Ausência de demarcação de território causa vulnerabilidade aos Kinikinau, sujeitando-os a despejos, episódios de violência e contaminação por agrotóxicos

UF: MS

Município Atingido: Aquidauana (MS)

Outros Municípios: Bonito (MS), Campo Grande (MS), Dois Irmãos do Buriti (MS), Miranda (MS), Nioaque (MS), Sidrolândia (MS)

População: Povos indígenas

Atividades Geradoras do Conflito: Agrotóxicos, Atuação de entidades governamentais, Pecuária

Impactos Socioambientais: Contaminação ou intoxicação por substâncias nocivas

Danos à Saúde: Contaminação por agrotóxico, Insegurança alimentar, Piora na qualidade de vida, Violência – ameaça, Violência – assassinato, Violência – coação física, Violência – lesão corporal, Violência psicológica

Síntese

O povo Kinikinau, pertencente ao tronco linguístico Aruak e identificado como subgrupo dos Guaná-Chané, tem uma longa trajetória de territorialização na região sul de Mato Grosso do Sul, especialmente entre os rios Aquidauana e Miranda, território conhecido como Wakaxu (Silva; Souza, 2003). Os primeiros registros coloniais de sua presença nessa região remontam ao século XVIII, com o deslocamento de grupos Guaná da Bacia do Rio Paraguai. Durante a Guerra do Paraguai, os Kinikinau aliaram-se a outros grupos indígenas e atuaram como agricultores, mas o pós-guerra marcou o início de perseguições, deslocamentos forçados e do apagamento da sua identidade étnica (Silva, 2019).

Ao longo do século XX, os Kinikinau foram invisibilizados pelos registros oficiais que os classificavam como Terena. A destruição de seu último aldeamento, por volta de 1910, somada à ação de órgãos indigenistas como o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e, a partir de 1967, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que os obrigaram a se registrar como pertencentes a outro povo, consolidou a negação de sua identidade étnica (Silva, 2019). Expulsos de seu território tradicional, passaram a viver em territórios de outros povos, como os Kadiwéu e Terena (Silva, 2019; Oliveira, 2023; TPP, 2023).

A ausência de demarcação da Terra Indígena Agachi, originária do próprio grupo e localizada no município de Aquidauana, em de Mato Grosso do Sul, aprofundou essa situação de vulnerabilidade, sujeitando os Kinikinau a despejos, pressões territoriais e episódios de violência, como o assassinato de Elísio Rosa Veiga em 2023, na aldeia São João (Oliveira, 2023).

Além disso, o uso intensivo de agrotóxicos em áreas próximas às aldeias tem sido denunciado como uma forma de violência química que afeta diretamente a saúde, a segurança alimentar e o modo de vida do povo (TPP, 2023).

Apesar dessas violações, o povo Kinikinau desenvolveu diversas formas de resistência. A criação da Escola Municipal Indígena Koinukunôen foi um marco na afirmação da identidade étnica e na construção de uma educação diferenciada. A produção de cerâmica, em especial entre as mulheres, tem sido importante estratégia de reafirmação cultural e política (Bolzan, 2014; Oliveira, 2023). Essa mobilização identitária ganhou força a partir da década de 1990 (TPP, 2023).

O apoio de organizações como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e o Tribunal Permanente dos Povos (TPP) tem sido fundamental para dar visibilidade à luta Kinikinau. Desde 2014, o povo reivindica a criação de um Grupo de Trabalho (GT) para a identificação da TI Agachi.

Embora um parecer favorável tenha sido emitido pela Funai em 2019, apenas em abril de 2023 o novo governo federal (Luiz Inácio Lula da Silva, empossado em janeiro 2023), instituiu oficialmente o GT, com participação de representantes do Ministério dos Povos Indígenas e da Apib (Primeira Página, 2023).

 

Contexto Ampliado

Os indígenas Kinikinawa, também conhecidos como Kinikinau e Koinukunôen, sua autodenominação, pertencem ao tronco linguístico Aruák e são considerados um subgrupo dos povos Chané-Guaná, bem como os Terena, antigos habitantes do território que hoje compõe o Chaco Paraguaio (Bolzan, 2023).

Espalhados por diferentes territórios, muitos Kinikinau residem em aldeias Terena como Bananal e Limão Verde (Aquidauana), Cachoeirinha e Lalima (Miranda), Água Branca, Taboquinha, Cabeceira e Brejão (Nioaque). Parte do grupo também se encontra nas chamadas “retomadas”, entre Aquidauana e Miranda, em territórios ancestrais reivindicados por meio da luta direta pela terra (Oliveira, 2023).

Essa dispersão territorial, resultado da negação histórica de seus direitos, dificulta a identificação oficial da população Kinikinau. Ainda assim, ações de autodemarcação e autorreconhecimento têm fortalecido o senso de pertencimento e organização. Com apoio do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o povo iniciou um levantamento populacional que já identificou cerca de mil Kinikinau espalhados por sete municípios de Mato Grosso do Sul (Oliveira, 2023).

Mesmo diante da morosidade do Estado e das sucessivas violações, o povo Kinikinau resiste. Suas estratégias combinam práticas culturais e mobilização política. Um exemplo disso é a construção da Oca Xiri Xiri, na aldeia Mãe Terra, onde são retomadas e transmitidas práticas culturais como a cerâmica.

A articulação com mulheres Terena também tem fortalecido um grupo de artesãs que compartilha saberes e reafirma identidades. Essas ações preservam a cultura e tecem redes de solidariedade e resistência entre os povos indígenas (Oliveira, 2023).

Nesse contexto, a luta pela demarcação da Terra Indígena Agachi é por um território físico e por condições concretas de existência. Sem território, não há proteção; sem proteção, persistem o silenciamento e as mortes que há décadas atingem o povo Kinikinau (Oliveira, 2023).

A história de formação e territorialização do povo Kinikinau está profundamente entrelaçada com sua luta por identidade e reconhecimento no estado de Mato Grosso do Sul. Originários da migração dos Guaná, os Kinikinau se deslocaram da Bacia do Rio Paraguai para o sul de Mato Grosso — atual Mato Grosso do Sul — a partir da segunda metade do século XVIII. Fixaram-se majoritariamente na região situada entre os rios Aquidauana e Miranda, território conhecido como Wakaxu pelos Kinikinau, onde desenvolveram uma relação ancestral com a terra (Silva; Souza, 2003).

Durante o período colonial e, posteriormente, na Guerra do Paraguai, os Kinikinau tiveram um papel econômico relevante na região, destacando-se como agricultores. Na guerra, aliaram-se a outros grupos indígenas e participaram ativamente dos confrontos, o que os tornou visíveis em um contexto marcado por alianças e conflitos. No entanto, o pós-guerra trouxe consequências devastadoras: perseguições, dispersões forçadas e a desestruturação de suas formas tradicionais de vida por parte de fazendeiros, posseiros e invasores (Silva; Souza, 2003).

De acordo com o pesquisador Giovani José da Silva (2019), a história da diáspora dos Kinikinau ainda carece de estudos mais aprofundados. Em uma investigação preliminar, a análise de escritos de cronistas, viajantes e exploradores do período colonial luso-brasileiro permite inferir que quatro subgrupos Guaná atravessaram o Rio Paraguai, estabelecendo-se em suas margens orientais: a) Exoaladi; b) Terena; c) Layana; e d) Kinikinau. Dentre esses, apenas os Exoaladi não apresentam, até o momento, descendentes autodeclarados no atual território sul-mato-grossense.

As evidências indicam que esses grupos migraram em ondas sucessivas a partir da segunda metade do século XVIII, fixando-se na região banhada pelo rio Miranda, entre os paralelos 19º e 21º de latitude sul, onde foram posteriormente encontrados por não indígenas no século XIX. Segundo Roberto Cardoso de Oliveira (1976), os Exoaladi desapareceram por ocasião da Guerra do Paraguai. Os Terena tornaram-se o grupo mais numeroso e visível entre os remanescentes Guaná na atualidade, enquanto os Layana vivem hoje dispersos em aldeias Terena localizadas nos municípios de Aquidauana e Miranda (Oliveira, 1976 apud Silva, 2019).

Os Kinikinau, por sua vez, permaneceram por muito tempo invisibilizados entre os Terena, o grupo majoritário, sendo escassamente mencionados nos registros escritos entre o final do século XIX e o início do século XX. Essa invisibilidade foi reforçada pela destruição, por volta de 1910, do último aldeamento reconhecido como pertencente aos Kinikinau, localizado nas imediações do rio Miranda. Com o apagamento de suas referências territoriais e políticas, tornou-se comum referir-se a eles como um subgrupo dos Terena, apagando sua identidade étnica distinta (Silva, 2019).

Essa negação de identidade foi intensificada pela atuação dos próprios órgãos indigenistas, inicialmente pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e, posteriormente, pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Durante décadas, os Kinikinau foram obrigados por chefes de posto e outros funcionários a se registrarem como Terena, impedindo o reconhecimento formal de sua identidade étnica. A identificação como Terena, nesse contexto, foi uma estratégia de sobrevivência frente às perseguições e políticas assimilacionistas impostas ao grupo (Silva, 2019).

Conforme Marina Oliveira (2023), o povo Kinikinau foi expulso de seu território ancestral pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) há quase cem anos, o que deu início ao processo de invisibilização de sua história (Oliveira, 2023). A pesquisadora Aila Villela Bolzan (2014), em conformidade com as observações do pesquisador Giovani José da Silva (2019), observa que reconstruir a trajetória desse povo não é tarefa simples.

Segundo ela, o contato com os Kinikinau tende a ocorrer, de forma mais acessível, no contexto turístico da cidade de Bonito, em Mato Grosso do Sul — o que evidencia como a presença indígena tem sido deslocada para espaços de visibilidade superficial, muitas vezes distanciada de sua realidade territorial e histórica (Bolzan, 2024).

Esse processo de dispersão e apagamento foi agravado por sucessivos deslocamentos forçados. Em 1940, um pequeno grupo Kinikinau conseguiu se fixar na aldeia São João, em terras do povo Kadiwéu. No entanto, muitos danos já haviam sido infligidos a outras famílias Kinikinau, cujas trajetórias de exílio foram marcadas por violência e perda territorial.

A situação se intensificou com a criação da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (Cand), em 1943, que viabilizou a instalação de milhares de colonos no estado, com a titulação de terras e a implementação de empreendimentos agropecuários sobre áreas tradicionalmente ocupadas por povos indígenas (Tribunal Permanente dos Povos, 2023).

Nesse contexto, os territórios Kinikinau foram completamente desestruturados, e o povo passou a viver em áreas cedidas por outros grupos indígenas, em forma de “empréstimos territoriais”, conforme evidenciado na publicação do Tribunal Permanente dos Povos (TPP, 2023). Esse processo começou no Mato Grosso do Sul, entre 1915 e 1928, engendrado pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), a fim de “liberar” terras para a colonização e submeter os indígenas à lógica de mercado.

Além dos Kinikinau, outros povos indígenas fora desterritorializados, como os Guarani e Kaiowá, que também vivem um processo de luta por demarcação de seu território. Flaviana Fernandes, do povo Kinikinau apresenta um relato sobre o trânsito entre territórios que não são próprios de seu grupo indígena (Tribunal Permanente dos Povos, 2023):

“Nosso sofrimento é por território, né? Nós morava na terra do Kadiwéu, agora na terra do Terena e assim sempre a gente vivendo numa terra assim e nós não temos liberdade, né, enquanto nós não chegarmos no nosso território. Porque ali no território Terena, é pouquinho que eles cederam pra nós, e nós não temos como plantar grande coisa, porque nós vivia lá no nosso território, nós vivia assim, plantando arroz, feijão, mandioca, milho. Era nossa sobrevivência, né, mas como agora nós estamos emprestando essa terra, nós não podemos nem plantar isso mais. Porque nós vive num território bem espremido, então pra nós é essa a dificuldade. (…) Porque nós estamos sofrendo ainda, pra lá e pra cá, e nós não podemos ter o nosso território. Nós precisamos do nosso território sim, pra nós criar os nossos filhos, pra eles aprender a trabalhar lá dentro da Aldeia. Tudo que nós tem é nossa aldeia, nós não temos nada. Olha aí a escola, o posto de saúde, tanta coisa que é pra nós ter dentro do nosso território.” (Tribunal Permanente dos Povos, 2023)

O território Agachi é uma Terra Indígena (TI) ainda não demarcada do povo Kinikinau, localizada no município de Aquidauana/MS. Segundo o frei Klenner Antonio, missionário do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Mato Grosso do Sul, o esbulho desse território desencadeou uma série de violências e violações de direitos contra os Kinikinau. Entre elas, destaca-se a negação histórica da existência desse povo, evidenciada, por exemplo, no apagamento de seus nomes em registros oficiais e na substituição de sua identificação étnica, sendo eles frequentemente registrados como Terena (Oliveira, 2023).

Essa negação, conforme ressalta o pesquisador Giovani José da Silva (2019), integra um processo mais amplo de invisibilização de determinados grupos indígenas no Mato Grosso do Sul. Até o início do século XXI, as referências às populações indígenas do estado se restringiam, majoritariamente, a cinco etnias: Guarani (Kayowá e Ñandeva), Guató, Kadiwéu, Ofayé e Terena. Em contrapartida, outros três grupos permaneciam silenciados nos discursos oficiais: os Atikum (originários de Pernambuco), os Kamba (migrantes da Bolívia) e os Kinikinau — muitas vezes confundidos com os Terena ao longo do século XX.

Para Silva, esse silenciamento está profundamente ligado à ausência de reconhecimento formal de seus territórios, já que essas populações não ocupavam, até então, áreas oficialmente identificadas, delimitadas, demarcadas e/ou homologadas. São povos que vivenciam trajetórias diaspóricas e enfrentam processos contínuos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização, permanecendo, mesmo no século XXI, em luta por visibilidade e pelo respeito a direitos historicamente negados (Silva, 2019).

No caso dos Kinikinau, essa invisibilização foi intensificada pelo fato de viverem, desde a década de 1940, na Aldeia São João, situada na Reserva Indígena Kadiwéu, e posteriormente em outras aldeias de ocupação majoritária Terena. Tendo sido considerados extintos por antropólogos e indigenistas ao longo do século XX, apenas nas últimas décadas passaram a reivindicar oficialmente parte de seu território tradicional, localizado entre os municípios de Corumbá e Miranda (Silva; Bolzan e Souza, 2017).

Apesar do processo de negação de sua história e modo de vida, os Kinikinau reafirmam que nunca esqueceram quem são e nem deixaram de sentir o que é ser Kinikinau. Ainda que tenham sido obrigados a compartilhar territórios com outros povos indígenas e a se adaptar a novos lugares e culturas, mantiveram vivas suas tradições e saberes, transmitindo-os cotidianamente às gerações mais jovens (Tribunal Permanente dos Povos, 2023).

Assim, a partir do final da década de 1990, quando os Kinikinau iniciaram a mobilização sociopolítica buscando afirmar sua etnicidade própria e distinta daquela dos Terena — com quem compartilham proximidades linguísticas e culturais, mas de quem desejam se diferenciar politicamente —, o grupo tem valorizado práticas culturais específicas, como a produção de cerâmica inspirada na tradição Kadiwéu, um dos sinais diacríticos de sua identidade (Silva, 2019). Desse modo, dentre outras práticas culturais, a “vontade de diferença” se fortaleceu, principalmente, na fabricação de cerâmica pelas mulheres (Silva e Souza, 2008).

Um aspecto central desse processo é a forma como o grupo vem se organizando coletivamente, especialmente por meio da criação de sua Assembleia, que se consolida como um espaço de articulação política e fortalecimento interno. Essa instância simbólica e prática representa um avanço significativo na luta contra mais de um século de opressões e dispersões forçadas (Tribunal Permanente dos Povos, 2023).

Essa trajetória de reorganização e reivindicação identitária teve um marco importante em meados de 1997, durante uma reunião realizada com os moradores da aldeia São João para discutir a criação de uma nova escola local. Na ocasião, os educadores e pesquisadores Giovani José da Silva e José Luiz de Souza identificaram a presença de um grupo significativo de indígenas que se autodenominavam Kinikinau (ou Koinukunôen). Até então, essa autodenominação era preservada apenas no âmbito familiar, como uma forma silenciosa de resistência e preservação identitária. Ao perguntarem sobre a presença de famílias Kadiwéu e Terena na aldeia, os pesquisadores foram surpreendidos ao perceber que muitos dos presentes não se reconheciam como integrantes dessas etnias, revelando, assim, uma busca velada por reconhecimento enquanto povo Kinikinau (Bolzan, 2014).

A partir desse episódio, os pesquisadores passaram a acompanhar mais atentamente os desdobramentos da autoafirmação identitária em curso. Destacam que, naquele contexto, a Prefeitura de Porto Murtinho, por meio da Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Esportes (Semed), havia iniciado o processo de implantação de escolas voltadas às especificidades de cada aldeia no território indígena kadiwéu — entre elas, Barro Preto, Bodoquena, Campina, São João e Tomázia.

Na aldeia São João, as discussões sobre o modelo de escola desejado revelaram uma clara recusa, por parte dos moradores, em aceitar um projeto educativo nos moldes destinados aos Kadiwéu. Diante disso, cogitou-se a possibilidade de uma escola voltada aos Terena — proposta que também foi rejeitada. Essa dupla negativa gerou estranhamento e suscitou questionamentos sobre a identidade daquele coletivo, que, ainda de forma tímida, começava a se afirmar como pertencente a uma etnia distinta: os Kinikinau (Silva e Souza, 2003: 202-203).

Nesse contexto de fortalecimento identitário, a saída do suposto anonimato por parte do povo indígena Kinikinau impulsionou alguns moradores da aldeia São João a se engajarem em iniciativas voltadas à revitalização étnico-cultural de seu grupo. Entre essas ações, destaca-se a criação da Escola Municipal Indígena “Koinukunôen”. A escola representa um importante marco na legitimação da existência Kinikinau, tanto perante outros povos indígenas residentes na aldeia quanto diante do próprio órgão indigenista federal, que, por muitos anos, negou a sua existência (Bolzan, 2014).

É nesse espaço escolar, somado ao convívio familiar, que crianças e jovens dos povos Kadiwéu, Kinikinau e Terena têm a oportunidade de construir percepções mais claras sobre suas identidades e de reconhecer suas diferenças étnicas. As aulas de língua indígena, bem como outras atividades pedagógicas propostas, são fundamentais para a preservação da cultura kinikinau, especialmente diante do avançado processo de desuso da língua, que, em 2025, é falada por apenas cerca de 11 pessoas mais velhas da comunidade. Conforme aponta a linguista Ilda Souza (2008), a língua Kinikinau encontra-se gravemente ameaçada de extinção, o que reforça a urgência de ações voltadas à sua revitalização (Souza, 2008 apud Bolzan, 2014).

Nesse esforço, os professores da Escola Koinukunôen — indígenas e não indígenas — têm desempenhado um papel central ao propor atividades que valorizam as diferenças culturais entre os grupos presentes na aldeia. Por meio do resgate de memórias, histórias antigas e saberes tradicionais, como técnicas artesanais de pintura e cerâmica, incentivam os estudantes a se reconectarem com suas raízes. Essas práticas são, muitas vezes, realizadas junto aos mais velhos da comunidade, reforçando os laços intergeracionais e contribuindo para a transmissão dos conhecimentos que sustentam a identidade do povo Kinikinau (Bolzan, 2014).

A afirmação identitária do povo Kinikinau, historicamente silenciado no Mato Grosso do Sul, encontra na educação escolar indígena um espaço estratégico de resistência e reconstrução da memória coletiva. Como apontam Giovani José da Silva e José Luiz de Souza, no texto O despertar da fênix, é por meio da escola que os Kinikinau têm buscado reafirmar sua etnicidade e fortalecer os laços de pertencimento comunitário. Nesse processo, a educação ultrapassa a função de simples instrumento de letramento, tornando-se um território simbólico de retomada cultural e política (Silva e Souza, 2003).

Esse movimento de fortalecimento identitário, impulsionado inicialmente no espaço escolar, passou a se manifestar também em outras frentes, ultrapassando os limites da aldeia. Em 2003, na busca por visibilidade e pelo reconhecimento oficial do povo Kinikinau pelo Estado brasileiro, uma jovem liderança participou de dois eventos de projeção nacional. Anos depois, essa mobilização ganharia novo impulso com a trajetória de Rosaldo de Albuquerque Souza, outro jovem kinikinau, que ingressou no ensino superior e, mais tarde, no Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UnB).

Ali, Rosaldo defendeu a dissertação intitulada Sustentabilidade e processos de reconstrução identitária entre o povo indígena Kinikinau (Koinukunôen) em Mato Grosso do Sul, na qual relata as dificuldades de reconhecer-se como indígena pertencente a um povo historicamente invisibilizado. Ao mesmo tempo, expressa seu compromisso com a valorização da identidade dos Kinikinau e o fortalecimento da presença de seu povo no espaço acadêmico (Bolzan, 2014).

Esse processo de reconstrução identitária, no entanto, se dá em um contexto profundamente atravessado por violações sistemáticas de direitos. Os Kinikinau, bem como os Guarani e Kaiowá, denunciam que, nos anos anteriores a 2023, seus territórios tradicionalmente ocupados foram tomados de forma violenta, em ações sustentadas pelo racismo estrutural e articuladas por forças anti-indígenas ativas no estado.

De acordo com o Tribunal Permanente dos Povos (TPP), essa ofensiva envolveu uma ampla rede composta por fazendeiros, sindicatos do agronegócio, membros da bancada ruralista e representantes do poder público em todas as esferas — municipal, estadual e federal. As violências relatadas incluem desde perseguições, agressões e torturas, até assassinatos, afetando mulheres e crianças. Tais práticas evidenciam uma grave e persistente violação de direitos humanos, constitucionais e internacionais, entre os quais se destacam os compromissos assumidos pelo Estado brasileiro na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) (Tribunal Permanente dos Povos, 2023).

Essas violações, longe de constituírem episódios pontuais, integram uma engrenagem mais ampla e sistemática de repressão e apagamento das populações indígenas. Nesse contexto, os Guarani e Kaiowá, juntamente com os Kinikinau, denunciaram a atuação de milícias privadas armadas em Mato Grosso do Sul, voltadas a atacar comunidades indígenas — uma prática sob investigação do Ministério Público Federal (MPF).

Segundo os relatos, setores do agronegócio participaram diretamente da organização do chamado “Leilão da Resistência” (autos nº 0014547-14.2013.403.6000, JFMS), realizado em 07 de dezembro de 2013, em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Nesse evento, a venda de gado foi utilizada para financiar seguranças privados e adquirir armamentos, com o claro objetivo de promover ações genocidas contra os povos originários (Spezia, 2022; Tribunal Permanente dos Povos, 2023).

Os Kinikinau também relataram, em 2019, um episódio de extrema gravidade no município de Aquidauana, onde uma operação de “reintegração de posse” foi executada sem respaldo judicial, envolvendo diretamente a prefeitura local e forças de segurança do estado. O caso evidencia a conivência institucional com práticas de violência que aprofundam o desrespeito aos direitos territoriais e coletivos dos povos indígenas, ampliando o cenário de vulnerabilidade já denunciado por diversas organizações (Tribunal Permanente dos Povos, 2023).

Em 2023, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) denunciou que a violência estrutural vivida pelo povo Kinikinau atingiu mais um marco trágico com o assassinato de Elísio Rosa Veiga, indígena de 34 anos, ocorrido na aldeia São João, território do povo Kadiwéu, no município de Bonito/MS. O crime aconteceu na noite de 7 de novembro, quando ele foi atingido por quatro disparos de arma de fogo em seu próprio estabelecimento comercial, localizado dentro da comunidade. No momento do ataque, sua esposa e o filho pequeno, de apenas quatro anos, estavam presentes e foram ameaçados pelo autor dos disparos, o que evidencia a brutalidade da ação e seu potencial de intimidação coletiva (Oliveira, 2023).

A motivação oficial do crime ainda não foi esclarecida, mas há fortes indícios de que o assassinato esteja relacionado à disputa por terra e aos conflitos decorrentes da permanência dos Kinikinau em território Kadiwéu — uma permanência forçada pela ausência de demarcação de sua própria terra, a TI Agachi. O episódio insere-se em um histórico de desproteção, negligência estatal e impunidade que marca a trajetória desse povo indígena no Mato Grosso do Sul (Oliveira, 2023).

A essas formas de violência territorial e política somam-se também os processos contínuos de devastação socioambiental e a negação de acesso a direitos básicos. Nas aldeias localizadas fora de terras demarcadas, como no caso dos Kinikinau, que vivem em territórios de retomada junto aos Terena, a falta de políticas públicas essenciais agrava ainda mais as condições de vida, comprometendo a reprodução sociocultural das comunidades e empurrando-as para contextos de empobrecimento extremo e crise humanitária (Tribunal Permanente dos Povos, 2023).

Essa situação de vulnerabilidade é ainda mais exacerbada pelo uso indiscriminado de agrotóxicos nas proximidades das comunidades indígenas, configurando uma violência química que, além de contaminar o solo e os recursos hídricos, afeta diretamente os cultivos e a saúde das populações. Isso fere gravemente o direito à soberania e segurança alimentar e nutricional, especialmente para os Kinikinau, Guarani e Kaiowá, como relatado por Matias Rempel, que aponta o envenenamento das águas e alimentos como um fator devastador para a sustentabilidade dos modos de vida tradicionais (Tribunal Permanente dos Povos, 2023). Ele afirma:

“Os rios e fontes de água completamente contaminados, né? Além de poluídos, contaminados. O veneno utilizado como arma química, acho que essa é a questão mais importante, né? Porque os despejos de avião sobre a comunidade, eles são diários, eles são recorrentes, inclusive utilizados agora à noite, para não haver gravação e denúncia da parte dos indígenas. (…) A comunidade recebeu, por exemplo, do MPA, uma série de sementes, muitas sementes, mas não conseguiu plantar. Mesmo com a reza, mesmo com seus processos tradicionais de agroecologia, porque, na verdade, ela foi arrasada pelo veneno e pelos bichos que vieram comer as plantas sadias, uma vez que estão imersas nesse contingente de veneno.” .

No entanto, a destruição ambiental e o cerceamento do direito ao território não são os únicos desafios enfrentados por essas comunidades. O esgotamento de recursos nas reservas, aliado à impossibilidade de realizar a agricultura itinerante, tem gerado uma insegurança alimentar extrema, com a fome se tornando uma realidade cruel para muitos. A perda de território e das condições para a prática da agricultura tradicional tem imposto uma grave crise que afeta diretamente a sobrevivência e a cultura desses povos (Tribunal Permanente dos Povos, 2023).

Além disso, os Guarani e Kaiowá e Kinikinau enfrentam ataques diretos de sujeitos que fazem parte de uma articulação anti-indígena tanto em nível local quanto estadual e nacional. Essa rede de violadores, que inclui fazendeiros, associações do agronegócio e sindicatos, utiliza métodos violentos para pressionar os indígenas a abandonarem suas terras, recorrendo a serviços ilegais de pistoleiros e empresas de segurança privada. Tais práticas são realizadas com o respaldo de autoridades públicas, em uma parceria nociva que perpetua a opressão e a exclusão das comunidades indígenas (Tribunal Permanente dos Povos, 2023).

O Estado brasileiro, representado pelos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, é considerado um dos principais violadores dos direitos indígenas, especialmente no que tange ao direito à autodeterminação e à demarcação de terras tradicionalmente ocupadas. A paralisia nas políticas de demarcação de terras e o apoio a práticas que priorizam interesses privados em detrimento dos direitos indígenas são evidentes, especialmente por parte de parlamentares da bancada ruralista, como os deputados estaduais do PSDB Mara Caseiro, Paulo Corrêa e Zé Teixeira, que defendem medidas que criminalizam o movimento indígena e agravam ainda mais a situação de vulnerabilidade das comunidades (Tribunal Permanente dos Povos, 2023).

Desde 2014, o povo Kinikinau passou a reivindicar a criação de um Grupo de Trabalho (GT) junto à Funai para a identificação e demarcação da Terra Indígena Agachi, em Aquidauana (MS). Apesar de um parecer técnico favorável da própria fundação publicado em 2019, o processo seguiu paralisado. A morosidade do Estado em atender a essa demanda agravou a situação de vulnerabilidade do povo, forçado a viver disperso em territórios alheios e sujeito a múltiplas formas de violência e negação de direitos (Oliveira, 2023).

Em 19 de abril de 2023, data em que se celebra o Dia dos Povos Indígenas, a luta do povo Kinikinau por seu território ancestral em Mato Grosso do Sul ganhou um novo capítulo. O governo federal instituiu um Grupo de Trabalho (GT) com a missão de buscar soluções para a questão fundiária do povo, conforme estabelecido em portaria publicada no Diário Oficial da União (Primeira Página, 2023).

 

Na Câmara dos Deputados, povo Kinikinau defende e reivindica a demarcação de seu território, em Mato Grosso do Sul. Foto: Michelle Calazans (Cimi, 2023).

 

O GT é composto pela ministra dos Povos Indígenas (MPI), Sonia Guajajara, pelo secretário-executivo da pasta, e por representantes da Secretaria de Direitos Territoriais Indígenas, do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Indígenas e da Consultoria Jurídica do MPI. Além disso, a sociedade civil será representada nas reuniões por um membro da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), convidado especialmente para acompanhar os trabalhos (Primeira Página, 2023).

Na ocasião, Eloy Terena, secretário executivo do MPI, anunciou outras iniciativas do Ministério dos Povos Indígenas (MPI): entre elas, a criação de um comitê interministerial — a ser formalizado por decreto — voltado especificamente à situação dos Guarani Kaiowá (Primeira Página, 2023).

 

Atualizado em Junho 2025.

 

 

Cronologia

Segunda metade do século XVIII – Os Kinikinau se deslocam da Bacia do Rio Paraguai para o sul de Mato Grosso — atual Mato Grosso do Sul.

1910 – Destruição do último aldeamento reconhecido como pertencente aos Kinikinau, localizado nas imediações do rio Miranda.

1910 – O povo Kinikinau é expulso de seu território ancestral pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), dando início a um processo de invisibilização de sua história.

1940 – Um pequeno grupo Kinikinau consegue se fixar na aldeia São João, em terras do povo Kadiwéu.

1943 – Criação da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (Cand), que viabiliza a instalação de milhares de colonos no estado, com a titulação de terras e a implementação de empreendimentos agropecuários sobre áreas tradicionalmente ocupadas por povos indígenas, dentre eles, os Kinikinau.

1990 – Os Kinikinau passam a reivindicar oficialmente parte de seu território tradicional, localizado entre os municípios de Corumbá e Miranda.

1997 – Prefeitura de Porto Murtinho, por meio da Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Esportes, inicia trabalho de implantação de escolas voltadas às especificidades de cada aldeia no território indígena Kadiwéu.

2003 – Buscando dar visibilidade à existência do povo Kinikinau e à luta por seu reconhecimento oficial pelo Estado brasileiro, uma jovem liderança da comunidade participa de dois eventos de repercussão nacional. Outro jovem Kinikinau, Rosaldo de Albuquerque Souza, ingressa no Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UnB) e defende a dissertação de mestrado “Sustentabilidade e processos de reconstrução identitária entre o povo indígena Kinikinau (Koinukunôen) em Mato Grosso do Sul”.

2014 – Povo Kinikinau passa a reivindicar a criação de um Grupo de Trabalho (GT) junto à Funai para a identificação e demarcação da Terra Indígena Agachi, em Aquidauana/MS.

2019 – Um dos episódios mais graves relatados pelo povo Kinikinau ocorre no município de Aquidauana, quando uma operação de “reintegração de posse” é realizada sem respaldo judicial, com a participação direta da prefeitura local e de forças de segurança pública do estado.

19 de abril de 2023 – O governo federal institui Grupo de Trabalho (GT) com a missão de buscar soluções para a questão fundiária do povo Kinikinau, conforme estabelecido em portaria publicada no Diário Oficial da União (DOU).

07 de novembro de 2023 – O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) denuncia o assassinato de Elísio Rosa Veiga, indígena kinikunau de 34 anos, na aldeia São João, território do povo Kadiwéu, no município de Bonito/MS.

 

Fontes

BOLZAN, Aila Villela. A existência de um povo indígena que resiste. In: Reunião Brasileira de Antropologia, 29, 2014, Natal, RN. Anais… Natal: ABA, 2014. Disponível em: https://shre.ink/Mgzf. Acesso em: 03 abr. 2025.

BOLZAN, Aila Villela. Os Kinikinau de Mato Grosso do Sul. 2023. 143 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2023. Disponível em: https://shre.ink/xzul. Acesso em: 24 jun. 2025.

OLIVEIRA, Marina. Violência contra povo Kinikinau é reflexo da morosidade do Estado em demarcar território. Conselho Indigenista Missionário – Cimi, 09 mar. 2023. Disponível em: https://shre.ink/MgzN. Acesso em: 02 abr. 2025.

SILVA, Giovani José da. Trajetórias diaspóricas indígenas no tempo presente: terras e territórios Atikum, Kamba e Kinikinau em Mato Grosso (do Sul). Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 11, n. 28, 2019. DOI: https://doi.org/10.5965/2175180311282019098. Acesso em: 24 jun. 2025.

SILVA, Giovani José da; SOUZA, José Luiz de. O despertar da fênix: a educação escolar como espaço de afirmação da identidade étnica Kinikinau em Mato Grosso do Sul. Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 6, n. 2, 2007. DOI: 10.5216/sec.v6i2.914. Disponível em: https://shre.ink/xzmO. Acesso em: 24 jun. 2025.

SITUAÇÃO do território do povo indígena Kinikinau em MS ganha GT. Primeira Página, 19 abr. 2023. Disponível em: https://shre.ink/Mgzk. Acesso em: 6 abr. 2025.

SPEZIA, Adi. TRF-3 suspende decisão que devolvia a fazendeiros valor arrecadado no “Leilão da Resistência”, no Mato Grosso do Sul. Cimi – Conselho Indigenista Missionário, 30 set. 2022. Disponível em: https://shre.ink/xzuF. Acesso em: 24 jun. 2025.

TRIBUNAL PERMANENTE DOS POVOS – TPP. Eco-genocídio no Cerrado. 1. Povos indígenas Guarani e Kaiowá e Kinikinau – Ficha técnica. Coordenação de Joice Bonfim e Mariana Pontes. 2023. Disponível em: https://shre.ink/Mgz7. Acesso em: 01 abr. 2025.

 

 

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