RO – A terrível história dos Cinta Larga

UF: RO

Município Atingido: Porto Velho (RO)

Outros Municípios: Ji-Paraná (RO), Porto Velho (RO)

População: Povos indígenas, Seringueiros

Atividades Geradoras do Conflito: Implantação de áreas protegidas, Madeireiras, Mineração, garimpo e siderurgia

Impactos Socioambientais: Desmatamento e/ou queimada, Erosão do solo, Poluição de recurso hídrico

Danos à Saúde: Desnutrição, Doenças transmissíveis

Síntese

Em fevereiro de 2003, organizações indígenas brasileiras estiveram em Washington para uma reunião com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) onde denunciaram as violações de direitos humanos sofridas pelos povos indígenas de Raposa Serra do Sol, em Roraima, e dos Cinta Larga, em Rondônia e Mato Grosso.

O documento entregue à Comissão destaca, sobre os Cinta Larga, ?o saque e a espoliação econômica de recursos das Terras Indígenas, especialmente os garimpos de diamantes, que envolvem assassinatos, tortura e semi-escravidão de índios e garimpeiros. Outros pontos importantes são a disseminação de alcoolismo e de prostituição entre as comunidades indígenas e o aumento da ocorrência de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), desnutrição e mortalidade infantil. Esta grave situação coloca os Cinta Larga como o único povo cuja população tem diminuído nos últimos anos, em contraposição ao aumento geral da população indígena no Brasil.?

Contexto Ampliado

Para uma contextualização histórica da situação dos Cinta Larga, utilizamos vários trechos do estudo Os Cinta Larga, os diamantes e os conflitos: uma cronologia, elaborado pela equipe Povos Indígenas no Brasil, do Instituto Socioambiental (ISA).

Ocupando uma área de 2,6 milhões de hectares nos Estados de Rondônia e Mato Grosso, a Terra Indígena (TI) Roosevelt possui um raro kimberlito – rocha vulcânica em que é encontrado o diamante. Segundo estudo da Companhia de Pesquisa e Recursos Minerais (CPRM), órgão do Ministério das Minas e Energia, este minério é único no país, e poderia gerar uma mina industrial de diamante de gema com capacidade para produzir, no mínimo, um milhão de quilates de pedras preciosas por ano, o que representaria uma receita anual de US$ 200 milhões.

A extração mineral em Terra Indígena é ilegal e depende da regulamentação do Congresso Nacional. Entretanto, a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) e o serviço de inteligência da Polícia Federal (PF) estimam que US$ 20 milhões em diamantes da TI Roosevelt saiam ilegalmente do País. Essa terra é considerada uma das dez maiores minas de diamante do mundo e está incluída na rota dos grandes traficantes internacionais de pedras.

Em meados do século XX, seringalistas pioneiros no território chegaram com exploradores de garimpos. Segundo a cronologia do ISA, a década de 1950 registrou vários conflitos dos Cinta Larga com garimpeiros e seringueiros. Este quadro se agravou com a inauguração da estrada Cuiabá-Porto Velho (BR 364), em 1960.

A conturbada trajetória dos confrontos da colonização de Rondônia com os Cinta Larga, como lembraria o sociólogo e advogado Roberto Santos, em artigo também publicado pelo Instituto Socioambiental (ISA), terá início, na fase mais contemporânea, em 1963, motivada provavelmente pelo potencial das jazidas da Terra Indígena (TI) Roosevelt. Ele cita a seguinte passagem de autoria do antropólogo Shelton Davis:

Em 1963, um homem chamado Francisco de Brito, que trabalhava para a Arruda e Junqueira [empresa de produção de borracha], organizou um bando de garimpeiros e pistoleiros para expulsar os Cinta Larga de suas terras. De acordo com relatos desse incidente, que mais tarde ficou conhecido como o Massacre do Paralelo Onze, Brito alugou um avião para atacar as aldeias dos Cinta Larga. No momento do ataque, os Cinta Larga estavam em meio a um importante cerimonial. Parece que, ao meio-dia, o avião com Brito e seus capangas chegou à aldeia dos Cinta Larga e jogou pacotes de açúcar sobre os índios. Em seguida, o avião deu uma rasante e começou a dinamitar a aldeia. Ninguém sabe exatamente quantos índios foram mortos nesse ataque. Alguns, porém, escaparam, e outra expedição foi organizada para exterminar a tribo.

Conflito envolvendo questões de garimpagem voltou a ocorrer em 1968, quando: uma turma de sete homens, contratados pelo seringalista José Milton de Andrade Rios para a pesquisa mineral, foi cercada por dezenas de Cinta Larga nas imediações do rio Roosevelt. Os mineradores estavam fortemente armados e mataram dez índios. (…) No mesmo mês, a oeste, os Cinta Larga atacaram o acampamento do garimpeiro Raul Moreda, o ‘Raul Espanhol’, às margens do rio Aripuanã. (…) Morreu o garimpeiro Constantino Borges e três outros foram flechados. Os Cinta Larga carregaram ferramentas, utensílios, roupas e mercadorias, jogando as espingardas na água. [Mas] segundo antigos moradores de Aripuanã, Raul Espanhol teria buscado reforços no acampamento do seu comparsa Manelão, causando muitas baixas entre os índios.

Neste mesmo ano, teve início a Operação Cinta Larga, que consistia em um plano de ‘pacificação’ do grupo, (…) sob o comando geral de Hélio Bucker, chefe da 6ª Inind [a Inspetoria Regional (Inind) era vinculada ao Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Após a extinção do SPI e criação da FUNAI, em 05/12/1967, a Inind passou a ser denominada Delegacia Regional. Hélio Bucker, militar reformado, dedicou-se à causa indígena, sendo já titular da 5ª Delegacia Regional da FUNAI, no antigo Estado do Mato Grosso, em 1968]. A Operação Cinta Larga desdobrou-se em duas frentes. Uma delas foi liderada pelo sertanista Francisco Meirelles e concentrou-se na região de Riozinho e Cacoal, em Rondônia, resultando no contato com os Índios Suruí que ali viviam. A outra frente foi encetada pelo sertanista João Américo Peret e visava atingir os índios do vale do Aripuanã. Através do Decreto presidencial n°62.995 de 16/07/1968, a área entre os rios Juruena e Roosevelt foi interditada para fins de pacificação dos Cinta Larga e outros grupos.

Em 1969, a recém-criada FUNAI criou o subposto Roosevelt, dividindo o pólo de atração com o posto Sete de Setembro. (…) Em julho de 1969 foi criado o Parque Indígena do Aripuanã (Decreto n° 64.860), atendendo aos mesmos limites da área interditada pelo decreto anterior, ‘com a característica principal de área reservada aos índios Cinta Larga e Nambikwara, para os efeitos do artigo 186 das Constituição’. Com isto, foi garantida parcela significativa do território aos Cinta Larga e as condições iniciais para a Funai melhor desenvolver seus trabalhos na área.

Em fins de 1971, os Cinta Larga mataram dois funcionários da FUNAI, Possidônio Bastos, ex-jornalista que há pouco chefiava o subposto Roosevelt, e o radiotelegrafista Acrísio Lima. Na versão de um Cinta Larga, um garimpeiro compareceu a uma festa na aldeia, mas foi impedido de ‘namorar’ uma das índias e teria passado veneno no pilão de fazer chicha (bebida fermentada tradicional, à base de mandioca ou milho). Em vingança, os índios atacaram o acampamento onde a Funai recém instalara-se. Para os Cinta Larga, o envenenamento seria a explicação mais plausível para a epidemia de gripe, doença até então desconhecida entre eles, que dizimou a população de várias aldeias.

Entre 1971 e 1974, os Cinta Larga começaram a corresponder às tentativas da FUNAI de aproximação, fazendo visitas e algumas celebrações em pequenos grupos, além da troca de prendas com técnicos do órgão e pesquisadores.

O Decreto n° 73.563 de 24/01/1974 alterou os limites do parque indígena, estabelecendo o rio Aripuanã como seu limite leste. Mas, no mesmo dia, o Decreto n° 73.562 interditou duas áreas contíguas aos limites do Parque, diminuindo ainda mais sua extensão. Poucos meses após a primeira visita, um grupo de sessenta e nove Cinta Larga visitou Aripuanã. Foram recebidos pelos moradores com aguardente, fumo, roupas velhas e o pouco de comida (…). Os índios acabaram contraindo gripe. Ao voltarem para a floresta, a doença se alastrou, resultando na morte de quase metade da população Cinta Larga dessa região.

No ano seguinte, ocorre a descoberta de ouro em um dos córregos do rio Branco. Pouco depois os garimpeiros se transferiram para o igarapé Jurema, afluente do Ouro Preto. A exploração de ouro teve altos e baixos, porém atraiu a atenção dos Cinta Larga. Alguns que moravam a pouco mais de 30 Km passaram a frequentar o local.

Por volta de 1979-80, uma firma norte-americana (Amcon Mining) havia comprado os direitos sobre a área do garimpo Ouro Preto, identificada em 1976, dando início a suas atividades de pesquisa. Em 1984, houve a retirada do garimpo Ouro Preto e a instalação de um Posto Indígena da FUNAI com a ocupação das instalações do antigo garimpo.

Em meados de 1987, os garimpeiros voltaram para área, comprando os índios com mercadorias, transporte e participação na extração do ouro. A direção da FUNAI era cúmplice nesse processo, havendo denúncias de subornos e corrupção.

A partir de 1999, os achados na Terra Indígena Roosevelt adquirem nova proporção. É descoberta a jazida de diamantes, que traz toda forma de pressão, conflitos e mortes. No ano seguinte, acontece a invasão das terras e a criação de um mega-garimpo de diamantes. O foco principal era a TI Roosevelt, mas o garimpo se alastra para outras TIs dos Cinta Larga: Serra Morena, Aripuanã e Parque Aripuanã, como tambm para as terras dos Suruí, Zoró, Gavião, Arara, Nambikwara e os Arara de Aripuanã. No início de 2001, acontece a retirada de cerca de mil garimpeiros da TI Roosevelt pela Polícia Federal.

Em setembro de 2001, Carlito Cinta Larga, 28 anos, filho do cacique Mario Parakida, denuncia ao Ministério Público a exploração ilegal de madeira nas terras da etnia. Carlito auxiliava o pai na negociação de madeira com os madeireiros. A Polícia Federal enviou equipe para investigar o caso, mas os agentes só encontraram uma balsa no local. (…) No mês seguinte, uma operação da Polícia Federal, FUNAI, Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) e Instituto Nacional de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) apreendeu sete caminhões carregados com mangueiras, tubulações, motores, tambores de óleo diesel, tratores, fogões e 11 mil metros de tubos na TI Roosevelt.

No final de 2001, Carlito Cinta Larga foi assassinado a tiros quando chegava em casa, na cidade de Aripuanã. Pouco depois, César Cinta Larga, de Espigão dOeste, cidade próxima ao garimpo Roosevelt, foi também assassinado. César morreu por afogamento e teve uma das mãos decepadas, provavelmente sendo torturado antes de morrer.

Em 21 de março, teve início a operação de expulsão de cerca de 2.500 garimpeiros da TI Roosevelt, na qual índios e policiais federais se uniram para combater o garimpo clandestino.

Em abril de 2002, os caciques Cinta Larga Nacoça Pio, João Cinta Larga, Alzac Tataré e Amaral, todos moradores da TI Roosevelt, foram presos, acusados de homicídio, favorecimento de garimpo ilegal, degradação ambiental e porte ilegal de armas. Os quatro haviam liderado a mudança de posição dos Cinta Larga em relação ao garimpo, passando a ser contra a atividade. Os caciques foram soltos após passarem seis dias recolhidos na carceragem da Polícia Federal, em Porto Velho (RO).

A seguir, a TI Roosevelt foi invadida pelos garimpeiros que dali haviam sido retirados. A invasão teria resultado em quatro garimpeiros mortos e 28 feridos. Em 26 de abril, o jornal O Estadão do Norte, de Rondônia, informou que o ex-prefeito de Ariquemes e ex-senador cassado Ernandes Amorim estava incitando os garimpeiros a invadir novamente a terra indígena.

Em junho de 2002, o presidente Fernando Henrique Cardoso recebeu carta de movimentos sociais manifestando oposição ao Projeto de Lei (PL) 1610, que buscava a legalização da mineração em terras indígenas. O documento alertava para as perdas das comunidades indígenas e os danos ambientais que resultariam da aprovação do projeto do senador Romero Jucá (PMDB).

Em junho de 2002, lideranças das diversas Terras Indígenas Cinta Larga (…) decidiram que os próprios índios deveriam cuidar da exploração mineral e da preservação ambiental em suas terras. A garimpagem seria levada a cabo pela Associação Indígena Pamaré.

A partir de 2003, diante do agravamento da situação e das intrusões garimpeiras na terra indígena Roosevelt, diferentes missões começaram a visitar os Cinta Larga. Entre janeiro e agosto, houve uma ação de desintrusão da TI. Em junho, a Plataforma Dhesca denunciou o caso da etnia.

Em outubro de 2003, garimpeiros ameaçaram invadir novamente a área. Entre outubro e novembro, os Cinta Larga foram visitados pela Comissão Parlamentar de Direitos Humanos [da Câmara dos Deputados] e pelo relator nacional para o Direito Humano ao Meio Ambiente da Plataforma Dhesca, Jean Pierre Leroy – acompanhado da subprocuradora geral da República, Ella Volkmer de Castilho, de representantes de entidades indígenas e da FUNAI, além da indigenista Maria Inês Hargreaves.

Notícia veiculada em 24 de outubro de 2003 pelo site do ISA registrou a chegada do avião com José Roberto Gonzales no garimpo Roosevelt, poucos dias antes, em que ele teria se apresentado: como funcionário da Companhia de Mineração de Rondônia (CMR) e membro de uma ONG de Minas Gerais chamada Centro Mineiro para Conservação da Natureza (CMCN). Avisada pelos índios, a Funai de Cacoal foi até a área e Gonzalez foi encaminhando pela polícia ambiental à Polícia Federal em Pimenta Bueno. Ali, de acordo com informações do delegado Fabiano Bordignon, Gonzalez foi ouvido e declarou estar no garimpo para entregar aos índios uma proposta em nome da Companhia de Mineração de Rondônia. (…) A presidente da Companhia de Mineração de Rondônia (CMR), Leandra Vivian, também chefe de gabinete do governador Ivo Cassol, ouvida pela reportagem do ISA, confirmou que Gonzalez era assessor para assuntos comercias da companhia, mas que desconhecia o fato de ele haver estado com os Cinta Larga.

Ao se dirigir à PF, Gonzales teria deixado na aldeia Roosevelt uma bolsa cheia de papéis no mínimo comprometedores. Entre eles, uma procuração da presidente da Companhia de Mineração de Rondônia, Leandra Vivian, a mesma que negou à reportagem do ISA desconhecer a presença de seu assessor comercial na aldeia Cinta Larga. Havia ainda uma proposta de se fazer uma cooperativa indígena para vender diamantes para a Companhia de Mineração de Rondônia, contou Walter Blós – coordenador do Grupo Tarefa para a questão Cinta Larga e assessor da presidência da FUNAI. Também foi encontrada uma minuta de convênio entre o Centro Mineiro para a Conservação da Natureza (CMCN), organização vinculada à Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais, na qual Gonzalez também trabalha como coordenador de projetos, e a Associação Paerenã Indígena Ecológica de Proteção Ambiental, uma das organizações dos Cinta Larga.

Segundo a notícia do ISA, o texto do convênio estabelecia o objetivo de organizar e facilitar entre as partes a cooperação e a colaboração científica e tecnológica em projetos, ações, programas voltados para a preservação e conservação de recursos ambientais, aproveitamento de recursos renováveis ou não renováveis, bem como a busca de outros recursos que viabilizem a concretização dos objetivos dos conveniados. Contudo, em momento nenhum aparecem escritas as palavras mineração ou garimpo. Apenas se fala em aproveitamento dos recursos renováveis e não-renováveis. A minuta também não tem data, mas está assinada pelo cacique João Cinta Larga, por Laércio Couto, presidente da CMCN, por José Roberto Gonzalez, também pela CMCN. O último nome é o de Marco Kalisch, observador de uma organização denominada Great Forest Inc, que entretanto não assinou a minuta. A papelada foi registrada em cartório de Cacoal, em 23 de setembro de 2003.

Em 2004, o relator de direitos humanos ao meio ambiente da Plataforma de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Plataforma Dhesca Brasil) Jean Pierre Leroy sintetizou a situação dos índios Cinta Larga (que já haviam sido objeto de um relato Dhesca, no ano de 2003):

O caso dos Cinta Larga no Estado de Rondônia reúne todas as formas de manifestação da violência já mencionadas da força policial. Na histórica e total omissão do Poder Público, seu território foi explorado e saqueado, foram massacrados a ponto da população ser reduzida de 5.000 para 1.300 indivíduos em apenas 40 anos. Ainda hoje sofrem pressão intensa dos garimpeiros e madeireiros. São humilhados e ameaçados nas cidades próximas, o que levou muitas famílias indígenas a retirar seus filhos das escolas com medo da violência e da discriminação. A imprensa local contribui para criar o clima de animosidade contra os Cinta Larga, por meio de matérias sensacionalistas, caluniosas e difamatórias. Em abril de 2004, após a desintrusão da área com apoio do governo federal, houve conflitos que resultaram na morte de garimpeiros que estavam ilegalmente no interior das terras dos Cinta Larga. Em resposta, centenas de garimpeiros, na cidade de Espigão d’Oeste, capturaram e amarraram um professor indígena a uma árvore em praça pública, humilharam-no, apedrejaram-no e por pouco não cumpriram o intento de linchá-lo até a morte porque a Polícia Militar, mesmo acuada, chegou ao local. Na delegacia da cidade, inúmeros inquéritos para apurar crimes contra os Cinta Larga estão inconclusivos, comas investigações paradas. Quando Cinta Larga são os investigados, o Judiciário local decreta a prisão de suspeitos, mesmo com prova escassa e dúbia.

Em março de 2004, a PF prendeu 15 pessoas por envolvimento na compra ilegal de diamantes das terras indígenas dos Cinta Larga. Entre elas estavam o delegado da Polícia Civil em Espigão DOeste, um agente da PF, um servidor do Incra, empresários e Marcos Glikes. Antecipando o auge do conflito prestes a ocorrer, a Polícia Federal iniciou uma greve ‘por tempo indeterminado’, fazendo com que a precária fiscalização das áreas de garimpo dos Cinta Larga ficasse praticamente nula e paralisando totalmente as ações contra contrabandistas de diamantes em Rondônia.

Na provável data de 07 de abril, os guerreiros Cinta Larga atacaram garimpeiros no interior da TI Roosevelt, resultando na morte de 29 deles.

Em 10 de abril, o professor Marcelo Cinta Larga e quatro menores da etnia foram retirados de um táxi por garimpeiros às 12:00, e levados para o meio da praça de Espigão d’Oeste. Mesmo sem ter qualquer ligação com o garimpo, Marcelo foi espancado, violentado e amarrado a uma árvore, em resposta ao assassinato dos garimpeiros na semana anterior. Marcelo ficou em poder dos garimpeiros por mais de 10 horas até conseguir ser libertado pela PM e levado para Ji-Paraná, sob escolta. No dia 11 de abril, se deu a retirada dos corpos de três garimpeiros assassinados no dia 07. (…) Depois de uma semana de procura e muitas denúncias por parte dos garimpeiros, a Superintendência da Polícia Federal confirmou a localização de mais 26 corpos na TI.

Em 29 de abril, os Cinta Larga denunciaram à FUNAI uma nova invasão de garimpeiros na TI Roosevelt. No dia 18 de maio, Moisés Cinta Larga, de 14 anos, foi assassinado com dois tiros nas costas em emboscada em Espigão DOeste, a menos de dois Km da TI Roosevelt. Uma ação penal foi instaurada após o episódio dos 29 garimpeiros mortos, momento em que o envolvimento de políticos e a atuação corrupta de funcionários públicos e de contrabandistas começam a ser melhor detalhados.

Durante a 5ª reunião da Comissão Nacional de Politica Indigenista (CNPI), realizada em Rio Branco, em setembro de 2009, o Portal Jipa registrou que o procurador da República Reginaldo Pereira Trindade, lotado em Rondônia, observou que o círculo vicioso [em torno dos Cinta Larga e a TI Roosevelt] é caracterizado pela cooptação de lideranças indígenas pelo crime organizado. ‘Não raro, em vez do pagamento em espécie, os índios são agraciados com créditos abertos no comércio das cidades circunvizinhas à Reserva Indígena, notadamente Espigão DOeste e Cacoal, a ponto de, atualmente, as dívidas do Povo Cinta Larga somarem centenas de milhares de reais. Tal prática transformaria o pagamento das dívidas, segundo o mesmo procurador, na principal engrenagem para a continuidade do garimpo. ‘Quanto mais os índios garimpam ou deixam garimpar, mais devem e mais precisam continuar garimpando. Muitas dívidas são ilegais e há tempos são cobradas sob a mira de arma de fogo, enfatizou.

Meses antes de a morte de 29 garimpeiros por guerreiros Cinta Larga, o envolvimento direto do gabinete do governador Ivo Cassol na exploração e garimpo ilegal das pedras preciosas locais ficou configurado, segundo revelou notícia da Agência Brasil (EBC) publicada pelo site Amazônia, em setembro de 2004. De acordo com a matéria, o Ministério Público Federal (MPF) pediu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) a abertura de inquérito contra o governador de Rondônia, Ivo Cassol, por envolvimento em questões referentes à extração de diamantes na reserva indígena Roosevelt, do povo Cinta Larga. Cassol é suspeito dos crimes de responsabilidade, facilitação de contrabando e descaminho e prevaricação. O governador de Rondônia teria sido francamente favorável ao garimpo ilegal, chegando, segundo o MP, a incentivar a prática e repudiar a ação constitucional da FUNAI em entrevistas à televisão.

A mesma notícia informou que o senhor José Roberto Gonzales, ligado à ONG Centro Mineiro de Conservação da Natureza, fora contratado pela chefe de gabinete do governador de Rondônia, Leandra Fátima Vivian, presidente da estatal Companhia de Mineração do Estado de Rondônia (CMR), para intermediar a relação com as lideranças indígenas Cinta Larga. Uma conversa telefônica mantida entre Gonzales e o delegado da Polícia Federal José Bocamino – também acusado de pertencer ao esquema de contrabando de diamantes – foi monitorada no âmbito da ‘Operação Lince’, permitindo a identificação de um esquema de exploração ilegal de diamantes na reserva. Os contrabandistas teriam investido R$ 1 milhão para compra, transporte e manutenção de máquinas de lavra e pagamento de comissões e propinas. Gonzales deveria proporcionar a entrada e instalação das máquinas no interior da aldeia liderada pelo cacique João Bravo, por meio de contatos e acertos com os indígenas.

Em outra reportagem, a revista Isto É informa que Gonzales foi nomeado em setembro de 2003, com amplos poderes para representar comercialmente a CMR, no Brasil e no Exterior:

Gonzales foi apontado pela PF como um dos principais contrabandistas de diamantes da reserva. Em depoimento prestado no dia 21 de outubro do ano passado, ele confirmou que trabalhava para um peixe ainda mais graúdo: o megacontrabandista internacional de pedras preciosas Marcus Glikas, preso na rodoviária de Cacoal, município próximo à reserva, no dia 8 de março deste ano, após fechar um acordo para compra de gemas com os índios. Investigado nos EUA por crime de lavagem de dinheiro, Glikas chegou a recrutar os agentes da PF Marco Aurélio Soares e José Cadete Silva e policiais militares da região, que acabaram presos. A PF prendeu no fim do ano passado uma rede de laranjas do contrabandista com R$ 3 milhões em pedras preciosas no Aeroporto de Várzea Grande, região metropolitana de Cuiabá. As pedras foram retiradas da reserva Roosevelt.

Fui contratado por Glikas para tentar um acordo com o governo do Estado para operar legalmente na reserva, disse José Roberto Gonzales ao ser localizado na quarta-feira 21, em Belo Horizonte. Um mês depois de ser nomeado procurador da CMR pelo governo do Estado, Gonzales foi desmascarado pelos guerreiros Cinta Larga.

Os Cinta Larga tiveram a oportunidade de denunciar as ações de assédio e violência de que eram vítimas, bem como sua disposição de resistir às invasões. Uma CPI estadual da Garimpagem também encaminhou ao Ministro da Justiça seu relatório final, além de uma carta apontando as irregularidades que vinham ocorrendo na área e a tragédia que poderia acontecer caso não fossem tomadas providências urgentes. Ainda observava que, em razão de competências federais específicas (envolvendo órgãos como a FUNAI, Polícia Federal, DNPM e IBAMA), os problemas não poderiam ser resolvidos no âmbito estadual. Os relatores pediram a intervenção do Exército nas TIs Cinta Larga e citaram que os principais responsáveis pelas invasões e extrações ilegais do diamante eram os próprios índios e funcionários da FUNAI. A CPI foi, no entanto, encerrada sem ouvir nenhum Cinta Larga.

Em 01 de outubro de 2009, notícia veiculada pelo site do Conselho Indigenista Missionário apresentava processo do MPF contra três funcionários da FUNAI que, entre 2001 e 2007, estiveram envolvidos em delitos como a cobrança de pedágio para entrada de garimpeiros na reserva indígena dos Cinta Larga [e] envolvimento na extração ilegal de madeira e de diamantes.

Segundo Ana Aranda, em 2010, os índios Cinta Larga, com apoio da Polícia Federal, tomaram a decisão de paralisar completamente a exploração de diamantes em suas terras. Desde então, a PF mantém barreiras nas principais vias de acesso a TI. Essa decisão, contudo, possui um custo político que está gerando efeitos negativos dentro da terra indígena. Aranda afirma: [As] lideranças Cinta Larga paralisaram o garimpo acreditando na promessa de implementação de um planejamento de vida que atenda as necessidades báicas para uma vida digna dentro da TI, até que a lei que regulamenta a exploração de minerais em terras indígenas saia da gaveta na Câmara Federal, onde aguarda uma decisão dos deputados desde 1999. Sem a contrapartida do governo no acordo, as lideranças indígenas que o acataram sofrem pressões de todos os lados – dos parentes, que vivem em situação de penúria e não acreditam mais nas promessas dos colonizadores, e de uma variada rede de pessoas, empresas e entidades, ávidas pelas pedras preciosas, incluindo perigosos bandidos internacionais.

Numa reunião entre a procuradoria do estado, lideranças locais e a bancada federal do estado, em 18 de agosto de 2011, o procurador Reginaldo Trindade afirmou que a inércia do governo federal para viabilizar alternativas de desenvolvimento local se devia à falta de vontade política: Embora se assemelhe a uma bomba prestes a explodir, a situação é cômoda para o governo, já que o garimpo está paralisado. Na ocasião, a procuradoria solicitou que a bancada estadual no congresso pressionasse politicamente a União para que novos conflitos fossem evitados.

Lideranças indígenas Cinta Larga denunciaram a truculência dos policiais federais responsáveis pela fiscalização nas barreiras, além da enorme diferença entre os recursos investidos na manutenção da força policial no local e aqueles destinados a programas sociais nas aldeias.

Dados levantados pela procuradoria confirmaram as denúncias: O Governo Federal aplicou em ações da Policia Federal, no período de 2006 a 2009, R$ 28 milhões e 430 mil, com valores em escala ascendente a cada ano. Já os programas sociais, de acordo com a FUNAI, tiveram um investimento de R$ 469 mil em 2008 e de R$ 649 mil em 2009, sendo que parte considerável dos mesmos foi aplicada em despesas indiretas, como pagamento de diárias e de combustível. No biênio 2008/2009, as ações repressivas somaram um montante de R$ 7 milhões/ano, sendo que para a FUNAI foi destinado 10% destes investimentos.

Segundo relato de João Guató no portal Proind, Marcelo Cinta Larga, coordenador da Associação Cinta Larga, declarou: Queremos resolver os conflitos que temos com os garimpeiros de forma pacífica, mas promessas não são cumpridas. (…) Não é suficiente somente paralisar os garimpos. É preciso ter alternativas.

Em 30 de junho de 2012, Alexandre Maciel, repórter do jornal 24 News, entrevistou Marcos Aripuanã, coordenador geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e diretor da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que externou a situação de penúria em que vive o povo Cinta Larga. Segundo ele, as políticas públicas de saúde e educação são totalmente ausentes na comunidade, tornando a etnia dependente de uma política assistencialista promovida pela FUNAI – muitas famílias sobrevivem com a doação de cestas básicas.

Marcos aponta ainda outro fator importante para a cultura Cinta Larga, a perda da identidade: Hoje eles também passam por um problema muito grave que é a questão da religião. Uma igreja evangélica implantou seus mecanismos naquela área e hoje eles também estão reféns disso. A atuação dúbia da FUNAI estaria na origem dessa dependência. Segundo Aripuanã, entra e sai gente das terras indígenas e eles não fiscalizam, não perguntam o que está acontecendo. Porém, quando os índios querem fazer os seus trabalhos para beneficiar a governança do seu território, dizem que não pode, por que a lei diz isso e aquilo, reclama.

Dois meses após as denúncias de Aripuanã, três novos garimpos ilegais foram desativados na TI Roosevelt. Em uma operação que articulou fiscais do IBAMA, da FUNAI e agentes da Polícia Federal, foram apreendidos e destruídos dezesseis motores e caixas separadoras. Segundo depoimento de Carolina Gonçalves para a Agência Brasil, há denúncias de que alguns membros da etnia estariam envolvidos na operação. Aripuanã foi entrevistado por Gonçalves como representante da Coiab e admitiu que muitas aldeias já cogitam a articulação com os garimpeiros para exploração ilegal dos diamantes, pois as políticas assistenciais do Governo Federal são consideradas insuficientes para a manutenção de suas famílias.

Última atualização em: 30 de janeiro de 2013

Fontes

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