação de mesmo porte aconteceu em área de preservação, perto da guarita. De acordo com Newton no trabalho de Romani (2010), essa ocupação também foi política: “O próprio governo tinha o controle da área e deixou que ocupassem, daí teve uma destruição de 60% da área da Conceiçãozinha”.

Durante a década de 1990, os órgãos de fiscalização e licenciamento ambiental no Estado de São Paulo, como a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), o Departamento Estadual de Proteção aos Recursos Naturais (DPRN) e o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama), buscaram, com ações de monitoramento ambiental, diminuir os índices de contaminação química nas águas do estuário. Foi identificado que a Dow Química, empresa citada no relatório da Cetesb, uma corporação transnacional fabricante de agrotóxicos, havia contaminado a área com Dicloro-Difenil-Tricloroetano (DDT), um produto petroquímico de altíssima toxidade, combinando petróleo com moléculas de cloro, e que permanece no ambiente por muitos anos.

Em 2003, o Sítio Conceiçãozinha foi escolhido, durante o primeiro mandato presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, para sediar o lançamento oficial do “Programa Papel Passado”, apoio à regularização fundiária formulado pela então Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (MCidades). Fernanda Moreira (2018) aponta que o fato de a área ser de propriedade da União reforçava ainda mais a escolha de Conceiçãozinha, uma vez que se acreditava que o protagonismo na condução da ação de regularização fundiária de interesse social pretendida estaria sob o controle do governo federal.

No entanto, como noticiado pelo jornal Folha de São Paulo, em 1º de agosto de 2003, a Casa Civil cancelou, de forma inesperada, o lançamento oficial do Programa, no mesmo dia em que o presidente Lula esteve no Porto de Santos para reinaugurar um terminal de exportação de açúcar. O cancelamento determinado pela Casa Civil foi justificado “por conta de uma pendência judicial acerca da desapropriação de parte da área e da necessidade de se atender à crescente demanda do porto, que bate sucessivos recordes de movimentação de carga”, provocando enorme frustração e constrangimento às famílias, que acreditavam nos vínculos históricos entre as trajetórias da comunidade e do então presidente Lula.

Conforma a matéria de Fausto Siqueira, “Ocupação ilegal ameaça expansão de porto”:

“Os preparativos para o lançamento do programa, de autoria do Ministério das Cidades em parceria com a Secretaria do Patrimônio da União, aconteceram sem conhecimento prévio da Codesp”.

No entanto, a pesquisa de Moreira (2018) evidencia que aconteceram reuniões sobre o caso, promovidas entre setores técnicos do Ministério das Cidades, Secretaria de Patrimônio da União (SPU) e Codesp. Estavam explicitadas naquela ocasião as contradições internas do governo federal, avalia a pesquisadora, fazendo com que as tratativas de regularização fundiária não prosseguissem como deveriam.

Além disso, a reportagem exprime o tom dirigido sobre a comunidade, alçando-a como entrave ao desenvolvimento, enquanto havia uma pendência judicial acerca da desapropriação de parte da área e da necessidade de se atender à crescente demanda do porto.

Assim, após dois anos do episódio que motivou seu início, em 2003, o processo foi retomado, mas sob nova perspectiva. A partir de setembro de 2005, foram realizadas reuniões entre a Superintendência e Patrimônio da União em São Paulo (SPU-SP), Ministério das Cidades, Prefeitura Municipal do Guarujá e moradores do Sítio Conceiçãozinha para mapear os obstáculos que precisariam ser previamente superados, com sugestões de estratégias para conduzir a regularização. Para cada uma delas, foram destacadas potencialidades e dificuldades que poderiam ser enfrentadas, e definidas ações que deveriam ser executadas por cada um dos órgãos públicos do processo, bem como pelos moradores do bairro.

A MP nº 292/2006, convertida, em 31 de maio de 2007, na Lei federal nº 11.481, teve como finalidade facilitar os processos de regularização fundiária de interesse social em terras públicas federais e avançar na consolidação da função social como elemento direcionador dessas ações.

Em julho de 2007, o governo federal, durante o segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, anunciou a liberação de R$ 100 milhões oriundos do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) para a remoção dos moradores dos bairros de Sítio Conceiçãozinha e Prainha. Esses bairros integrariam o projeto Favela Porto-Cidade, visando a expansão do Porto de Santos por meio de territórios da vizinha Guarujá e a transferência dessas famílias para conjuntos habitacionais longe da área portuária, como publicado em matéria do Porto Gente.

O “Favela Porto Cidade” é um projeto federal no qual estavam incluídas obras do empreendimento habitacional Parque da Montanha, onde deveriam ser realocadas as famílias. De acordo com Moreira (2018), o desenho final dessa proposta previa a futura desocupação da área para viabilizar a construção de um Terminal de Contêineres previsto no Plano Diretor e Zoneamento do Porto de Santos (PDZPS), de 2006.

Valdir do Santos, integrante da cooperativa de pescadores de Conceiçãozinha e estivador, citou matéria do Porto Gente sobre essa possibilidade de remoção:

“O problema dessa história é que ninguém vem aqui nos ouvir. Ficamos sabendo pela mídia do que querem fazer conosco, mas a nossa opinião não é colhida. Como vão acabar com nossa atividade da pesca? Se mudarem a gente de lugar, não vão nos levar para outra região em que também haja pesca, pois é tudo zona portuária. Que o porto cresça, pois também sou estivador e adoro o cais, mas amo a pesca e sei que isso aqui é a única fonte de sustento de muita gente”.

No entanto, em 17 de dezembro de 2007, foi publicada portaria autorizando a Concessão de Uso Especial para fins de Moradia (Cuem) para a permanência das famílias do Sítio Conceiçãozinha, no Diário Oficial da União (DOU). Conforme Moreira (2018), a partir desse ato, a superintendência de São Paulo estava autorizada a lavrar os títulos de Cuem no livro da SPU.

A Procuradoria Regional da Fazenda Nacional (PGFN), em parecer de 3 de julho de 2008, fez objeções à titulação, por entender que “parte da área não pertence à União e, na área pública, se opôs à titulação na modalidade coletiva, além de apresentar restrições em função de possíveis riscos de contaminação”, e, por fim, argumentou pela impossibilidade de promover a titulação em ano eleitoral, pois, caso contrário, a SPU poderia incorrer em improbidade administrativa. Com esse impasse imposto pela PGFN, a titulação das Concessões de Uso Especial para fins de Moradia à grande maioria das famílias ocorreu somente em 2009, e 10% das titulações restantes em 2012.

 

Porto de Santos. Fonte: Portos e Navios; republicada por Fernanda Accioly Moreira (2018).

Importa mencionar, conforme observou Moreira (2018), que a titulação administrativa da Cuem, registrada em livro da SPU, garantiria a permanência das famílias no local, por tempo determinado, até que fosse oportuno. Ou seja, até que medidas visando à desocupação da área – por meio de reassentamento ou da devida indenização – fossem efetivadas.

As instalações previstas no PAC, portanto, geravam angústia e constrangimento, embora os moradores se dividissem quanto ao entusiasmo pela titulação do Cuem em 2009. De acordo com o Porto Gente, em 2010, após visita da equipe de reportagem ao Sítio Conceiçãozinha, o dinheiro prometido pelo governo federal para a urbanização da área ainda não havia sido empregado. Em depoimento do presidente da União dos Moradores da Prainha, Carlos Alberto de Souza, ele não se conformava com a continuidade de riscos como os trens, que trafegam lotados de cargas a centímetros de distância dos barracos, com possibilidade de acidentes.

No final de 2015, o governo federal lançou edital público para elaboração de estudos portuários, cujo objeto seria a modelagem de arrendamento das instalações portuárias na margem esquerda do Porto de Santos, em Conceiçãozinha, para movimentação de granéis vegetais. Tal impasse sobre a desocupação da área também se sustentava em função da interrupção, em 2015, da paralisação das obras do empreendimento habitacional Parque da Montanha (o qual deveria servir ao reassentamento do segundo grupo de famílias de Conceiçãozinha).

“Conforme esclarecido pela então secretária de Habitação do Guarujá, já em fim de mandato, as obras do conjunto habitacional foram paralisadas por irregularidades contratuais. E, ainda no início de 2017, quando foi realizado novo contato com a secretária para atualizar as informações sobre o andamento das obras, foi informado que o processo de contratação de nova empresa não havia sido retomado”.

Como se vê, o conflito, que aparentemente apontava para um horizonte de avanço nas condições de infraestrutura para o bem-estar das famílias, tampouco sinalizou nesse sentido ao longo dos anos. Em janeiro de 2023, foram iniciadas as obras de adequação do sistema de amarração das embarcações no píer do terminal de Guarujá.

Em fevereiro de 2023, a União dos Pescadores de Conceiçãozinha e a Central de Movimentos Populares (CMP) divulgaram manifesto em defesa dos moradores e dos pescadores do Sítio Conceiçãozinha pelos prejuízos das obras de ampliação do porto, que fecharam a saída para o mar dos pescadores da comunidade.

De acordo com depoimentos de integrantes da CMP ao Diário do Litoral, eles denunciaram a Cargill no Fórum Internacional da União Internacional de Trabalhadores na Alimentação (Uita), com sede em Genebra, na Suíça, como “invasora do território, ou seja, fechando nossas portas de saída por mar”, declarou Newton Gonçalves, dirigente da Central à Folha Santista. Além disso, pediram o apoio da Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação (Contac), com sede em Brasília.

Em 17 de fevereiro de 2023, a União dos Pescadores, a CMP e a Associação de Combate aos Poluentes (ACPO) protocolaram representação no Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente (Gaema), do Ministério Público do estado de São Paulo na Baixada Santista (MPSP). De acordo com a íntegra do manifesto:

“Cargill, empresa gigante e mundial de alimentos, amplia porto privado e fecha saída para o mar de pescadores da Vila Sítio Conceiçãozinha no Guarujá. Bate-estacas que está ampliando o porto também tem provocado rachaduras em casas de moradores na Vila. Os moradores e pescadores locais tentam impedir a obra que segue a todo vapor, para o desespero de todos no Sítio Conceiçãozinha que estão indignados com ação da empresa.

Diversas lideranças, a convite do companheiro Newton Rafael [Gonçalves], que é dirigente da CMP, pescador e morador, visitaram o território em solidariedade aos moradores e pescadores, para, também, ampliar a denúncia sobre esta obra antissocial da Cargill, que literalmente está sufocando os pescadores do Sítio Conceiçãozinha.

Os moradores reclamam que o bate-estacas, quando está funcionando, provoca tremor nas casas, o que tem provocado diversas rachaduras nos imóveis. Os pescadores reclamam, também, que não houve qualquer audiência ou consulta pública sobre a obra. Por isso, exigem a paralisação imediata da ampliação do porto. No Sítio Conceiçãozinha vivem 6 mil pessoas e cerca de 100 pescadores dependem da pesca”.

A Assessoria de Imprensa do Terminal Exportador do Guarujá (TEG) encaminhou ao jornal Folha Santista nota com seu posicionamento, confirmando as obras e que elas atendem a uma solicitação da Capitania dos Portos e Santos Port Authority (SPA). Além disso, o objetivo seria ampliar a segurança das operações, conferindo mais estabilidade às embarcações nas manobras de atracação dos navios. Ressaltavam ainda que as obras não eliminariam o acesso dos comunitários ao canal.

Importa esclarecer, assim como fez o advogado da CMP, Benedito Barbosa (o Dito), que a Cargill desrespeitou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil. A resolução prevê que comunidades tradicionais (entre elas, as caiçaras) sejam devidamente informadas e consultadas quanto à aprovação de intervenções como essa, pois essas comunidades têm papel relevante na proteção do meio ambiente e, sem elas, a cultura e as práticas tradicionais não prosseguiriam.

Na representação ao Ministério Público de São Paulo, os autores pediram providências contra a expansão, considerada irregular, dos atracadouros marítimos da empresa Cargill, cujas obras teriam impactos na mobilidade pesqueira, com potencial de poluição das águas e do ar.

 

Imagem mostra a comunidade vizinha à Cargill e a ampliação do atracadouro (em vermelho). Fonte: Rede Brasil Atual.

Como publicado pela Rede Brasil Atual (RBA), a obra no Porto de Guarujá era irregular pois, segundo depoimentos dos moradores à reportagem:

“O estacionamento de gigantescos navios afetará a circulação de ar, a entrada, saída e circulação de embarcações de pescadores tradicionais, aumentará o potencial de risco de poluição das águas e atmosférica devido ao embarque e desembarque de mercadorias a granel que ocorrerá por esses terminais, criando uma barreira de aço entre o pescador e a sua fonte de renda, o mar”.

Newton Gonçalves acrescentou que a obra foi iniciada e avançou sem que os moradores tivessem sido ouvidos: “Não houve nenhuma audiência pública para discutir o assunto com os moradores”. Os 100 pescadores alegaram que, além de perder o sustento, ficariam com uma única alternativa terrestre, uma via no meio de empresas do porto que dá acesso à Avenida Santos Dumont.

 

Atualizado em junho 2023

 

Cronologia

1920 – A proposta de construção da atual Base Aérea de Santos foi o primeiro empreendimento a causar conflito em Sítio Conceiçãozinha. No entanto, a execução do projeto nesse sítio foi abandonada por ser o terreno demasiado pantanoso.

1972 – Decreto Federal nº 71.398 declara a margem esquerda do Canal de Santos como de utilidade pública para assegurar a ampliação física das atividades portuárias nessa região. As áreas ao longo da margem esquerda do canal são desapropriadas, tornando-se domínio da União.

1970 – A autoridade portuária instala, na única via de acesso por terra para o Sítio Conceiçãozinha, uma guarita com segurança controlando a entrada de materiais de construção na comunidade.

1974- Edinéia Ladewing, integrante do projeto Rondon, apresenta proposta de projeto de pesca sustentável à comunidade.

1979 – Fundação da Sociedade de Melhoramentos de Conceiçãozinha (Somecon) ecoa a voz das famílias nas reivindicações de melhorias no bairro e de direitos sobre a posse da área e luta pela acesso à terra.

1980 – Com o fim da concessão da Companhia Docas de Santos (CDS), o porto passa à administração da Companhia das Docas do Estado de São Paulo (Codesp), sociedade de economia mista, permanecendo sob controle da Empresa de Portos do Brasil S.A. (Portobras).

1983 – Processo de ocupação fundiária de médio porte estimulada pelo então capitão Dante Sinópolis.

Março de 1990 – A Portobras é extinta e a Codesp passa a ser vinculada diretamente ao Ministério dos Transportes e, posteriormente, à Secretaria Especial de Portos (SEP); depois vinculada ao Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil e renomeada como Secretaria Nacional de Portos.

1990 – Ao percorrer o país com a chamada “Caravana da Cidadania,” o então candidato à presidência Luiz Inácio Lula da Silva (PT) visita o bairro e promete, caso eleito, garantir a posse da terra aos moradores.

1993 – Governo federal cria a Lei 8.630, conhecida como “lei de modernização de portos”, permitindo a exploração portuária por meio de empreendedores particulares; terminais privativos deixam de ser específicos para produtos das próprias empresas e passam a operar livremente.

Década de 1990 – Órgãos de fiscalização e licenciamento ambiental com atuação no Estado de São Paulo buscam, com ações de monitoramento ambiental, diminuir índices de contaminação química nas águas do estuário.

1994 – Outra ocupação acontece em área de preservação, perto da guarita de entrada do sítio.

2003 – Sítio Conceiçãozinha é escolhido para sediar o lançamento oficial do “Programa Papel Passado”, apoio à regularização fundiária formulado pela Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (MCidades).

25 de agosto de 2003 – Casa Civil cancela, de forma inesperada, o lançamento oficial do Programa.

Setembro de 2005 – Reuniões entre a Superintendência e Patrimônio da União em São Paulo (SPU-SP), Ministério das Cidades, Prefeitura Municipal do Guarujá e moradores do Sítio Conceiçãozinha buscam mapear obstáculos e sugerir estratégias para conduzir a regularização fundiária da comunidade.

Julho de 2007 – Governo federal, durante o segundo mandato do presidente Lula, anuncia a liberação de R$ 100 milhões oriundos do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) para a remoção dos moradores dos bairros do Sítio Conceiçãozinha e da Prainha.

17 de dezembro de 2007 – Governo federal publica no Diário Oficial da União (DOU) portaria autorizando a Concessão de Uso Especial para fins de Moradia (Cuem) para as famílias do Sítio Conceiçãozinha.

3 de julho de 2008 – Parecer da Procuradoria Regional da Fazenda Nacional (PGFN) faz objeções à titulação do Sítio Conceiçãozinha por Cuem, argumentando, dentre outros motivos, a impossibilidade de promover a titulação em ano eleitoral.

2009 – A maioria das famílias de Sítio Conceiçãozinha recebe a Cuem, regularizando sua situação fundiária.

2012 – Emitidas Concessões de Uso Especial para fins de Moradia aos 10% das titulações restantes.

2015 – Governo federal, sob a gestão de Dilma Rousseff (PT), lança edital público para elaboração de estudos portuários, cujo objeto seria a modelagem de arrendamento das instalações portuárias na margem esquerda do Porto de Santos, em Sítio Conceiçãozinha, para movimentação de granéis vegetais.

2015 – Interrupção das obras do empreendimento habitacional Parque da Montanha (onde seria reassentada parte das famílias de Sítio Conceiçãozinha).

Janeiro de 2023 – Início das obras de adequação do sistema de amarração das embarcações no píer do terminal de Guarujá.

Fevereiro de 2023 – A União dos Pescadores de Conceiçãozinha e a Central de Movimentos Populares (CMP) divulgam manifesto em defesa dos moradores e pescadores da vila pelos prejuízos das obras de ampliação do porto que fecharam a saída para o mar dos pescadores da comunidade.

17 de fevereiro de 2023 – A União dos Pescadores, a CMP e a Associação de Combate aos Poluentes (ACPO) protocolam representação no Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente (Gaema), do MPSP.

 

Fontes

CONCEIÇÂOZINHA luta para não sumir do mapa. Porto Gente, 23 jul. 2017. Disponível em: https://bit.ly/40iY88e. Acesso em: 28 mar. 2023.

GUARUJÁ prepara remoção de mais de 300 famílias em área de risco na linha férrea. Prefeitura de Guarujá, 13 de janeiro de 2020. Disponível em: https://bit.ly/3TtVxGc. Acesso em: 28 mar. 2023.

LANPARELLI, Marta C. et al. Sistema estuarino de Santos e São Vicente, São Paulo; CETESB; ago. 2001. 142 p. Disponível em: https://bit.ly/3Kca865. Acesso em: 28 mar. 2023.

MOREIRA, Fernanda Accioly. Terras de exclusão, Portos de resistência: um estudo sobre a função social das terras da União. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Área de concentração: Planejamento Urbano e Regional. São Paulo, 2018. Disponível em: https://bit.ly/3MO7nJL. Acesso em: 28 mar. 2023.

OLIVEIRA, Cida. Comunidade caiçara do Guarujá (SP) fará denúncia internacional contra a Cargill. Rede Brasil Atual, 23 fev. 2023. Disponível em: https://bit.ly/3TtCtrv. Acesso em: 28 mar. 2023.

RATTON, Carlos. Obra no Porto pode isolar 6 mil moradores no bairro Sítio Conceiçãozinha, em Guarujá. Diário do Litoral, 27 fev. 2023. Disponível em: https://bit.ly/3TvXXUO. Acesso em: 28 mar. 2023.

______. Obra do TEG é denunciada nos MPs Estadual e Federal de Santos. Diário do Litoral, 03 mar. 2023. Disponível em: https://bit.ly/3lpFYTt. Acesso em: 28 mar. 2023.

ROMANI, Carlos. Comunidades caiçaras e expansão portuária em Santos – uma análise histórica do Conflito. Revista Científica Integrada – Unaerp Campus Guarujá – Ano 1 – Edição 1 – set. 2010. Disponível em: https://bit.ly/42rYBqn. Acesso em: 28 mar. 2023.

SÃO PAULO. Secretaria de Estado do Meio Ambiente. Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb). Sistema estuarino de Santos e São Vicente. Programa de Controle de Poluição, 2001. Disponível em: https://bit.ly/45brMPX. Acesso em: 28 mar. 2023.

SIQUEIRA, Fausto. Ocupação ilegal ameaça expansão de porto, Agência Folha, Folha de São Paulo, Caderno Cotidiano, 25 ago. 2003. Republicado em: MOREIRA, Fernanda Accioly. Terras de exclusão, Portos de resistência: um estudo sobre a função social das terras da União. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Área de concentração: Planejamento Urbano e Regional. São Paulo, 2018. Acesso em: 28 mar. 2023.

VASQUES, Lucas. Manifesto defende moradores e pescadores do Sítio Conceiçãozinha. Folha Santista, 17 fev. 2023. Disponível em: https://bit.ly/3JzeliG. Acesso em: 28 mar. 2023.

VICENTE, Carlos Eduardo. Sítio Conceiçãozinha em Guarujá. Trabalho de Conclusão de Curso em História. Santos: UniSantos, 2002. Disponível em: https://bit.ly/3KkX4vt. Acesso em: 29 mar. 2023.

 

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *