Comunidade quilombola de Barrinha luta por reconhecimento, direitos e contra empreendimentos nocivos a sua subsistência
UF: BA
Município Atingido: Bom Jesus da Lapa (BA)
População: Quilombolas
Atividades Geradoras do Conflito: Especulação imobiliária
Impactos Socioambientais: Alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território, Assoreamento de recurso hídrico, Desmatamento e/ou queimada, Falta / irregularidade na autorização ou licenciamento ambiental, Falta / irregularidade na demarcação de território tradicional, Poluição de recurso hídrico
Danos à Saúde: Piora na qualidade de vida, Violência – ameaça
Síntese
O Quilombo Barrinha, situado no município de Bom Jesus da Lapa, no oeste do estado da Bahia, está às margens do rio São Francisco e integra o Território de Identidade (TI) do Velho Chico. Os Territórios de Identidade da Bahia são divisões criadas para o planejamento e a implementação de políticas públicas estaduais, agrupando municípios que compartilham características culturais, sociais, econômicas e históricas em comum (Bahia, 2017).
Bom Jesus da Lapa é um município-polo na região, reconhecido especialmente pelo turismo religioso. Entre os meses de julho e agosto, a cidade se torna palco de três importantes romarias católicas: a Romaria de Terra e Água, a Romaria do Bom Jesus e a Romaria de Nossa Senhora da Soledade. Esses eventos religiosos atraem aproximadamente 800 mil romeiros e visitantes, segundo dados da prefeitura local, que participam das celebrações para pedir graças ou expressar gratidão por bênçãos alcançadas por intermédio dos santos católicos. Ao longo do ano, a cidade recebe cerca de 1,5 milhão de visitantes, conforme informações da Secretaria Municipal de Turismo (Bahia, 2023).
De acordo com estudo de Kleide Silva (2021), pesquisadora e professora na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), a comunidade quilombola de Barrinha ocupa uma área de pouco mais de mil hectares, para uma média de 70 famílias, onde estão localizadas as suas moradias. Contudo, o acesso restrito ao território tem limitado a realização de atividades tradicionais de cultivo e manejo da terra, fundamentais para a subsistência e manutenção social, econômica e cultural da comunidade. Atualmente, os quilombolas dependem principalmente da pesca, do artesanato e de atividades vinculadas ao turismo para garantir seu sustento (Silva, 2021).
A comunidade quilombola de Barrinha busca o reconhecimento de suas terras, um direito garantido pela Constituição Federal de 1988, que assegura aos remanescentes de quilombos a propriedade definitiva das terras que ocupam. No entanto, a efetivação desse direito tem sido lenta e repleta de obstáculos burocráticos.
A Associação Quilombola de Barrinhafoi formada em maio de 2001 (Silva, 2021), e a comunidade foi certificada pela Fundação Cultural Palmares (FCP), em julho de 2006, como remanescente de quilombos. Atualmente, aguardam a conclusão do processo administrativo de regularização fundiária de seu território, em tramitação no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) desde 2011(Combate Racismo Ambiental, 2024).
Rafique Nasser, no site da Teia dos Povos (2021), detalha que, em 2012, os quilombolas de Barrinha iniciaram um processo de organização e resistência diante das ofensivas de um fazendeiro local que ameaçava o território comunitário por meio de diversas práticas ilegais e agressivas. Entre as ações denunciadas, pelos moradores e moradoras, estão grilagem de terras, esbulho possessório, cercamento e aterramento das lagoas, além do descarte de lixo e entulho de construção civil nas águas da região.
O fazendeiro foi também acusado pela comunidade de realizar o aterramento do leito do rio, o plantio de eucalipto e escavações nas margens do rio São Francisco, além de desmatar a vegetação ciliar nativa para cultivo de grama e tentar comercializar lotes do território da comunidade. Essas práticas foram percebidas pela população local como uma ameaça direta à preservação ambiental e aos direitos territoriais da comunidade quilombola de Barrinha, mobilizando ações de defesa do seu território (Nasser, 2021).
A comunidade quilombola passou a enfrentar um novo desafio com a liberação de licenças para empreendimentos na região, autorizadas pela prefeitura de Bom Jesus da Lapa por meio da Secretaria de Meio Ambiente (Semeia). Entre os projetos licenciados estavam instalações de energia solar operadas pelas empresas Mini Solares do Brasil, Emana Bahia Locação de Equipamentos e Autogeração Solar BJL Barra, além de um aeródromo vinculado ao Ninho do Bacurau. O problema central estava na sobreposição das áreas licenciadas a terras tradicionalmente reivindicadas pela comunidade quilombola.
Essas autorizações foram concedidas sem levar em conta a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que assegura o direito de consulta prévia, livre e informada a povos e comunidades tradicionais. Essa garantia é essencial sempre que medidas ou empreendimentos possam impactar seus territórios ou modos de vida, como neste caso (Combate Racismo Ambiental, 2024).
A Associação Quilombola de Barrinha, como forma de resistir, realizou mobilizações e, em conjunto com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), elaborou documentos de denúncia para o procurador da República na Comarca de Bom Jesus da Lapa, Marcos André Carneiro Silva, para a Defensoria Pública, para o Ministério Público Federal, Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), Incra e à FCP (Nasser, 2021).
Conforme Rafique Nasser (2021), após as denúncias feitas pela comunidade, o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado da Bahia (Inema/BA) realizou uma fiscalização nas áreas em disputa, aplicando multas e impondo interdições aos fazendeiros envolvidos. No entanto, essas sanções foram ignoradas e, em vez de coibir abusos, serviram como justificativa para a intensificação das agressões contra a população tradicional, exacerbando ainda mais o conflito territorial. Contudo, em outubro de 2024, o Ministério Público Federal (MPF) entrou com uma ação civil pública (ACP) solicitando, em caráter de urgência, a suspensão das licenças ambientais e a interrupção imediata das obras e operações das empresas de energia solar e do aeródromo, ambos situados em terras reivindicadas pela comunidade quilombola de Barrinha (Nasser, 2021).
Contexto Ampliado
O quilombo Barrinha está situado no município de Bom Jesus da Lapa no oeste da Bahia. Localizado na transição entre o cerrado e a caatinga, é banhado pelo rio São Francisco, situando-se no Território de Identidade (TI) do Velho Chico. O Território de Identidade é uma unidade de planejamento de políticas públicas do estado da Bahia que agrupa municípios com características sociais, culturais, econômicas e geográficas semelhantes.
Bom Jesus da Lapa é um município-polo do território, destacando-se, sobremaneira, pelo turismo religioso. Situa-se a 796 quilômetros da capital baiana e limita ao norte com Paratinga, ao sul com Malhada, leste com Riacho de Santana e oeste com Serra do Ramalho (Silva, 2021).
O turismo religioso na cidade tem grande destaque nos meses de julho e agosto, quando a cidade se transforma em um importante centro de peregrinação religiosa, sediando três grandes romarias católicas: a Romaria de Terra e Água, a Romaria do Bom Jesus e a Romaria de Nossa Senhora da Soledade. Esses eventos reúnem cerca de 800 mil romeiros e visitantes, conforme dados da prefeitura, que chegam para manifestar sua fé, seja em busca de graças ou para agradecer bênçãos recebidas por intercessão dos santos.
Ao longo do ano, o fluxo turístico atinge aproximadamente 1,5 milhão de pessoas, segundo a Secretaria Municipal de Turismo (Bahia, 2023). A romaria tem suas raízes na descoberta da gruta, em 1691, pelo monge Francisco Mendonça Mar, que transformou o local em um santuário. Com o tempo, a peregrinação ao Morro da Lapa cresceu, especialmente durante o Ciclo do Ouro, quando viajantes e mineradores paravam para orações e agradecimentos.
A festa se consolidou ao longo dos séculos, refletindo a devoção dos fiéis ao Bom Jesus. E a Gruta do Bom Jesus da Lapa se tornou um importante local de peregrinação e devoção no estado da Bahia, sendo o centro da Romaria a Bom Jesus da Lapa (Central da Lapa, 2024).
A comunidade está situada na margem esquerda do rio São Francisco, aproximadamente 3 km distante da sede, e remonta ao período colonial (Nasser, 2021). Os moradores de Barrinha a definem como um quilombo rural, pois se identificam como filhos e filhas de trabalhadores rurais que lutam pela posse da terra, com o propósito de plantar e colher, conforme a função social idealizada pelos moradores e moradoras (Silva, 2021). A comunidade quilombola de Barrinha compõe o conjunto de uma diversidade de quilombos localizados em Bom Jesus da Lapa, que compreende 17 comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares (FCP) (Silva, 2021).
A luta histórica das comunidades quilombolas pelo acesso à terra, desde a colonização até os dias atuais, pautou o direito fundamental ao território, a partir da inscrição, no texto constitucional de 1988, do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Desde então, políticas de garantia ao território tradicional dessas comunidades foram sendo reivindicadas com base na previsão constitucional (Silva, 2021).
Conforme o Censo 2022, o Brasil possui uma população quilombola de 1,3 milhão de pessoas, distribuídas em 7.666 comunidades e 8.441 localidades. O Nordeste concentra a maior parte dessa população, com 68,19% do total nacional. Entre os estados, a Bahia abriga 29,90% dos quilombolas, seguida pelo Maranhão, com 20,26%. Juntos, esses dois estados somam 50,16% da população quilombola do país (Minc, 2024).
A Bahia tem a maior população quilombola, com 397.059 pessoas, o que representam três em cada dez (29,9%) dos 1.327.802 quilombolas identificados pelo censo no Brasil (Notícias, 2023). Conforme o censo de 2022, Bom Jesus da Lapa tem um total de 3.757 quilombolas em seu território; o número representa 5,74% da população total do município, de mais de 65,5 mil habitantes (Notícias, 2023).
Em 2017, a Bahia contava com 736 comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Palmares, sendo 46 delas localizadas no Território de Identidade do Velho Chico. Em 2021, esse número havia aumentado para 797 comunidades certificadas, consolidando o estado como o que abriga o maior número de comunidades quilombolas no Brasil. Apesar desses avanços em âmbito estadual, o número de comunidades quilombolas certificadas no município de Bom Jesus da Lapa permaneceu inalterado desde 2017 (Silva, 2021).
O estado tem 797 comunidades certificadas, e é o maior número de comunidades no Brasil. Em 2006, o estado teve 120 comunidades reconhecidas, soma que corresponde a 15% do total. Em 2013, 128 comunidades receberam os seus certificados, número que corresponde 16%. Entre 2014 a fevereiro de 2019, o estado teve 211 certificados emitidos, isto é, 26,47% de certificados emitidos (Silva, 2021).
É incontestável a importância da política de reconhecimento para as comunidades terem acesso a benefícios específicos provenientes das políticas conquistadas na luta histórica dos povos negros e quilombolas, sobretudo as políticas de acesso à terra. Os marcos legais se configuram assim como mecanismos para conferir maior segurança jurídica a essas comunidades.
No TI Velho Chico, um dos pontos de aproximação de muitas comunidades quilombolas é a luta contra o latifúndio e a pauta de garantia de acesso à terra. A comunidade da Barrinha é marcada por conflitos fundiários, com registros em várias comunidades no município de Bom Jesus da Lapa e região (Silva, 2021).
Conforme Kleide Silva (2021), a comunidade quilombola tem pouco mais de mil hectares circunscritos ao espaço das moradias, pois, devido à falta de título fundiário, as famílias locais não podem exercer trabalhos ligados à terra. Apesar de se considerarem um quilombo rural, agentes externos e o poder público têm forjado a construção de uma imagem da comunidade como urbana (Silva, 2021).
Situada à margem direita da rodovia estadual BA-349, que liga Bom Jesus da Lapa à Santa Maria da Vitória, Barrinha dista 3 quilômetros do centro da cidade, cujo acesso de uma margem a outra do rio São Francisco se dá por meio de uma ponte. A localização do quilombo é de fácil acesso: perto da saída do município em direção à Santa Maria da Vitória (Silva, 2021).
A comunidade ocupa um espaço reduzido, onde vivem aproximadamente 70 famílias. Além da pesca, que é a principal atividade, alguns moradores desenvolvem outras ocupações para complementar a renda familiar. Entre essas atividades estão o comércio em barracas, que dinamizam as margens do rio com o turismo, e o aluguel de barcos para passeios turísticos e outras finalidades. As mulheres da comunidade também contribuem para a economia local por meio da produção de artesanato, uma importante fonte de renda adicional (Silva, 2021)
De acordo com Silva (2021), o trecho do Rio São Francisco que atravessa a comunidade encontra-se gravemente poluído, comprometendo sua qualidade e tornando-o impróprio para banho, além de prejudicar significativamente a pesca, uma das principais atividades econômicas locais. Apesar dessa condição alarmante, nos meses de agosto e setembro, durante o auge das romarias católicas, a Barrinha se transforma em um movimentado ponto turístico. Centenas de visitantes, incluindo romeiros, turistas e moradores de Bom Jesus da Lapa, ainda buscam o local como opção de lazer, mesmo diante dos desafios ambientais impostos pela degradação do rio (Silva, 2021).
O rio, explorado apenas pela população local e pelo turismo, não recebe o devido cuidado de políticas de preservação. Por isso, diz-se que a cidade cresceu “de costas” para ele. Da Barrinha, é possível ter uma visão privilegiada da gruta, que lembra um grande barco virado de quilha para baixo – uma imagem que evoca a sensação de abandono e serve como analogia aos tempos em que as hidrovias do São Francisco eram fundamentais para a região (Silva, 2021).
A maioria das famílias da comunidade de Barrinha vive em terrenos pequenos, geralmente com cerca de 6 por 20 metros, com algumas exceções de 7 por 50 metros para aquelas próximas à ponte. Outras famílias residem em terrenos ainda menores, em casas “parede-meia”, construídas com recursos limitados e padrões considerados de porte baixo na construção civil, com altura de 2,30 metros.
As casas, na maior parte, possuem uma estrutura física composta por uma pequena sala, dois quartos, um banheiro e uma cozinha. Esses ambientes são exíguos para famílias de porte médio a grande, que incluem entre 6 e 10 membros. A combinação dessas condições de moradia com a evaporação do rio aumenta a sensação térmica a níveis insuportáveis, levando os moradores a buscarem alívio na parte frontal das residências ao longo do dia, onde a temperatura é mais amena. Assim, o calor faz com que as famílias se reúnam na frente de casa, criando espaços de socialização que atraem vizinhos, parentes e visitantes, promovendo uma forma particular de convivência social (Silva, 2021).
A Associação Quilombola de Barrinha foi formada em maio de 2001 (Silva, 2021), e certificada pela Fundação Cultural Palmares (FCP), em julho de 2006, como remanescente das comunidades dos quilombos.Até 2024, aguarda conclusão de processo administrativo de regularização fundiária de seu território, em tramitação no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) desde 2011 (Combate Racismo Ambiental, 2024).
Os quilombolas de Barrinha iniciaram um movimento em 2012 para garantir a titulação definitiva da terra para seus moradores e moradoras, pois estão vivendo num contexto de restrição do território. Atualmente, o espaço disponível se restringe apenas às moradias. Na luta pela terra e resistência, os quilombolas buscavam somente o que consideravam seu por direito: um solo fértil para plantar, cultivar e desfrutar do fruto de seu trabalho (Silva, 2021).
O movimento local enfrentou forte resistência, especialmente de um fazendeiro, Quinca Sento-Sé,que reivindicava a posse das terras, o que gerou divisões dentro da própria comunidade. Em meio a esse conflito, a então presidente da Associação decidiu se afastar, resultando na desfiliação de alguns membros. Com a chegada de uma nova liderança, no entanto, a direção política foi reorganizada e, gradualmente, os moradores começaram a se reaproximar e a retomar sua participação na Associação (Silva, 2021).
A resistência ao latifúndio é um dos fatores que une diversas comunidades quilombolas no Território da Identidade do Velho Chico e em toda a região do Médio São Francisco. A pesquisadora Kleide Silva (2021) sinaliza que, para Macêdo (2008), as questões de terra entre latifundiários e pequenos produtores marcaram toda essa região desde a década de 1970, quando o governo federal começou a investir no desenvolvimento regional por meio da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) (Macêdo, 2008 apud Silva, 2021).
Nesse contexto, destacam-se os casos próximos à Barrinha dos quilombolas de Rio das Rãs e Mangal/Barro Vermelho, situados, respectivamente, nos municípios de Bom Jesus da Lapa e Sítio do Mato, no Médio São Francisco. Historicamente, essas comunidades foram forçadas a se submeter a grandes proprietários e perderam a autonomia sobre suas terras, apesar de serem os ocupantes originais.
O Quilombo Rio das Rãs, na década de 1990, enfrentou intensa repressão de um latifundiário, Carlos Bonfim, que tentava tomar posse de suas terras. Em resposta, houve mobilização social, e a comunidade conquistou a titularidade em 1998, inspirando outras lutas quilombolas locais. Mangal/Barro Vermelho teve trajetória semelhante, culminando em sua desapropriação da fazenda inserida em seu território e reconhecimento como área quilombola em 1999. Essas histórias refletem uma luta contínua por reconhecimento e direito à terra, impulsionada pela opressão e mobilização coletiva, que também inclui desafios enfrentados por outras comunidades quilombolas na região (Silva, 2021).
Conforme análise da pesquisa de Kleide Silva (2021), a partir da tese de Valdélio Silva (2010), ainda na década de 1990, em Bom Jesus da Lapa, o conflito de terras entre a comunidade quilombola de Rio das Rãs e um latifundiário produtor de algodão teve repercussão internacional. O fazendeiro Carlos Bonfim instaurou um verdadeiro estado de sítio na comunidade, com policiais fortemente armados bloqueando o acesso e restringindo o direito de ir e vir dos moradores e de apoiadores da causa (Silva, 2021).
O processo de ocupação teve início no final do século XIX, quando o fazendeiro Deocleciano Pires Teixeira, latifundiário do Médio São Francisco e morador do município de Caetité, introduziu gado bovino no território já ocupado pela comunidade quilombola de Rio das Rãs e se apresentou como proprietário da área. Os quilombolas, que viviam ali desde o início do século XIX, foram então classificados pelo fazendeiro como “agregados” da fazenda Rio das Rãs (Silva, 2021).
Em 1972, Celso Teixeira assumiu a administração da fazenda e proibiu a abertura de novas roças no território dos quilombolas de Rio das Rãs, rompendo com a política paternalista estabelecida por seu pai. Segundo Silva (2010), em 1981, a Fazenda Rio das Rãs foi comprada dos herdeiros da família Teixeira pelo Grupo Bial – Bonfim Indústria Algodoeira Ltda, presidido por Carlos Newton Vasconcelos Bonfim, irmão do então deputado estadual João Bonfim, figura política influente na Bahia. A partir de então, as violências contra a comunidade se intensificaram, e organizações da sociedade civil se uniram ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais para oferecer apoio político aos quilombolas de Rio das Rãs (Silva, 2021).
Ainda na década de 1990, a Comarca de Bom Jesus concedeu uma liminar de reintegração de posse em favor dos quilombolas de Rio das Rãs. Em novembro de 1993, a Procuradoria Geral da República (PGR) entrou com uma Ação Civil Pública solicitando a titulação das terras em nome dos moradores da comunidade. A Procuradoria da República na Bahia também pediu ao Judiciário a desocupação de sete mil hectares de terras à margem do rio São Francisco, pertencentes à União, que haviam sido ilegalmente incorporados pelo fazendeiro Carlos Bonfim (Silva, 2021).
Ao conceder a liminar, a Justiça Federal permitiu que as terras fossem ocupadas pelos quilombolas de Rio das Rãs. Diante das persistentes ações do fazendeiro contra a comunidade, esta recorreu ao Incra, buscando a desapropriação da área para fins de reforma agrária. O pedido foi favorável aos antigos moradores, e o projeto de desapropriação foi assinado pelo presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, em janeiro de 1995.
Em dezembro de 1996, o Incra concedeu aos quilombolas a posse de 23 mil hectares da área desapropriada, e, finalmente, em 1998, o presidente do Incra assinou o título de propriedade das terras em nome da Associação Agropecuária Quilombola Rio das Rãs. Essa conquista tem inspirado outros quilombos na região, como Mangal/Barro Vermelho, a também reivindicarem seus direitos junto aos órgãos públicos (Silva, 2021).
A exemplo de outras comunidades que enfrentam fragilidades na questão territorial na região, a comunidade de Barrinha também carrega uma história marcada pela luta por suas terras, em uma trajetória que ainda está em curso.
Desde 2012, a comunidade tem enfrentado ataques constantes de fazendeiros – descendentes de antigos coronéis da região – que reivindicam a posse das terras (Nasser, 2021). Segundo um morador local, o conflito se originou quando, em 2012, um fazendeiro que se dizia proprietário da área chegou com um trator, destruiu tudo e agrediu as pessoas presentes. Ele ainda contratou trabalhadores de uma cerâmica para ajudar a depredar a comunidade, quebrando tudo o que encontravam, roubando madeiras e incendiando o que não podiam levar. O número de pessoas que o fazendeiro trouxe era superior ao de quem se opôs a ele (Nasser, 2021).
Ainda segundo (Nasser, 2021), em 2017, a Prefeitura Municipal de Bom Jesus da Lapa lançou o projeto “Minha Casa Legal” na comunidade e começou a regularizar as casas. Com esse programa e com o turismo, a especulação imobiliária disparou, acompanhada por uma série de crimes ambientais. Em contrapartida, os fazendeiros tentaram legalizar suas próprias ações de grilagem: eles desmatavam a área e buscavam medir as terras para receber as escrituras em seus nomes.
Entre os diversos crimes cometidos pelos grileiros, destacaram-se o cercamento e aterramento de lagoas, o que impedia a prática da pesca artesanal; o desmatamento da mata ciliar; e o despejo de lixo e entulho provenientes da construção civil nas águas. Também promoveram aterramento do leito do rio, plantação de eucalipto e escavação nas margens do rio São Francisco, além do desmatamento da vegetação nativa para cultivo de grama. Adicionalmente, os fazendeiros lotearam terrenos para venda a pessoas de alto poder aquisitivo da região.
Em 2021, a Associação e moradores e moradoras da Barrinha realizaram algumas mobilizações contra as ações que estavam ocorrendo, chegando a fechar a entrada da comunidade em manifestação (Bom Jesus da Lapa, 2021).
Após as denúncias da comunidade, o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado da Bahia (Inema/BA) realizou uma fiscalização na área, aplicando multas e impondo interdições aos fazendeiros. No entanto, as sanções foram desrespeitadas e usadas como justificativa para intensificar as agressões contra a população tradicional. Em 30 de março de 2021, fazendeiros chegaram a ameaçar lideranças comunitárias de morte (Nasser, 2021).
Fora isso, o atrativo turístico de Barrinha, impulsionado pelo comércio de culinária típica e pela proximidade ao rio São Francisco, tem aumentado as tensões e agravado o conflito, pois os supostos proprietários das terras demonstram interesse nos lucros provenientes da exploração turística da comunidade (Nasser, 2021). Assim relata uma moradora local, segundo Nasser (2021):
“Por causa desse turismo no nosso território, ele hoje é vítima de cobiça e grilagem. É importante salientar que essa fonte de lazer não se traduz em renda e melhoria da qualidade de vida da comunidade. Poucas pessoas são beneficiadas, essas que só utilizam da nossa comunidade para trabalho”.
Ainda conforme o relato da moradora, os alegados proprietários apresentaram um documento, que não se referia ao quilombo da Barrinha. De acordo com ela, a escritura havia sido emitida no tempo dos coronéis, e um deles teria sido avô dos fazendeiros atuais. Entretanto, a comunidade era muito mais antiga do que a referida escritura. Diz a moradora: “Nós nascemos e nos criamos aqui dentro” (Nasser, 2021).
A Associação Quilombola, apoiada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), enviou representações ao procurador da República na comarca de Bom Jesus da Lapa informando que o conflito se desenrola desde 2012 e ameaça a sobrevivência do quilombo e de sua população. Em conjunto, foram enviados documentos para a Defensoria Pública, ao Ministério Público Federal, ao Incra e à Fundação Palmares (Nasser, 2021).
Além dessas situações, a comunidade tem vivido outros tensionamentos. Em dezembro de 2022, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente (Semeia) de Bom Jesus da Lapa concedeu licença ambiental de três anos para instalação do Complexo Fotovoltaico Bom Jesus da Lapa, da empresa Mini Solares do Brasil, para a geração de energia solar em área sobreposta a terras reivindicadas pelos quilombolas (Agência Sertão, 2023).
A área licenciada coincide com o território tradicionalmente ocupado pelos quilombolas de Barrinha, conforme atestou relatório elaborado pela Superintendência do Patrimônio da União (SPU) na Bahia. O documento identificou, registrou e demarcou a área requerida pela comunidade (Agência Sertão, 2023).
Devido à desconsideração sobre a referida comunidade no processo de licenciamento, em 12 de setembro de 2023, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou ao município de Bom Jesus da Lapa a imediata suspensão da licença ambiental concedida à empresa. De acordo com o documento, a medida deve vigorar até que seja assegurada a consulta prévia, livre e informada aos povos tradicionais impactados pelo empreendimento.
Ainda na recomendação, o MPF destaca que o direito dos povos tradicionais à consulta prévia, livre e informada sobre quaisquer atos ou empreendimentos que os afetem, direta ou indiretamente, está assegurada em normas e tratados internacionais ratificados pelo Brasil, destacando a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e diversos julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) (Agência Sertão, 2023).
A necessidade de participação e de consideração efetiva dos pontos de vista de povos e comunidades tradicionais em medidas que os afetem também está prevista na legislação brasileira, a exemplo da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (Decreto 6.040/2007) e da Resolução 230/2021, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) (Agência Sertão, 2023).
Além dessa empresa, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente licenciou mais duas de energia solar, operadas pelas empresas Mini Solares do Brasil, Emana Bahia Locação de Equipamentos e Autogeração Solar BJL Barra, além de um aeródromo vinculado ao Ninho do Bacurau, instalados também sem consulta à comunidade de Barrinha (Combate Racismo Ambiental, 2024).
Investigações do MPF identificaram as outras duas empresas de geração de energia fotovoltaica e o aeródromo com licenças emitidas sem a realização de qualquer procedimento de consulta prévia, livre e informada às comunidades remanescentes de quilombos localizadas na área de influência dos empreendimentos, e nem de condicionantes que determinassem a realização de tais consultas (Combate Racismo Ambiental, 2024).
Assim, em 3 de outubro de 2024, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou uma ação civil pública (ACP) solicitando, em caráter de urgência, a suspensão das licenças ambientais e a interrupção imediata das obras e operações de empresas de energia solar e do aeródromo situados em área reivindicada pela comunidade quilombola de Barrinha. Na ação, protocolada na Justiça Federal da Bahia, o MPF requer que os quatro empreendimentos e o Município de Bom Jesus da Lapa sejam condenados, de forma solidária, ao pagamento de R$ 2 milhões por danos morais coletivos em benefício da comunidade quilombola (Combate Racismo Ambiental, 2024).
As investigações do Ministério Público Federal começaram após a Associação Quilombola de Barrinha, em 30 de novembro de 2022, enviar uma representação informando sobre a instalação de um projeto de energia solar em seu território sem que tivesse ocorrido a consulta. Em resposta, o MPF emitiu uma recomendação ao Município de Bom Jesus da Lapa para que suspendesse essa e quaisquer outras licenças para empreendimentos, públicos ou privados, no território ocupado pela comunidade tradicional.
O Município, no entanto, optou por não seguir as orientações da recomendação, limitando-se a encaminhar documentos referentes a empreendimentos licenciados ou em processo de licenciamento na área revindicada pela comunidade quilombola de Barrinha (Combate Racismo Ambiental, 2024).
Foi então que o MPF ajuizou ação civil pública requerendo que:
“as empresas de geração de energia fotovoltaica se abstenham de iniciar ou continuar obras de instalação e operação de empreendimentos na área quilombola sem que haja a consulta prévia, livre e informada; o responsável pelo aeródromo Ninho do Bacurau, instalado na área quilombola, paralise sua operação e não realize novas obras no empreendimento sem que haja a consulta prévia, livre e informada; o Município de Bom Jesus da Lapa abstenha-se de emitir novas licenças ambientais para realização de obras ou operações que impactem qualquer comunidade quilombola ou povos originários na municipalidade, notadamente à comunidade quilombola de Barrinha, sem que haja o consentimento prévio, livre e informado da respectiva CRQ; ao final do processo, seja declarada a nulidade das licenças emitidas em área sobreposta ao território reivindicado pela comunidade quilombola de Barrinha”.
Em conjunto com essas medidas, a comunidade luta para que o governo federal e estadual avancem com a titulação da terra quilombola, assegurando o direito ao território que reivindicam. Esse processo inclui delimitação e emissão do título de posse.
Cronologia
Maio de 2001 – Associação da comunidade quilombola da Barrinha é fundada.
Julho de 2006 – A comunidade quilombola de Barrinha é certificada pela Fundação Cultural Palmares (FCP) como comunidade remanescente de quilombos.
2011 – Abertura do processo administrativo de regularização fundiária do território da comunidade de Barrinha no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
2012 – Início dos tensionamentos com o fazendeiro local Quinca Sento-Sé.
2017 – Prefeitura Municipal de Bom Jesus da Lapa lança projeto Minha Casa Legal, beneficiando moradores da comunidade.
2021 – Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema/BA) realiza fiscalização nas áreas da comunidade, aplica multas e impõe interdições aos fazendeiros.
30 de março de 2021 – Fazendeiros ameaçam de morte lideranças comunitárias.
2021 – Associação Quilombola de Barrinha envia representações à Defensoria Pública, ao procurador da República na cidade, ao Ministério Público Federal (MPF), ao Incra e à FCP.
Dezembro de 2022 – Secretaria Municipal de Meio Ambiente (Semeia) de Bom Jesus da Lapa concede licença ambiental de três anos para instalação do Complexo Fotovoltaico Bom Jesus da Lapa da empresa Mini Solares do Brasil para a geração de energia solar em área sobreposta a terras reivindicadas pelos quilombolas.
12 de setembro de 2023 – MPF recomenda ao município de Bom Jesus da Lapa a imediata suspensão de licença ambiental concedida à empresa Mini Solares do Brasil.
3 de outubro de 2024 – MPF ajuiza ação civil pública solicitando, em caráter de urgência, a suspensão das licenças ambientais e a interrupção imediata das obras e operações de projetos licenciados de energia solar, operadas pelas empresas Mini Solares do Brasil, Emana Bahia Locação de Equipamentos e Autogeração Solar BJL Barra, além de um aeródromo vinculado ao Ninho do Bacurau em área reivindicada pela Comunidade de Barrinha.
Fontes
BOM Jesus da Lapa: Moradores da Barrinha fecham a entrada da comunidade em defesa do Velho Chico. Notícias da Lapa, 15 ago. 2021. Disponível em: https://shre.ink/gAPm. Acesso em: 19 out. 2021.
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