Quilombolas Kalunga lutam por direitos, reconhecimento de seu território tradicional, e contra invasões, grilagem e exploração sexual de crianças e jovens

UF: GO

Município Atingido: Cavalcante (GO)

Outros Municípios: Monte Alegre de Goiás (GO), Teresina de Goiás (GO)

População: Quilombolas

Atividades Geradoras do Conflito: Atuação de entidades governamentais, Atuação do Judiciário e/ou do Ministério Público, Mineração, garimpo e siderurgia, Minerodutos, oleodutos e gasodutos, Monoculturas, Pecuária, Políticas públicas e legislação ambiental

Impactos Socioambientais: Alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território, Desmatamento e/ou queimada, Erosão do solo, Falta / irregularidade na autorização ou licenciamento ambiental, Falta de saneamento básico, Invasão / dano a área protegida ou unidade de conservação, Poluição de recurso hídrico

Danos à Saúde: Desnutrição, Doenças transmissíveis, Falta de atendimento médico, Insegurança alimentar, Piora na qualidade de vida, Violência – ameaça, Violência – coação física, Violência – lesão corporal

Síntese

O Território Quilombola Kalunga (TQK) engloba os municípios de Cavalcante, Teresina de Goiás e Monte Alegre de Goiás, na região da Chapada dos Veadeiros, nordeste do estado de Goiás (GO). São 262 mil hectares, dos quais apenas 34 mil estão titulados definitivamente.

Em 1991, o TQK foi reconhecido pelo Estado de Goiás como Sítio Histórico e Patrimônio Cultural e, em 1992, pela Fundação Cultural Palmares do Ministério da Cultura (FCP/Minc). Ali, há mais de 300 anos, vivem quilombolas que formaram suas comunidades após fugirem do trabalho escravo na mineração. Hoje, no Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga (SHPCK), vivem cerca de 1.500 famílias, ou 7.500 quilombolas, em 39 comunidades.

A maioria dos quilombolas pratica a agricultura de subsistência e obtém renda com a venda de excedentes, como a farinha de mandioca e, eventualmente, animais criados em suas áreas. O atual reconhecimento da identidade cultural e dos direitos correlatos é resultado de longo processo histórico, e se deve a muitas lutas e conflitos enfrentados pelo povo Kalunga. No entanto, as invasões do território por parte de fazendeiros e agropecuaristas tem sido uma constante, bem como a grilagem de suas terras tradicionalmente reconhecidas.

A Associação Quilombola Kalunga (AQK) detém, até 2023, a posse de pouco mais da metade do Sítio Histórico, mas apenas 13% dos 262 mil hectares estão titulados definitivamente em nome da entidade. Mais de 44% do território ainda carece de ser regularizado, pois encontra-se dominado por fazendeiros que se dizem proprietários e reivindicam indenização pelas terras.

Os processos de titulação definitiva das áreas do quilombo ficaram paralisados ao longo do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), que diminuiu substancialmente a fiscalização e o financiamento de órgãos como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Com isso, fazendeiros e grileiros se viram mais incentivados a invadir as terras do quilombo Kalunga, ameaçando os moradores locais, destruindo suas roças e benfeitorias e promovendo o desmatamento de áreas nativas do cerrado. Mais recentemente, a invasão do território por criadores de búfalos também tem gerado inúmeros problemas de cunho socioambiental, como destruição da mata nativa, erosão do solo e destruição de plantações, por exemplo.

Além da grilagem de terras, outro problema grave enfrentado pelos quilombolas são as condições de trabalho, análogas à escravidão, e a exploração sexual de crianças e jovens. Muitas meninas, de 5 a 14 anos, são vítimas de assédios, estupros e pedofilia. Os suspeitos não foram presos e punidos devidamente, já que nesse grupo encontram-se políticos e pessoas poderosas da região, com muitos casos arquivados sem sequer serem investigados.

Em 2021, o território Kalunga recebeu da Organização das Nações Unidas (ONU) o título de primeiro Território e Área Conservada por Comunidades Indígenas e Locais (Ticca) do Brasil. Esta titulação é concedida a regiões que mantêm a conservação da natureza e asseguram o bem-estar de seu povo. A expectativa para os Kalungas é de que o reconhecimento os auxilie na visibilização de suas demandas de proteção do território.

 

Contexto Ampliado

O território Kalunga tem uma extensão de 262 mil hectares, distribuídos nos municípios de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás, no nordeste do estado de Goiás, na região do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, formando o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga.

Nele, residem 39 comunidades quilombolas, que se fixaram na região entre os séculos XVIII e XIX, a partir de 1722, fugidas da escravidão nas minas de ouro na região. Aqui conseguiram se isolar por muito tempo e passaram a desenvolver sua própria autonomia e subsistência, sofrendo poucas influências externas em seu modo de vida.

De acordo com notícia publicada no Combate Racismo Ambiental (2020), o território é composto por aproximadamente 800 famílias que se dedicam à plantação de mandioca, arroz, fumo, milho e feijão, além da criação de animais à solta, como gado e aves, e da prática da caça e pesca. Apesar disso, a fabricação de farinha é a atividade produtiva mais importante, base principal do sustento e foco de união das famílias.

As manifestações culturais dos Kalunga são caracterizadas por rezas, folias e festas de santo, transmitidas de geração a geração por meio da oralidade. A partir de técnicas tradicionais, ancestrais e naturais, plantam sem o uso de agrotóxicos e, em geral, sem máquinas agrícolas, apenas munidos de enxada. Assim, cultivam pequenas roças, menores do que 1 hectare de terra, tanto para subsistência quanto para a comercialização do excedente. As áreas são cultivadas por até quatro anos, quando descansam por 10, até serem reutilizadas (COMBATE RACISMO AMBIENTAL, 2021).

Tais práticas tradicionais estão asseguradas inclusive pelo regimento interno da Associação Quilombo Kalunga (AQK), aprovado em maio de 2019, que dispõe sobre regras de gestão e manutenção do território a partir dos costumes quilombolas, proibindo o uso de máquinas para abrir roças com área superior a 2,5 hectares por família. Além disso, o regimento também traz como obrigação a rotatividade de culturas em roçados abertos mecanicamente. Todo esse cuidado possibilita a preservação do seu território (PINA, 2021).

Sobre isso, o quilombola Damião Moreira dos Santos afirma que, apesar de muitos preferirem incorporar o maquinário no plantio dos terrenos, ainda há que se pensar bem em como trazer inovação sem renunciar à tradição:

“Também nos preocupamos com essa mentalidade nos próprios Kalungas. Os discursos que a gente ouve são muito fortes, dizendo que temos que deixar de miséria, usar trator, usar máquina. Se a gente não perceber que isso também é um problema, essa preservação estará ameaçada. (…) A gente quer melhorar as práticas, facilitar mão de obra e dar dignidade para as famílias. Mas isso tem que vir com boa orientação” (PINA, 2021).

De acordo com informações do site do Movimiento Regional por la Tierra, com base em dados repassados pelo presidente da AQK, esta é, aproximadamente, a distribuição demográfica em relação às comunidades do quilombo Kalunga: na comunidade Vão de Almas há 215 famílias ou 1.075 pessoas; no Vão do Moleque, 390 famílias ou 1950 pessoas; no Engenho II, 125 famílias ou 625 pessoas.

Esse montante totaliza cerca de 3.650 pessoas somente na área rural do município de Cavalcante. Na área urbana, há cerca de 2.200 quilombolas, resultando em 5.650 pessoas apenas neste município. Somando com os quilombolas que residem em Monte Alegre e Teresina, estima-se que, no total, o quilombo Kalunga tenha cerca de 9 a 11 mil pessoas.

Segundo matéria para a Agência Pública (2021), a preservação do território tradicional quilombola, em meio a uma paisagem composta por chapadas, vales, cachoeiras, nascentes e rios, atrai muitos turistas para a região, o que culminou na autodeclaração de Território e Área Conservada por Comunidades Indígenas e Locais (Ticca), título concedido pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma/ONU) e registrado em fevereiro de 2021.

Trata-se da primeira comunidade brasileira a se autodeclarar Ticca, iniciativa que gerou um protocolo para que outros povos possam passar pelo mesmo processo, ganhando reconhecimento internacional.

Em 1991 e 1996, duas leis estaduais qualificaram a comunidade quilombola Kalunga como sítio histórico e patrimônio cultural (Lei Estadual nº 11.409/1991 e Lei Complementar nº 19/1996, respectivamente). No ano 2000, a Fundação Cultural Palmares (FCP) reconheceu o território tradicional Kalunga.

Em 2003, a competência da titulação dos territórios quilombolas foi transferida para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que abriu o processo de titulação das terras um ano depois, em 2004. Em 2005, a comunidade foi identificada como remanescente de quilombos.

A AQK tem hoje a posse de pouco mais da metade do Sítio Histórico, mas apenas 13% dos 262 mil hectares estão titulados definitivamente em nome da entidade. Mais de 44% do território ainda precisa ser regularizado e tem origem em terras privadas que demandam processos de indenização.

No ano de 2010, o quilombo Kalunga foi declarado área de interesse pela Presidência da República e, desde então, passou por procedimentos de desapropriação dos imóveis rurais localizados em sua área de abrangência. O Ministério Público Federal (MPF) tem acompanhado o processo assegurando os direitos da comunidade e fiscalizando as ações de regularização fundiária.

Com a carência de regularização de boa parte do território quilombola, tendo sido o último título fundiário concedido à comunidade em 2018, antes de Jair Bolsonaro (2019-2022) assumir a presidência, o território quilombola sofre com a grilagem e a invasão de fazendeiros, sem ter o aval e a proteção do próprio estado.

Na matéria de Rute Pina para a Agência Pública (2021), “Encurralados pela grilagem”, ela relata a disputa em torno da Fazenda Bonito, reivindicada por Juvelan de Paula e Souza – um agropecuarista de Arraias (TO) – junto com seus irmãos, em área dentro do território Kalunga.

Os documentos apresentados pelo fazendeiro possuem inconsistências nos registros, colocando em dúvida sua idoneidade. Apesar disso, o fazendeiro faz incursões no território quilombola, cercando e até mesmo construindo casa e outras estruturas à beira do rio Paranã. Ele prometeu empregos na região e comprou propriedades na área quilombola, com negociações realizadas por seu advogado Antônio Marcos Ferreira.

Uma das argumentações do fazendeiro é de que os Kalungas não são capazes de ocupar nem 1% das terras de todo o território. Além de Juvelan, no entanto, outros fazendeiros alegam ser donos da Fazenda Bonito, que tem pelo menos 35 processos a reivindicando, inclusive apresentando sobreposição de seus limites.

De acordo com Pina (2021):

“Em 2011, o então superintendente regional do Incra, Marco Aurélio Bezerra da Rocha reconheceu, em ofício, que havia ‘inúmeros conflitos e sobreposições de matrículas, além de graves inconsistências’ no registro dos imóveis no território quilombola. De acordo com o documento, existiam, naquele momento, cerca de 350 mil hectares de terras registradas no quilombo, sem contar as áreas devolutas do estado de Goiás, que somam cerca de 90 mil hectares — quando, na verdade, o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga tem apenas 262 mil hectares de extensão.” 

De acordo com matéria de Daiane Souza, repostada pelo Combate Racismo Ambiental, em dezembro de 2011, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO) reconheceu que o título de posse territorial do quilombo Kalunga era legal. O título havia sido questionado por meio de uma “Suscitação de Dúvida” apresentada pelo Cartório de Registro de Imóveis de Monte Alegre de Goiás.

O processo envolveu o Instituto de Desenvolvimento Agrário do Estado de Goiás (Idago), que em 2000 protocolou pedido de matrícula e registro de um trecho inserido no território Kalunga, denominado Serra da Contenda III. O Idago alegava que as terras eram devolutas e, portanto, da União.

No entanto, 11 anos após o questionamento, o Idago alegou que o problema teria decorrido de uma má delimitação das terras e, então, o juiz Fernando Oliveira Samuel, da comarca de Campos Belos, reconheceu, finalmente, a legalidade do título quilombola. Coube, a partir daí, à Fundação Cultural Palmares (FCP) prosseguir na apresentação de documentos, comprovando o direito de propriedade Kalunga.

Em julho de 2012, o Ministério Público Federal em Goiás (MPF/GO), por via do procurador da República Mário Lúcio de Avelar, ajuizou Ação Civil Pública (ACP), com pedido de liminar, para que o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) e a União suspendessem concessões minerárias, licenças e permissões para a atividade mineral no interior do território Kalunga.

Algumas licenças haviam sido concedidas sem qualquer consulta prévia à comunidade e, à época, havia mais de 150 procedimentos de pesquisa ou lavra mineral envolvendo a quase totalidade da área do Sítio Histórico do Patrimônio Cultural Kalunga, segundo apontou o Combate Racismo Ambiental (2012). O MPF/GO solicitou também a aplicação de multa diária em caso de descumprimento da decisão judicial, e o processo passou a tramitar na Subseção Judiciária da Justiça Federal de Formosa/GO.

No ano de 2014, a Fazenda Bonito chegou a ter 150 matrículas e transcrições (documentos que comprovam posse), sendo que a maior parte consistia em áreas sobrepostas; muitas tinham formatos de polígonos perfeitos, ainda que se trate de uma região montanhosa do cerrado, marcada pelo corte de rios e vales. Uma funcionária do Cartório de Cavalcante (GO), Luslene Veloso, descobriu as irregularidades e fraudes e os assédios de empresas e fazendeiros sobre as terras do quilombo Kalunga (PINA, 2021).

Dentre as empresas que reivindicavam propriedade e indenização por parte do estado figurava o Grupo Dinâmica, alegando ser dono de três áreas, que totalizariam mais de R$7 milhões em indenizações, na época. Duas das áreas que a empresa reivindicava, as glebas 3 e 4 da fazenda Vista Linda, foram “cedidas” aos quilombolas em 2015. Estas glebas fazem parte do território tradicional Kalunga. No entanto, a existência de documentos de propriedade fraudados indicando glebas sobrepostas ao quilombo faziam parecer que haviam sido doadas, quando na verdade estas terras sempre pertenceram às comunidades (PINA, 2021).

A empresa, do ramo de serviços de limpeza e conservação em órgãos oficiais, pertence à família Pedrosa, tradicional no Distrito Federal (DF), cujos membros também são conhecidos na política, como Eliana Pedrosa (União Brasil) – deputada distrital que chegou a concorrer em 2018 como candidata ao governo do DF – e seu sobrinho, Eduardo Pedrosa (União Brasil) – deputado distrital em exercício (2023-2026).

Além de receber ofertas de propinas por parte de advogados e supostos proprietários da fazenda, a cartorária Luslene também sofreu intimidações e ameaças, inclusive com armas, por parte de alguns homens, tanto no local de trabalho quanto na rua. Em julho de 2014, a então juíza substituta da comarca de Cavalcante, Priscila Lopes da Silveira, bloqueou matrículas relacionadas ao imóvel Bonito. As ameaças contra Luslene transformaram-se em denúncias na Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO) e em mandados de segurança contra ela e o cartório, o que levou ao desgaste dela e da sua equipe. Luslene foi exonerada do cartório em 2019 – segundo apontou matéria da Agência Pública (2021).

No ano de 2015, a Polícia Civil do Estado de Goiás (PCGO) concluiu pelo menos oito inquéritos com denúncias sobre o uso de meninas como escravas sexuais na comunidade quilombola Kalunga. O perfil das vítimas era de crianças e jovens entre 5 e 14 anos, sem ensino básico e com falta de perspectivas de trabalho para além do trabalho braçal na agricultura.

Em geral, eram entregues pelos próprios pais a moradores de Cavalcante para que cuidassem delas. Muitas passavam a trabalhar como empregadas domésticas em troca apenas de comida, lugar para dormir e horário para frequentar aulas na rede pública. Além de se tratar de casos de trabalho análogo à escravidão, as meninas ficavam vulneráveis a violências, dentre elas o estupro, cometidas pelos patrões (COMBATE RACISMO AMBIENTAL, 2015; RAPHAELA, SILVA, S/D).

Após várias denúncias, integrantes Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial da Câmara dos Deputados (CDHM/CD), e o deputado Paulo Pimenta (PT-RS), seu presidente à época, estiveram em Cavalcante no dia 20 de abril de 2015, realizando diligências para ouvir autoridades locais e familiares das crianças e adolescentes abusadas e exploradas sexualmente, vítimas de estupro, pedofilia e trabalho infantil, juntamente com autoridades do Poder Executivo e do Ministério Público Federal (MPF).

Dentre os suspeitos dos crimes estavam profissionais liberais e políticos, de 20 a 70 anos, cujos inquéritos estavam engavetados. Um deles, inclusive, era o ex-prefeito e então vice-presidente da Câmara Municipal de Cavalcante, Jorge Cheim (PSD), na época com 62 anos. Um laudo comprovou o estupro de uma menina Kalunga de 12 anos que morava na casa dele.

O processo tramitou em segredo de Justiça e, de acordo com matéria publicada no site da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos – Conaq (s/d), a Polícia Civil pediu duas vezes a prisão preventiva de Cheim, mas os pedidos foram indeferidos pelo juiz Lucas Lagares, que alegou falta de detalhes técnicos. O vereador continuou atuando no município. Apenas um acusado pelas violações estava preso até aquele momento.

Além da impunidade a respeito desse e de outros autores de crimes contra crianças e adolescentes, conforme Nunes (2015), membros do Conselho Tutelar de Cavalcante passaram a sofrer ameaças de morte após a divulgação dos casos na mídia. As conselheiras denunciaram as ameaças à Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados e solicitaram mais estrutura e segurança para a sede do conselho, que havia sido arrombada.

Além disso, foram roubados relatórios que tratavam dos casos. Outros agentes sociais, como educadores e comunicadores também foram ameaçados de morte.

Foi noticiado por Souza (2015), e republicado no Combate Racismo Ambiental, que vários processos envolvendo abusos sexuais de crianças e adolescentes remanescentes quilombolas foram localizados após a repercussão na imprensa. A ação ocorreu no dia 22 de abril de 2015, e teve participação do juiz Lucas Mendonça Lagares, da Comarca de Cavalcante, que emitiu 27 ordens judiciais referentes a 31 casos de abusos sexuais a menores de idade do quilombo, os quais se encontravam engavetados.

Entre as determinações do juiz, foram emitidas designações de audiências, mandados de prisão e devoluções de cartas precatórias, além de ofício à autoridade policial informando sobre inquéritos e capturas de foragidos envolvidos nos casos (COMBATE RACISMO AMBIENTAL, 2015).

O desembargador do TJ/GO, Leobino Valente Chaves, comprometeu-se a incluir os processos de violência sexual contra vulneráveis em Cavalcante no Programa Justiça Plena Estadual. A proposta era de garantir celeridade nos processos e menos burocracia, possibilitando a resolução dos casos.

Entre os dias 23 e 25 de abril de 2015, uma Comissão do Governo Federal realizou visitas para tratar especialmente desses casos, com o objetivo de levantar detalhes e pensar em políticas públicas para a região, de modo a eliminar a vulnerabilidade dos jovens e crianças Kalunga. A comissão era composta por representantes da Fundação Cultural Palmares do Ministério da Cultura (FCP/MinC), da Secretaria de Direitos Humanos (SDH), da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM).

A comissão passou também pela sede da Secretaria de Segurança Pública e Justiça do Estado de Goiás (SSP/GO), do Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO) e da Defensoria Pública da União em Goiás (DPU/GO). Os órgãos locais se comprometeram em garantir melhores condições para o acompanhamento dos casos e para a proteção das conselheiras ameaçadas.

No dia 06 de julho de 2015, a então coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF (Povos indígenas e Comunidades Tradicionais), a subprocuradora-geral da República Deborah Duprat, e o procurador Regional da República, João Akira Omoto, receberam na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados um relatório sobre violações de direitos humanos na comunidade quilombola Kalunga.

O documento foi elaborado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, com a colaboração de diversos órgãos. O relatório, tratando dos casos das meninas vítimas de abusos sexuais, passaria por uma análise por parte do MPF (COMBATE RACISMO AMBIENTAL, 2015).

Em junho de 2016, conforme publicado pelo Combate Racismo Ambiental (2016), a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) tornou público o “Plano de Ações para o quilombo Kalunga”.

A publicação se deu a partir do trabalho de articulação de diversos órgãos do Governo Federal, envolvidos nas ações do Programa Brasil Quilombola (PBQ), com o intuito de reunir um conjunto de iniciativas para a garantia dos direitos das comunidades quilombolas, bem como ações voltadas para regularização fundiária, cidadania, infraestrutura e inclusão produtiva da comunidade.

Participaram da elaboração do Plano: Ministérios do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS); da Saúde (MS); Minas e Energia (MME); do Turismo (MTur); da Educação (MEC); do Desenvolvimento Agrário (MDA); do Trabalho e Previdência Social (MTPS); do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG); Secretarias Especiais de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir); de Direitos Humanos (SDH), de Políticas para as Mulheres (SPM), bem como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a Fundação Cultural Palmares (FCP).

No dia 06 de julho de 2018, o procurador-geral do Estado de Goiás, Luiz César Kimura, entregou a escritura de Concessão de Direito Real de Uso de 75,2 mil hectares de terras ao então presidente da Associação Quilombo Kalunga (AQK), Vilmar Souza Costa. A escritura compreendia: 3.682,5639 hectares da Gleba Devoluta Moleque, 57.343,4438 hectares da Gleba Vão das Almas e 14.207,0000 hectares da Reserva Biológica (Rebio) Serra da Contenda I.

O registro da escritura de três áreas do território documentou a posse definitiva das terras quilombolas que antes estavam sob domínio do estado de Goiás. Ainda restavam outras áreas que não foram objetos da escritura devido à presença de posseiros nos seus limites: as glebas Sossego, em Cavalcante, e parte das glebas Diadema e Tereza, ambas em Teresina de Goiás.

Nelas, ainda haveria avaliação de benfeitorias dos posseiros e indenizações, conforme notícia publicada no Combate Racismo Ambiental (2018). Somando essa área transferida para os Kalunga, em 2018 havia 145 mil hectares de terra, equivalentes a 55,34% do território regularizado e titulado.

Em setembro de 2018, membros do Instituto Atá, coordenado pelo chefe de cozinha paulistano Alex Atala, visitaram a comunidade Kalunga Engenho II, em Cavalcante, com o intuito de colher informações sobre a baunilha do cerrado (ou baunilha banana, Vanila edwalli), um ingrediente bastante cobiçado por profissionais do ramo da gastronomia.

Antes mesmo desta visita, segundo relatou Campos (2019), na comunidade de Vão das Almas já vinha sendo realizado pelo mesmo Instituto Atá o projeto “Baunilha do Cerrado”, motivo de muita controvérsia entre os quilombolas. Sem o consentimento dos quilombolas, o instituto formalizou cinco pedidos de registro da marca de baunilha do cerrado junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi).

Durante essa e outras visitas, o chefe e outros membros do instituto buscavam acompanhar o desenvolvimento das favas de baunilha. Esse assédio gerou grande procura pela baunilha do cerrado, causando extração irresponsável do ingrediente, promovendo pressão sobre as árvores e diminuindo a produção local.

O Instituto Atá chegou a contratar um guia local quilombola para mostrar todos os lugares e detalhes do território da comunidade onde há plantação de baunilha sem autorização da Associação Quilombo Kalunga (AQK). Além da biopirataria da baunilha, o projeto Atá também previa a compra de outros ingredientes encontrados nos quilombos, como a pimenta-de-macaco (Piper aduncum), produto para o qual chegaram a pagar entre R$100 e R$200 o quilo, o que mais uma vez promoveu descontrole da extração sem qualquer orientação aos quilombolas (CAMPOS, 2019).

Reportagem de Sara Campos (2019) apontou que o atendimento da saúde no quilombo Kalunga piorou bastante após a saída de médicos cubanos do Programa Mais Médicos em novembro de 2018, quando o então presidente Jair Bolsonaro (PL) ameaçou expulsar os profissionais do País. Ficaram mais frequentes as consultas canceladas e viagens perdidas por parte de pacientes, que saíam da comunidade em busca de médicos. Além disso, muitos exames e tratamentos não foram realizados com êxito.

Muitas vagas de médicos ficaram onerosas, e em Cavalcante, em 2019, das três vagas abertas pelo Mais Médicos, apenas uma havia sido preenchida. Quem mais sofreu com essa carência foram as gestantes, que não conseguiam fazer os exames pré-natais por falta de estrutura e atendimento. Os quilombolas alegavam também que recebiam atendimento diferenciado nos hospitais de Cavalcante, relatando preconceito e racismo.

No dia 08 de junho de 2020, o MPF instaurou uma Notícia de Fato (NF) com o intuito de apurar o desmatamento ilegal de cerca de mil hectares dentro do Sítio Histórico do Patrimônio Cultural Kalunga, em Cavalcante (GO). A NF foi fruto de uma operação desencadeada em 04 de junho de 2020 pela Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Estado de Goiás (Semad) e pela Delegacia Estadual de Repressão a Crimes Contra o Meio Ambiente (Dema), e identificou o crime ambiental.

Dados apontavam que haviam sido desmatados mais ou menos 530 hectares, além de haver indícios de outros 267 hectares dentro da área da Fazenda Alagoas, propriedade particular intrusiva no território Kalunga, próxima à nascente do Rio da Prata, em Cavalcante, afetando parte da Área de Proteção Ambiental (APA) de Pouso Alto.

O desmatamento foi realizado com tratores e os chamados “correntões”, sem licença para realização. Além disso, foram apreendidas 300 toneladas de calcário, minério utilizado para controle do solo em exploração agrícola. O MPF determinou que a Polícia Federal (PF) instaurasse inquérito para coletar provas do crime, a partir de diligências e vistoria in loco para apurar a extensão do dano ambiental, além de promover oitivas dos donos da fazenda e dos arrendatários (COMBATE RACISMO AMBIENTAL, 2020).

Em 2020, o novo juiz da Comarca de Cavalcante, Rodrigo Victor Foureaux, reiterou a decisão do bloqueio das matrículas do imóvel da Fazenda Bonito, realizada anos antes, em 2014, pela juíza Priscila Lopes da Silveira. Ele também informou que foi aberto inquérito policial para apurar irregularidades no registro de áreas do imóvel Bonito pelo cartório de Cavalcante e identificar os responsáveis.

“Revelou-se mais razoável que as matrículas permaneçam bloqueadas e os interessados deverão providenciar regularizar suas propriedades em ações judiciais próprias, indicando no polo passivo todas as pessoas que constam como titulares de matrículas que tenham a mesma área, uma vez que o perito já indicou no laudo que há sobreposição de área e que a soma das áreas das matrículas corresponde a 4,17 vezes mais o que consta dos títulos paroquiais.” (PINA, 2021)

Nas eleições do executivo municipal realizadas em 15 de novembro de 2020, Vilmar Kalunga (PSB) foi eleito prefeito do município de Cavalcante (GO), com 35,68% dos votos, tendo sido o único quilombola a vencer uma disputa para o executivo municipal no País (G1, 2020).

Segundo Cruz, no De Olho nos Ruralistas (2020), ele assumiu o cargo – com o mandato previsto para encerrar em 2024 – com o intuito de diminuir as desigualdades do município e melhorar o acesso à área do quilombo Kalunga, de estradas precárias, interferindo não só no ir e vir mas também no acesso à água, eletricidade e comunicações.

Neste vídeo, postado em 15 de agosto de 2022 no facebook oficial da Prefeitura de Cavalcante (GO), o prefeito aparece junto ao Secretário de Transporte de Cavalcante, Adriano Fagundes, apresentando o andamento das obras de pavimentação de estradas da zona rural de Cavalcante: https://bit.ly/3wVYi8V. Além disso, o desenvolvimento local a partir da geração de renda para os quilombolas, como o incentivo ao turismo natural e cultural, foi uma de suas propostas de campanha.

Um dos embates do governo de Vilmar seria reverter a mudança do traçado da BR-010 (Rodovia Belém-Brasília, no trecho que liga Goiás a Tocantins), estrada estadual que foi federalizada, e cujo projeto atualizado implicaria no atravessamento da área rural do município, onde está o Parque Nacional (Parna) Chapada dos Veadeiros, pelo sítio histórico de Cavalcante. Durante a campanha, ele foi vítima de preconceito por ser Kalunga.

Segundo publicado pelo Combate Racismo Ambiental, em 03 de fevereiro de 2021, após quase dois anos e cerca de 14 assembleias comunitárias entre os quilombolas, o quilombo Kalunga recebeu, por parte do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente  (Pnuma/ONU), o registro oficial de Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga como o primeiro TICCA do Brasil: Territórios e Áreas Conservadas por Comunidades Indígenas e Locais.

Trata-se de um título global atribuído a territórios tradicionais e comunitários conservados com base na profunda conexão das populações com os locais que habitam, chamados “territórios de vida”. Os Kalunga receberam com boas expectativas o título, já que ele se constituiria em mais uma medida de proteção contra ameaças externas, servindo como validação da ONU sobre a existência e preservação do território, além de incentivar o turismo de base comunitária e a valorização de produtos regionais.

Em março e abril de 2021 ocorreram mais duas invasões no território quilombola por parte do fazendeiro Juvelan de Paula e Souza. A diretoria da AQK notificou o MPF e, em agosto de 2021, a associação enviou um documento ao MPF e ao Incra a respeito das entradas irregulares nos territórios.  O órgão realizou uma vistoria no local e notificou o fazendeiro (PINA, 2021).

No mesmo mês, o MPF ajuizou uma ação civil pública (ACP) com pedido de tutela provisória de urgência para que a Justiça Federal (JF) determinasse, liminarmente, a imediata reintegração de posse de todas as áreas que compõem o território Kalunga e que estavam sendo invadidas ou esbulhadas. O pedido de tutela provisória de urgência está em processo de apreciação por parte do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) (COMBATE RACISMO AMBIENTAL, 2022).

 

A ACP foi movida tendo como réus o Estado de Goiás, a Fundação Cultural Palmares, o Incra, pessoas incertas e não identificadas e a União Federal, demonstrando a omissão desses órgãos em tomar medidas efetivas para evitar a invasão e a expropriação do território quilombola por parte dos fazendeiros.

Segundo consulta realizada no site do MPF, a última atualização do processo ocorreu em 19 de abril de 2023, com movimentações e distribuições entre a Procuradoria da República de Luziânia/Formosa (GO) e a Justiça Federal – Subseção Judiciária de Formosa. As atualizações a respeito da ACP Nº 1002560-50.2021.4.01.3506 podem ser acompanhadas em: https://bit.ly/3lbTTfi.

Além disso, o MPF pediu atuação mais enérgica da União, do Incra e do estado de Goiás na titulação do território. Também foi aberto um procedimento para averiguar exclusivamente denúncias relacionadas à fazenda Bonito, sem conclusão dos trabalhos, segundo veiculado pela Agência Pública (2021).

É importante salientar que, em 2021, o orçamento do Incra para executar ações que envolviam a regularização fundiária de territórios quilombolas em todo o País foi de R$ 286 mil — valor 166 vezes menor do que os R$47,6 milhões empenhados em 2012, ano em que o órgão teve o maior montante de recursos disponíveis para execução do processo desde 2004 (PINA, 2021).

Em 25 de março de 2022, o Combate Racismo Ambiental republicou matéria apontando que cinco famílias quilombolas Kalungas conseguiram na Justiça a reintegração de posse da Fazenda Vista Linda 4, em Cavalcante, numa área de 2,2 mil hectares. A área vinha sendo reivindicada desde 2013 pelo agropecuarista Juvelan de Paula e Souza, estando desde aquele momento em posse de Juarez Ferreira de Souza.

Juvelan alegava que a propriedade era sua e de seus irmãos, citando decisão judicial reconhecendo a área como de domínio particular, proferida em 1992, e já transitada em julgado.

Embora tivesse estabelecido moradias, plantações e criação de animais para subsistência nessa área, em 2017, Juvelan havia questionado a validade dos documentos de titularidade da associação na Justiça, o que foi rejeitado. Mesmo assim, ignorando decisão judicial, ele invadiu a Fazenda Vista Linda 4 em junho de 2020 e construiu casa, curral para animais, deu início a plantações e passou a ameaçar as famílias quilombolas residentes.

A AQK apresentou o Contrato de Concessão de Direito Real de Uso Coletivo, recebido do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 2015, como prova da transferência formal da posse do referido imóvel. Além disso, o direito de ocupação dos quilombolas em Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás havia sido reconhecido pela Lei Estadual nº 11.409/1991, ratificada pela Lei Complementar nº 19/1996, e pelo Decreto Presidencial de 20 de novembro de 2009.

O Juiz federal substituto Thadeu José Piragibe Afonso, da Vara Federal da Subseção Judiciária de Formosa, em Goiás, entretanto, atendeu pedido da Associação Quilombo Kalunga (AQK) e autorizou o uso de força policial para o cumprimento da reintegração, dado que Juvelan havia desrespeitado decisão judicial anterior sobre a mesma área.

O Juiz entendeu que o agropecuarista não tinha provas de possuir direito de propriedade ou posse justa e de boa-fé, e atendeu o pedido das famílias quilombolas. Portanto, a decisão da Justiça foi uma vitória para os Kalungas (COMBATE RACISMO AMBIENTAL, 2022).

Entre os dias 19 e 20 de maio de 2022, cerca de 50 pessoas da comunidade quilombola participaram de oficina sobre direitos humanos, objetivos do desenvolvimento sustentável e acerca da ferramenta de georreferenciamento intitulada “Plataforma de Territórios Tradicionais”, que visa disponibilizar diversas informações sobre áreas habitadas por povos e comunidades tradicionais no Brasil.

A iniciativa é realizada com o Projeto Territórios Vivos, em parceria com o Ministério Público Federal (MPF), o Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) e a Agência Alemã de Cooperação Internacional (Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit – GIZ). A proposta é que, entre 2022 e 2024, ocorra uma série de oficinas de formação nos estados de Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, para representantes das comunidades usarem a plataforma e multiplicarem os conhecimentos, contribuindo com dados sobre suas comunidades para subsidiar o MPF e outros órgãos públicos a propor garantias de direitos a elas (COMBATE RACISMO AMBIENTAL, 2022).

Reportagem de Ramos para o De Olho Nos Ruralistas (28 de setembro de 2022), republicada pelo Combate Racismo Ambiental, denunciou que fazendeiros aliados do governador do estado de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), estariam ameaçando e destruindo a produção dos quilombolas Kalungas. Segundo a reportagem, o candidato a prefeito de Cavalcante em 2020, Luiz Henrique Moreira, teve sua campanha financiada pelo primo do governador, Breno Caiado, que doou R$ 21 mil.

Seu pai, Osvaldo Antônio da Silva, também estaria envolvido com as invasões e destruições dentro do território quilombola. Moreira reivindica um suposto direito hereditário sobre as terras do quilombo, apesar de ter declarado ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) possuir apenas R$ 2.000 em espécie e nenhuma propriedade, rural ou urbana.

Segundo relato de uma moradora do quilombo, dona Getúlia Moreira da Silva, os fazendeiros invadiram as colheitas, derrubaram o rancho e a cerca utilizando-se de motosserra; depois roubaram arroz, puseram fogo, e colocaram cavalos para se alimentar da roça de cana e mandioca dos quilombolas.

Segundo os quilombolas, as ameaças ficaram mais complicadas desde a eleição do então presidente da República Jair Bolsonaro, que começou em 2019, já que os fazendeiros estiveram mais empoderados para realizar invasões. Muitas vezes, chegam armados e contam com apoio da polícia, disparando tiros para intimidar os moradores (COMBATE RACISMO AMBIENTAL, 2022).

Na semana de 14 a 18 de novembro de 2022, conforme republicado pelo Combate Racismo Ambiental, o Ministério Público Federal em Goiás (MPF/GO), na figura do procurador da República Daniel César Azeredo Avelino, visitou a comunidade, durante dois dias, no intuito de acolher demandas dos quilombolas, especialmente em relação aos processos de reintegração de posse de áreas invadidas.

Durante a visita, o procurador constatou a presença de garimpo ilegal dentro da área quilombola e, em decorrência disso, informou que o MPF instauraria novos procedimentos para frear as invasões e os esbulhos no território, bem como condenar os invasores e promover a reintegração de posse – além da ACP já mencionada, instaurada em agosto de 2021.

Em matéria de Rafael Vilela para o Brasil de Fato (repostada pelo Combate Racismo Ambiental), de 04 de janeiro de 2023, quilombolas da comunidade Kalunga denunciaram estar sofrendo com a invasão de búfalos em seus territórios, em área nativa de cerrado preservado, dentro do sítio histórico. Trata-se da segunda invasão em menos de dois anos de responsabilidade de Marcos Rodrigues da Cunha, fazendeiro e criador de búfalos.

Segundo a advogada da AQK, Andrea Gonçalves Dias, Marcos deveria ter retirado os animais no dia 18 de dezembro de 2022, e, mesmo expirado o prazo, nada foi feito. Os quilombolas oficiaram e ligaram para a Semad solicitando que equipes viabilizassem a retirada dos animais da área.

Os cerca de 80 búfalos vêm causando degradação ambiental, como erosão do solo, destruição de árvores nativas e plantações, redução do número de animais silvestres, bem como contribuem para a proliferação de espécies vegetais invasoras. Um morador perdeu toda a sua roça e tentou, por conta própria, prender 38 búfalos num curral coletivo.

De acordo com o presidente da AQK, Carlos Pereira, o fazendeiro “faz isso de propósito, como forma de retaliar e prejudicar a comunidade, por causa do processo de desapropriação [dos imóveis identificados dentro do] território tradicional”, conforme entrevista concedida ao jornal Brasil de Fato (2023).

Marcos foi multado duplamente pela Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Goiás (Semad). Uma das multas foi de R$ 6 mil, em decorrência de degradação de área de preservação permanente (APP); a outra multa foi maior, R$ 300 mil, pelo fato de a atividade pecuária ser ilegal naquela região.

O fazendeiro responsável alega ser proprietário de três imóveis rurais no território. Porém, essas terras passaram por um processo de desapropriação e de reconhecimento do território Kalunga como Sítio Histórico e Patrimônio Cultural.

O processo se encontra inconcluso devido à suspensão das desapropriações do Incra durante o governo Jair Bolsonaro.

 

Atualizada em fevereiro de 2023

 

Cronologia

A partir de 1722 – Comunidades negras escravizadas, fugidas do trabalho nas minas de ouro, passam a se fixar na região que viria a se tornar o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, na Chapada dos Veadeiros, em Goiás (GO).

1991 – É aprovada a Lei Estadual Nº 11.409/1991, qualificando a comunidade Kalunga como sítio histórico e patrimônio cultural em Goiás.

1996 – É aprovada a Lei Complementar nº 19/1996, que também dispõe sobre sítio histórico e patrimônio cultural em Goiás.

2000 – A Fundação Cultural Palmares (FCP) reconhece o território tradicional Kalunga em Goiás.

2003 – Ocorre a transferência de competência da titulação dos territórios quilombolas para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

2004 – O Incra abre o processo de titulação das terras quilombolas dos Kalungas.

2005 – A comunidade Kalunga é identificada como remanescente de quilombos.

2010 – O quilombo Kalunga é declarado como área de interesse pela Presidência da República e são iniciados procedimentos de desapropriação dos imóveis rurais localizados em sua área de abrangência.

2011 – A superintendência regional do Incra, reconhece, em ofício, conflitos e sobreposições de matrículas no registro dos imóveis no território quilombola.

Dezembro de 2011 – O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO) reconhece a legalidade do título de posse territorial do quilombo Kalunga.

Julho de 2012 – O Ministério Público Federal em Goiás (MPF/GO) ajuíza Ação Civil Pública (ACP) para que o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) e a União suspendam concessões minerárias, licenças e permissões para atividade mineral no interior do território Kalunga.

2014 – Funcionários do Cartório de Cavalcante (GO) verificam que a Fazenda Bonito, dentro do território Kalunga, possui 150 matrículas e transcrições de áreas sobrepostas.

Julho de 2014 – A juíza substituta da comarca de Cavalcante, Priscila Lopes da Silveira, bloqueia matrículas relacionadas à Fazenda Bonito.

2015 – A Polícia Civil de Goiás (PCGO) conclui pelo menos oito inquéritos, mesmo sem a responsabilização e punição dos criminosos, com denúncias sobre o uso de meninas como escravas sexuais na comunidade quilombola Kalunga.

20 de abril de 2015 – Integrantes da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM/CD) vão até Cavalcante realizar diligências junto com autoridades do Poder Executivo e do Ministério Público Federal em Goiás (MPF/GO).

22 de abril de 2015 – Ação do juiz Lucas Mendonça Lagares, da Comarca de Cavalcante, localiza vários processos envolvendo abusos sexuais de crianças e adolescentes quilombolas.

23 a 25 de abril de 2015 – Comissão do Governo Federal realiza visitas para tratar especialmente de abusos de menores no quilombo Kalunga.

06 de julho de 2015 – A Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados recebe relatório sobre violações de direitos humanos no território quilombola Kalunga.

Junho de 2016 – A Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) torna público o “Plano de Ações para o quilombo Kalunga”.

2017 – O fazendeiro Juvelan de Paula e Souza questiona no judiciário a validade dos documentos de titularidade dos quilombolas da Fazenda Vista Linda 4, em Cavalcante.

06 de julho de 2018 – O procurador-geral do Estado de Goiás, Luiz César Kimura, entrega a escritura de Concessão de Direito Real de Uso de 75,2 mil hectares de terras para a Associação Quilombo Kalunga (AQK).

Setembro de 2018 – Membros do Instituto Atá, coordenado pelo chefe de cozinha paulistano Alex Atala, visita a comunidades Kalunga Engenho II, em Cavalcante, com o intuito de colher informações sobre a baunilha do cerrado e outras especiarias locais, como a pimenta-de-macaco.

Novembro de 2018 – Médicos cubanos deixam o Programa Mais Médicos após o então presidente eleito Jair Bolsonaro (PL) ameaçar expulsá-los do País.

Maio de 2019 – É aprovado o regimento interno da Associação Quilombo Kalunga (AQK), que dispõe sobre regras de gestão e manutenção do território.

Junho de 2020 – O fazendeiro Juvelan de Paula e Souza invade a Fazenda Vista Linda 4 e constrói estruturas como casa, curral para animais e plantações, ameaçando os quilombolas.

04 de junho de 2020 – A Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Estado de Goiás (Semad) e a Delegacia Estadual de Repressão a Crimes Contra o Meio Ambiente (Dema), realizam operação para apurar crimes ambientais dentro do quilombo Kalunga.

08 de junho de 2020 – O MPF instaura Notícia de Fato (NF) com o intuito de apurar o desmatamento ilegal de cerca de mil hectares dentro do Sítio Histórico do Patrimônio Cultural Kalunga, em Cavalcante (GO).

2020 – O novo juiz da Comarca de Cavalcante, Rodrigo Victor Foureaux, reitera a decisão do bloqueio das matrículas do imóvel da Fazenda Bonito, realizada anos antes, em 2014.

15 de novembro de 2020 – Vilmar Kalunga (PSB) é eleito prefeito do município de Cavalcante (GO) com um programa de governo voltado para atender as históricas reivindicações das comunidades quilombolas do município.

03 de fevereiro de 2021 – O quilombo Kalunga recebe, por parte do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma/ONU), o registro de Territórios e Áreas Conservadas por Comunidades Indígenas e Locais (TICCA).

Março e abril de 2021 – A diretoria da AQK notifica o MPF após duas invasões de fazendeiros no território quilombola.

Agosto de 2021 – A AQK envia documento ao MPF e ao Incra a respeito das invasões ao território Kalunga.

– O MPF ajuíza Ação Civil Pública (ACP) para que a Justiça Federal (JF) determine a imediata reintegração de posse de todas as áreas que compõem o território Kalunga.

2021 – O orçamento do Incra para executar ações de regularização fundiária de territórios é de apenas R$ 286 mil reais, valor 166 vezes menor do que em 2012, insuficiente, portanto, para atender as demandas por indenização dos imóveis situados na área identificada como parte do território Kalunga.

25 de março de 2022 – Cinco famílias quilombolas Kalungas conseguem na Justiça a reintegração de posse da Fazenda Vista Linda 4, em Cavalcante, numa área de 2,2 mil hectares.

19 e 20 de maio de 2022 – Cerca de 50 pessoas da comunidade quilombola Kalunga participam de oficina de direitos humanos, Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODSs) e sobre o uso da ferramenta “Plataforma de Territórios Tradicionais” do MPF.

28 de setembro de 2022 – Denúncias veiculadas pela mídia apontam que fazendeiros aliados ao governador do estado de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), estão ameaçando e destruindo a produção dos quilombolas Kalunga.

14 a 18 de novembro de 2022 – O Ministério Público Federal em Goiás (MPF/GO) visita a comunidade Kalunga para acolher demandas em relação aos processos de reintegração de posse de áreas invadidas.

Dezembro de 2022 – Após expirado o prazo para o criador de búfalos Marcos Rodrigues da Cunha retirar os animais do território quilombola, a AQK oficia e liga para a Semad solicitando providências.

04 de janeiro de 2023 – Quilombolas da comunidade Kalunga denunciam novamente a invasão de búfalos em área nativa de cerrado preservado dentro do sítio histórico.

 

Fontes

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