RN – Comunidade Quilombola de Acauã seguiu os passos do reconhecimento e está prestes a ter seu território tradicional titulado
UF: RN
Município Atingido: Poço Branco (RN)
Outros Municípios: Poço Branco (RN)
População: Quilombolas
Atividades Geradoras do Conflito: Barragens e hidrelétricas
Impactos Socioambientais: Alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território
Danos à Saúde: Falta de atendimento médico, Piora na qualidade de vida, Violência – ameaça
Síntese
Historicamente, as famílias que vivem na comunidade de Acauã foram atingidas pela construção da barragem de Poço Branco, iniciada no fim da década de 1950 e completada em 1969. Com isso, o rio teve seu nível aumentado significativamente, acarretando a retirada das populações que viviam às margens do rio Ceará Mirim. A antiga vila de Poço Branco teve que ser reconstruída a aproximadamente um quilômetro de seu lugar original. Do mesmo modo, diversas comunidades rurais que habitavam áreas próximas das margens do rio Ceará Mirim foram atingidas pela barragem e tiveram que ser transferidas. Isso aconteceu com a antiga comunidade de Acauã.
Através de negociação com o prefeito e os diretores da obra da barragem, as famílias de Acauã conseguiram uma área de terra (aproximadamente 4 hectares) onde vivem hoje. Dezesseis famílias, isto é, apenas uma parte dos que anteriormente viviam na antiga Acauã ou Cunhã Velha – como continuam se referindo ao lugar de origem – foram alocadas no lugar (Valle, 2006). A construção da barragem provocou, portanto, mudanças sociais e ambientais significativas, tal como se constata em estudo realizado na região (Silva et al, 1993).
Um dos efeitos ambientais do represamento foi o desaparecimento da vegetação nativa nas terras próximas da barragem e a formação de terraços estéreis nas antigas planícies de inundação, antes agricultáveis (Valle, 2006). De 1969 até a década atual, a comunidade teve que se confrontar com a falta de terra e também de água, fatores essenciais para sua reprodução social. Esse fato vem gerando conflitos com proprietários que cercam a pequena área onde a comunidade se encontra correntemente. Além disso, lideranças e moradores de Acauã registram dificuldades de acesso e atendimento a serviços públicos básicos (de comunicação, saúde, transporte e educação). Assim, as autoridades municipais de Poço Branco não têm demonstrado ações regulares de atendimento às demandas sociais da comunidade.
Contexto Ampliado
Segundo a história oral, a área teria sido ocupada no passado por José Acauã, escravo fugido de cativeiro (Valle, 2006). As versões deste momento originário envolvem a chegada dos antepassados das famílias atuais de Acauã. Todas estas famílias descendem de ex-escravos e viviam como agricultores nas duas margens do rio Ceará Mirim, consideradas como terras livres, desimpedidas, portanto, consideradas terras do Estado. O processo de concentração fundiária implicou no crescimento das terras aforadas, quais sejam, terras registradas em cartório, e a redução das áreas e terras livres que não eram cercadas.
Com a inauguração da Barragem de Poço Branco, as famílias de Acauã retiraram-se dos locais onde viviam e plantavam e passaram a arrendar terras para a manutenção da autonomia econômica doméstica. O trabalho no corte de cana-de-açúcar passou a ser uma estratégia de sobrevivência e adequação à nova realidade. O trabalho como diarista também manteve-se usual. A situação de precariedade social e econômica persiste desde a remoção. Das 16 famílias originárias da antiga comunidade de Acauã, algumas foram embora. Outras vêm se mantendo através do fortalecimento das relações de casamentos na parentela. Em março de 2006, 224 pessoas viviam em Acauã, segundo relatório antropológico elaborado por Carlos Guilherme doValle: 118 homens (52,67%) e 106 mulheres (47,33%). Eram 56 unidades familiares, ocupando 42 unidades domésticas
Quando as antigas famílias de Acauã foram realocadas para o lugar em que atualmente vivem, perderam o acesso às águas, onde pescavam, e às margens do rio Ceará Mirim, em cujas várzeas plantavam e obtinham argila para produção de cerâmica em uma pequena olaria. Começaram então a depender de negociações com proprietários de terras para chegar ao rio.
Além disso, a água potável seria disponibilizada somente na década de 1990, quando foi construído um duto ligando a comunidade de Acauã a uma área de assentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Nos arredores, a construção de viveiros de camarão proporcionou efeitos negativos no acesso dos moradores de Acauã à água, uma vez que o empreendedor passou a desviar a água de uso da comunidade. A água passou a ser recurso natural de difícil acesso, apesar da relativa proximidade da comunidade com a barragem.
Na presente década, a comunidade passou a pleitear direitos territoriais por razão de sua origem e identidade quilombola. A Constituição Federal de 1988 reconheceu direitos territoriais a partir do estabelecimento e organização do movimento quilombola, sendo reconhecido aos descendentes dos antigos quilombos o acesso a seus territórios tradicionais, por meio do Artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias.
Os conflitos sociais passaram a ser mais evidenciados à medida que as demandas étnicas e os direitos específicos eram contrários àqueles dos proprietários e posseiros que ocuparam e registraram as terras tradicionalmente ocupadas pela comunidade de Acauã.
A participação política de homens e mulheres da comunidade está sendo viabilizada pela Associação dos Moradores do Quilombo de Acauã, registrada em 2005, após determinação de organização comunitária quilombola mais definitiva em meados de 2004 (Valle, 2006).
Observando a normatização político-administrativa do processo de regularização fundiária de terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos pelo INCRA/MDA (decreto n. 4887, de 20 de novembro de 2003), a Comunidade de Acauã se autorreconheceu quilombola perante a Fundação Cultural Palmares (FCP), e requereu o reconhecimento em 24 de agosto de 2004. Iniciava-se, assim, o processo de regularização das terras tradicionais. Por convênio celebrado entre o INCRA, a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e a Fundação Norte-Rio-Grandense de Pesquisa e Cultura (Funpec), foi conduzido estudo antropológico. O estudo chegou à proposta de regularização da terra de Acauã, que inclui o local de moradia atual das famílias da comunidade, as propriedades Gameleira, o sítio São Luiz, as fazendas Amarelona e Maringá e seções da fazenda Santa Terezinha e sítio São Sebastião, totalizando um território de 540,5 hectares (Valle, 2006).
Entretanto, em dezembro de 2007, três homens jogaram gasolina nos cultivos e queimaram cabanas de palha que as famílias quilombolas de Acauã utilizavam para trabalhar, em uma das áreas pleiteadas no processo de regularização fundiária que incidia sobre a fazenda Gameleira. Nazaré Barbosa, uma das líderes da comunidade, prestou queixa na Polícia Civil de Poço Branco, acusando um advogado de autoria do crime. O boletim de ocorrência, publicado parcialmente na edição de 21 de novembro de 2007 do jornal Tribuna do Norte, registrou o comparecimento:
a esta DP, [d]a pessoa da comunicante, informando que na data de hoje em hora citada, o acusado acima qualificado, ateou fogo em várias barracas de palha citas naquela comunidade e que o acusado afirmou na presença das pessoas da comunidade que na próxima segunda-feira irá trazer um trator para passar por cima de tudo, provocando risco à integridade física, inclusive de crianças, estando o acusado acompanhado de dois cidadãos armados com arma de fogo.
Segundo um dos superintendentes do Incra-RN, a fazenda Gameleira estava em processo judicial de desapropriação. O processo está tramitando e tudo está caminhando para que a comunidade de Acauã consiga a posse da terra. O relatório antropológico está pronto e o atual proprietário não contestou em tempo hábil contra a desapropriação, disse.
Para o jornal Tribuna do Norte, a liderança Nazaré Barbosa informou que a comunidade estava em choque pela forma violenta como o advogado agiu. Neste sentido, Acauã constitui outro caso de extrema gravidade social, injustiça e racismo ambiental, por envolver violências objetivas contra a população quilombola.
Em 19 de março de 2008, o presidente do INCRA assinou a portaria 91, que reconheceu e declarou a área de 540,51 hectares como território da Comunidade Remanescente de Quilombo Acauã. Em 10 de julho de 2008, uma ação declaratória de nulidade de ato administrativo foi proposta contra o INCRA por Elias de Azevedo da Cunha Filho, proprietário da fazenda Maringá. A ação está para ser julgada. O processo de regularização das terras da Comunidade de Acauã continua, assim, tramitando e, com exceção da fazenda Maringá, os outros imóveis estão na iminência de desapropriação por decreto presidencial.
A partir de 2009, a comunidade passou a se articular com profissionais ligados ao projeto Convergência Digitais para criação de uma rádio comunitária. Batizada de rádio Melancia, a rádio funcionava em frequência FM e transmitia para diversas comunidades da região através de um transmissor. A concessão pública da rádio foi requerida junto aos órgãos competentes desde então.
Em junho de 2010, a comunidade de Acauã, em parceria com o cinegrafista Luciano Falcão, produziu e fez divulgar na internet um vídeo em que denunciava o risco da proximidade de um lixão municipal e um matadouro público, ambos mantidos a poucos metros da comunidade pela Prefeitura Municipal de Poço Branco. Os quilombolas reclamavam do mau cheiro do local, com a contaminação das fontes de água utilizadas pelas famílias para suas tarefas domésticas e a proliferação de animais vetores de diversas doenças, como moscas, mosquitos e ratos.
No matadouro municipal, os profissionais também eram submetidos a condições precárias de trabalho, manipulando a carne sem quaisquer medidas de proteção individual, higiene e sem conservação adequada do alimento, que é transportado em carrinhos de mão ou carroças para a feira municipal, sem refrigeração ou embalagens, exposta às intempéries e a ação de animais. No mês seguinte, a Associação de Moradores do Quilombo de Acauã (AMQA) conseguiu recursos do Fundo Brasil de Direitos Humanos para um projeto que pretendia atuar na formação de lideranças e assegurar o assessoramento jurídico nas demandas da titulação do território.
O projeto previa ainda ações voltadas para o combate ao racismo institucional praticado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária do Rio Grande do Norte – INCRA/RN, responsável pela demarcação e titulação do quilombo, iniciado em 2004, fiscalizando e pressionando a atuação do Estado para que os processos alcancem seus objetivos finais, beneficiando e salvaguardando os direitos e interesses dos Quilombolas de Acauã.
Ao mesmo tempo em que se articulavam para pressionar o executivo federal a dar continuidade ao processo administrativo de titulação, os quilombolas de Acauã aguardavam a decisão do judiciário a respeito do processo envolvendo a Fazenda Maringá. Em 17 de fevereiro de 2011, foi realizada uma audiência de instrução do processo na qual o autor, Elias Azevedo, o INCRA (réu na ação) e representantes da comunidade foram ouvidos, sendo a comunidade reconhecida pelo judiciário como remanescente de quilombo, uma confirmação da posição da FCP e do INCRA.
Em abril daquele ano, mais um passo foi dado nesse sentido, quando o INCRA foi imitido na posse da área pleiteada pela comunidade (primeiro passo para a realização da titulação do território tradicional). O superintendente regional do INCRA/RN, Valmir Alves, o procurador federal, Adriano Villaça, além de oficiais de justiça, representantes do Movimento Negro e moradores da comunidade estiveram presentes no ato que oficializou o registro da área como patrimônio da União.
Em agosto de 2011, a comunidade sofreu um revés quando o transmissor que servia à rádio comunitária de Acauã foi apreendido por funcionários da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), depois de verificado que a mesma havia operado sem ter obtido ainda a concessão de frequência. Com o fim da rádio, os moradores de Acauã passaram a propor a criação de um jornal comunitário para continuarem a divulgação local de suas demandas, problemas e lutas. Para tanto, o Projeto Convergência iniciou oficinas textuais na comunidade.
Última atualização em: 17 de junho de 2013
Fontes
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