Povo indígena Mura é ameaçado por projeto de mineração da Potássio do Brasil enquanto espera pela demarcação oficial de suas terras tradicionais

UF: AM

Município Atingido: Autazes (AM)

Outros Municípios: Careiro (AM), Careiro da Várzea (AM), Manaquiri (AM)

População: Povos indígenas

Atividades Geradoras do Conflito: Atuação de entidades governamentais, Atuação do Judiciário e/ou do Ministério Público, Hidrovias, rodovias, ferrovias, complexos/terminais portuários e aeroportos, Mineração, garimpo e siderurgia, Monoculturas, Pecuária

Impactos Socioambientais: Alteração no ciclo reprodutivo da fauna, Alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território, Assoreamento de recurso hídrico, Contaminação ou intoxicação por substâncias nocivas, Desmatamento e/ou queimada, Erosão do solo, Falta / irregularidade na autorização ou licenciamento ambiental, Falta / irregularidade na demarcação de território tradicional, Falta de saneamento básico, Poluição atmosférica, Poluição de recurso hídrico, Poluição do solo, Poluição sonora, Precarização/riscos no ambiente de trabalho

Danos à Saúde: Doenças não transmissíveis ou crônicas, Falta de atendimento médico, Insegurança alimentar, Piora na qualidade de vida, Violência – ameaça, Violência – assassinato, Violência – coação física, Violência – lesão corporal

Síntese

O povo indígena Mura habita há vários séculos o rio Madeira e a região onde hoje está situado o município de Autazes (AM). Inseridos em uma área de intensas relações interétnicas, os Mura possuem uma história fortemente marcada por conflitos com outras etnias e com a sociedade nacional.

Já no século XVIII, os Mura eram considerados um “empecilho” para os projetos jesuítas de exploração da cultura cacaueira na Amazônia Centro-Meridional. Disputas territoriais contra portugueses e seus então aliados, os Munduruku, além de epidemias, enfraqueceram a resistência dos Mura na região.

O povo Mura vive espalhado em 45 aldeias, isoladas em ilhas, localizadas entre os municípios de Autazes, Careiro, Careiro da Várzea e Manaquiri. Ao longo dos anos, o território Mura passou a ser ocupado, em grande parte, por fazendas e propriedades rurais, especialmente por criadores de gado e búfalos, neste que é considerado um polo de produção de leite na região.

Os pecuaristas se tornaram opositores históricos da demarcação das terras mura por parte da Fundação Nacional do Índio (Funai) – hoje Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). O processo encontra-se há mais de 20 anos em trâmite, tornando os Mura vulneráveis em relação à exploração de atividades econômicas em seu território. O Grupo Técnico (GT) para a delimitação do território só foi criado em 2023, depois de muita pressão dos indígenas.

Mais recentemente, um projeto de extração de silvinita, um mineral utilizado na produção de potássio – material amplamente utilizado pela indústria de fertilizantes e, portanto, de grande interesse para o agronegócio – tem provocado assédio, coação e conflitos por parte da mineradora canadense Potássio do Brasil – “Brazil Potash Corp.”, sediada no Brasil -, propriedade de mais de 7 mil acionistas localizados principalmente nos Austrália, Canadá, Brasil, Estados Unidos da América (EUA) e Reino Unido, e que tenta se apoderar das terras mura.

Segundo aponta Elaíze Farias (2022), a mineradora é controlada pelo banco canadense Forbes & Manhattan, que também é dono da mineradora Belo Sun, na área de Volta Grande do Xingu, na região da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Pará.

Além de recursos estrangeiros, há também investimentos de grupos empresariais de Manaus na empresa Potássio do Brasil, como a família Benchimol (dona da rede varejista Bemol) e o Grupo Simões (que atua no segmento de bebidas como engarrafadora do refrigerante Coca-Cola e outros).

Até mesmo o empresário do agronegócio, Blairo Maggi (ex-ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, ex-governador do Mato Grosso e ex-senador do mesmo estado) manifestou interesse em fazer parte do empreendimento, e estaria negociando com o investidor Stan Bharti, dono da Forbes & Manhattan, uma parceria para escoamento do minério.

A previsão do projeto é também construir um porto para escoamento na vila de Urucurituba, a cerca de 50 metros da terra indígena, onde vivem cerca de 600 famílias.

Com tantas ameaças ao seu território tradicional, em 2018, os Mura decidiram fazer o seu próprio mapeamento do território como forma de pressionar a Funai pela demarcação, o qual intitularam de Terra Indígena (TI) Soares/Urucurituba. Mesmo após muita resistência ao projeto de mineração, o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) emitiu, em abril de 2024, a licença de instalação (LI) para a Potássio do Brasil.

Diversas organizações indígenas da Amazônia Brasileira, bem como comunidades locais habitadas pelo povo Mura e organizações, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), vêm fazendo frente ao projeto, realizando denúncias, protestos e publicando cartas de repúdio diante de um cenário de violações de direitos dos povos indígenas.

Afinal, além de o licenciamento estar se dando em âmbito estadual, e não federal, como constitucionalmente assegurado, não houve consulta e nem realização de Estudo do Componente Indígena (ECI) ao longo do processo.

No entendimento do Ministério Público Federal (MPF), por se tratar de empreendimento de mineração em área indígena, ele desrespeita o direito dos povos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas, violando a Constituição Federal de 1988, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e dispositivos legais. Portanto, a licença concedida pelo governo amazonense é irregular.

 

Contexto Ampliado

De acordo com Márcio Santilli (2024), há registros historiográficos, desde o início do século XVII, sobre a presença dos Mura na região do baixo rio Madeira, onde ficam, hoje, Autazes e outros municípios do Amazonas. Os Mura, conhecidos como navegadores, possuíam grande mobilidade e capacidade de ocupação de extensos territórios, que se estendem entre lagoas, ilhas e canais que caracterizam a região.

Tais habilidades se tornaram incômodas para as primeiras frentes de colonização portuguesas. Ademais, os Mura eram temidos por sua grande capacidade de acossar os colonizadores por meio de ataques rápidos.

Os primeiros contatos entre os Mura e os colonizadores portugueses foram marcados por uma relação conflituosa. Extremamente arredios à dominação colonial, os Mura impuseram um grande desafio às primeiras frentes colonizadoras. Cansados dos constantes combates com os Mura e interessados em explorar as terras baixas ao longo da bacia do rio Autazes, os religiosos jesuítas foram os primeiros a propor, em 1714, o extermínio dos Mura por meio das chamadas “guerras justas”, eufemismo para a política de genocídio da coroa portuguesa.

Segundo Daniel Scopel (2007), a tentativa rendeu um processo judicial, na época, chamado de Devassa. Esse processo denunciava “violências” praticadas pelos indígenas contra os colonizadores na defesa do território tradicional indígena. Entretanto, a Coroa não deu o fim esperado pelos padres à Devassa, pois a institucionalização da guerra, na primeira metade do século XVIII, contrariava os interesses de Portugal, que tinha na imagem bravia dos Mura a garantia de afastar os aventureiros da rota para as minas de ouro de Goiás e Mato Grosso via rio Madeira.

Esse aparente uso estratégico da resistência Mura pela coroa portuguesa não sobreviveria às mudanças na política colonial impostas por Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal. Com a expulsão dos jesuítas da colônia, intensificou-se a colonização das terras mura por particulares.

Esse avanço também intensificou os conflitos já existentes. Ao contrário do período anterior, o marquês de Pombal tomou a beligerância dos Mura como pretexto para aumentar o poderio bélico da Coroa na região e como justificativa para a ineficácia dos empreendimentos ali instalados.

Ao mesmo tempo, Santilli (2024) também ressalta que os Mura sempre tiveram capacidade de incorporar pessoas de fora nas suas comunidades, por meio de casamentos, de cooptação ou do acolhimento de escravos fugitivos, o que os documentos oficiais definiam como um processo de “murificação”. Com a consolidação da influência colonial, no entanto, os Mura foram substituindo sua língua original pelo Nheengatu– espécie de língua franca indígena criada pelos jesuítas –, tendo depois adotando o próprio português como língua habitual.

Os Mura somente seriam “pacificados” por volta de 1786, após um contínuo enfraquecimento de sua resistência pelas constantes disputas territoriais com os Munduruku, então aliados dos portugueses. Por volta dessa época, muitos Mura abandonaram a atitude belicosa para aceitarem voluntariamente o aldeamento. Aqui é possível conferir um relato sobre conflitos envolvendo o povo Munduruku no estado do Amazonas.

Com a pacificação e sedentarização dos Mura, os colonizadores se viram livres para aumentar a exploração econômica dos territórios recém conquistados. As várzeas se prestavam para a criação de gado bovino, que acabou se tornando a principal atividade econômica do futuro município de Autazes (AM). Até hoje, a criação de gado leiteiro e bubalino (búfalos) é a base da economia municipal, conferindo a Autazes o epíteto de “Cidade do Leite”.

Consoante com a política indigenista da época, a Fundação Nacional do Índio (Funai) – hoje Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) – foi, durante muitos anos, a principal incentivadora dessa atividade entre os indígenas. Segundo o pesquisador Scopel, a pecuária era especialmente presente nas adjacências do Posto Barbosa Rodrigues: ao que parece, neste período, o gado foi sempre rebanho da Funai – segundo aponta Scopel (2007).

Nesse contexto, não é acidental que os produtores ligados à atividade leiteira sejam hoje os principais opositores à demarcação oficial das terras mura no município. Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, tornou-se dever do Estado a garantia das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas no Brasil. O texto constitucional também afirma serem as terras indígenas patrimônio da União, de usufruto dos povos que nela habitam, sendo vedada a permanência de não indígenas nas terras demarcadas.

No município de Autazes, a resistência à demarcação é especialmente forte devido ao fato de grande parte das propriedades estar em terras públicas usurpadas da União, sob administração da Funai ao longo dos anos. Sequer a Prefeitura da cidade possui controle sobre grande parte dessas terras ocupadas. Alguns produtores alegam possuir títulos centenários registrados em cartório, o que supostamente lhes garantiria a posse sobre as terras que atualmente ocupam em caso de não reconhecimento destas terras como indígenas.

A comprovação da legitimidade desse pleito dependeria de estudos para resgatar a cadeia dominial das terras em questão. Caso contrário, em se tratando da comprovação de que se trata de terras indígenas, tais títulos são declarados nulos. Um problema que atrasa ainda mais a demarcação das terras e sua efetiva posse pelos Mura é a exigência de que se indenizem as benfeitorias de boa-fé existentes nas terras a serem desintrusadas. A crônica falta de recursos e pessoal técnico qualificado do órgão indigenista prorroga para além do prazo legal as decisões em relação a este tipo de processo.

Outro problema, apontado por Scopel (2007), e que afetava os povos indígenas de Autazes (que além dos Mura conta com famílias das etnias Saterê-maué, Apurinã e Macuxi) era a precariedade do atendimento médico prestado, até aquele momento, pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa), embora atualmente esteja vinculado à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde (MS).

À época em que foi realizada a pesquisa, Daniel Scopel (2007) apontou que este era um problema especialmente grave nas aldeias mais afastadas da sede do município, que, em geral, tinham dificuldades de acessar o transporte para os doentes, feito por canoas movidas a motor de popa.

Segundo Scopel (2007), o polo-base Murutinga possui instalações que comportam o atendimento médico, o laboratório de microscopia e o alojamento dos profissionais. Apesar de a equipe contar com médico e enfermeira, esses pouco ficavam na aldeia. Assim, o atendimento emergencial era feito pelas técnicas de enfermagem que ficavam alojadas no polo-base. Não foi possível averiguar as condições atuais (2024) do atendimento indígena no Polo-base Murutinga.

No ano de 2012, a educação indígena dos Mura foi beneficiada pela chegada de energia elétrica às aldeias da etnia, dentro do Programa Luz Para Todos, do governo federal. Em matéria de Elaíze Farias publicada no jornal A Crítica em março de 2012, o tuxaua (líder indígena) da aldeia Cuia, Adamilson Ferreira, afirmou que a eletrificação trouxe mais conforto para os alunos indígenas do Programa de Educação Jovens e Adultos (PEJA).

Antes, as aulas no período noturno eram ministradas sob a luz de lamparinas ou debaixo de árvores sob a luz de fogueiras. A inclusão das famílias mura no programa também trouxe outros confortos às aldeias, como o uso de máquinas para realizar o trabalho doméstico, beneficiando principalmente as mulheres, tradicionalmente responsáveis pelo trabalho na roça e doméstico.

Os Mura também obtiveram avanços na demarcação de suas terras naquele ano. Em 1º de agosto de 2012, a Funai publicou no Diário Oficial da União (DOU) os resumos dos relatórios de delimitação de quatro terras da etnia: Murutinga/Tracajá (13.286 hectares), Ponciano (4.329 hectares), Sissaíma (8.780 hectares) e Vista Alegre (13.206 hectares). Tais áreas já haviam sido delimitadas pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), em 1920, mas não haviam sido confirmadas como patrimônio da União de usufruto dos Mura à luz da Constituição de 1988 e da legislação indigenista vigente.

Esse ato administrativo, contudo, acirrou os conflitos existentes. Em artigo publicado na agência Amazônia Real, em setembro de 2012, Elaíze Farias informava que os produtores rurais da região haviam conseguido o apoio da Secretaria Estadual de Produção Rural do Amazonas (Sepror/AM), que havia lançado uma nota pública reverberando a crítica destes à atuação da Funai em benefício dos Mura.

A responsável pelo órgão estadual ressaltava na nota os aspectos puramente econômicos da situação, já que a crítica se baseava no fato de já haver uma importante produção agrícola nas áreas reivindicadas pelos Mura. Segundo Farias, a oposição à demarcação das TIs Mura consegue angariar grande apoio popular no município de Autazes.

Contudo, a publicação dos relatórios de delimitação não foi seguida por novos desdobramentos no processo administrativo de demarcação, e a situação jurídica da área permaneceu indefinida, acirrando os ânimos na região. Por esse motivo, em 19 de abril de 2013, o Ministério Público Federal no Amazonas (MPF/AM) entrou com uma ação civil pública (ACP) exigindo a conclusão da demarcação da TI Murutinga. Em maio de 2013, a Justiça Federal concedeu liminar ao MPF determinando que a Funai concluísse o processo.

De acordo com matéria de Elaíze Farias, de 2013, republicada pelo Combate Racismo Ambiental,  ao conceder a liminar, a juíza federal Jaiza Maria Pinto Fraxe ressaltou o risco de perda da identidade e da cultura do povo indígena Mura e considerou a demora com o processo de demarcação injustificável. Fraxe determinou que a Funai devia analisar possíveis contestações ao relatório de identificação das terras no prazo de 90 dias, e encaminhar, se não houvesse ressalvas, o procedimento ao Ministério da Justiça (MJ), sob pena de multa de R$ 10 mil por dia de atraso.

Cada avanço no processo administrativo de demarcação, mesmo que por via judicial, intensificava os conflitos entre a população indígena e os fazendeiros locais. Segundo denúncia de José Rosha, republicada no blog Combate Racismo Ambiental em julho de 2013, o coordenador secretário do Conselho Indígena Mura (CIM), José Cláudio Pereira dos Santos, estava sendo ameaçado de morte.

As denúncias também foram encaminhadas às autoridades policiais locais e à Funai. Até aquele momento, ele era a quinta pessoa entre os Mura a sofrer tais ameaças. Em setembro de 2013, as ameaças foram encaminhadas ao Ministério Público Federal (MPF).

Durante a reunião na qual as denúncias foram encaminhadas, o procurador da República Júlio José Araujo Junior ressaltou a disposição do MPF em defender os direitos das populações indígenas e destacou a existência de uma recomendação expedida e três ações civis públicas ajuizadas somente em 2013, todas referentes à demarcação de terras do povo Mura. Júlio Araujo também informou que planejava visitar algumas aldeias ainda naquele ano e realizar nova reunião com as lideranças do povo Mura para tratar dos processos de demarcação em andamento.

Apesar das mobilizações em defesa da vida dos Mura e de seu território, em março de 2014 a etnia sofreu uma importante baixa, quando Maria Carvalho Barreto, indígena Mura da comunidade Mataurá (Aldeia Patakuá Deus é Bom), do município de Manicoré, foi assassinada na porta de sua casa após voltar de uma reunião na qual os membros de sua comunidade firmaram abaixo-assinado exigindo o início do processo administrativo de demarcação de suas terras tradicionais.

Ao contrário dos Mura de Autazes, as terras dessa comunidade sequer estão identificadas. A denúncia do assassinato de Maria foi realizada pela antropóloga Jakeline de Souza por meio de carta publicada no blog Combate Racismo Ambiental.

Em agosto de 2014, o MPF conseguiu uma nova vitória judicial para os Mura de Autazes. A Justiça Federal atendeu ao pedido do MPF/AM em ação civil pública e sentenciou a União e a Fundação Nacional do Índio (Funai) a concluírem o processo de demarcação da Terra Indígena Lago do Ponciano.

Segundo nota do MPF, a Funai deveria analisar possíveis contestações ao relatório de identificação das terras no prazo máximo de 45 dias e encaminhar, se não houvesse ressalvas, o procedimento ao Ministério da Justiça (MJ) para homologação. A sentença também obrigava os dois órgãos a observarem o prazo máximo de 24 meses para conclusão do processo de demarcação, sob pena de multa diária de R$ 5 mil, condenando-os ao pagamento de indenização no valor de R$ 50 mil por danos morais coletivos.

Em julho de 2016, o MPF expediu recomendação ao Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) para que cancelasse a licença prévia (LP) já expedida, e à Potássio do Brasil, para que suspendesse as atividades de pesquisa na região até a realização das consultas nos moldes previstos na legislação. Nenhum dos pedidos foi atendido. Assim, foi ajuizada uma ação civil pública (ACP Nº 0019192-92.2016.4.01.3200) na Justiça Federal. A juíza Jaiza Fraxe decidiu paralisar o licenciamento do empreendimento até que o povo Mura fosse consultado.

Com o processo de demarcação paralisado na Funai – a primeira reivindicação ocorreu em 2003 e a segunda em 2007 -, os indígenas reivindicaram seu território pela terceira vez em 2018, quando decidiram realizar a própria autodemarcação, denominando suas áreas tradicionais como “Terra Indígena (TI) Soares/Urucurituba”. Apesar de não ter valor jurídico, a ação do mapeamento demonstrou mais um passo na luta pela demarcação.

O processo foi realizado com o apoio do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Naquele mesmo ano, o líder indígena Vavá Ezogue dos Santos foi até Brasília pedir providências à Funai quanto à demarcação, e o órgão garantiu que o processo seguiria (Farias, 2022).

Indígenas Mura exibem resultado do mapeamento e autodemarcação do seu território. Foto: Bruno Kelly. Fonte: Amazônia Real (2022).

Diante deste contexto de indeterminação, a empresa Potássio do Brasil passou a atuar ainda mais enfaticamente no território dos Mura. Especialmente durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), órgãos públicos, como a Advocacia Geral da União (AGU), se posicionaram a favor da empresa, que alegou ter investido 180 milhões de reais no projeto. Àquela altura, a empresa já teria executado 27 mil metros de sondagens e concluído 33 perfurações para exploração do minério na região (Lima, 2023).

Reportagem do Cimi (2023) apontou que a empresa forçou moradores da TI Soares/Urucurituba (comunidade mais afetada pela invasão da mineradora, dado que a mina de potássio se encontra nos limites da área autodemarcada pelos indígenas) a venderem suas terras. Além desta área, as TIs Jauary e Paracuhuba também passaram a sofrer os impactos indiretos da ação da mineradora, já que se situam a 8 km da área explorada pela empresa.

A TI Paracuhuba (943 hectares) se encontra com o processo de demarcação finalizado, enquanto a TI Jauary aguarda desde 2012 a emissão da portaria declaratória. A TI Soares/Urucurituba, por sua vez, espera a abertura do Grupo de Trabalho (GT) de identificação e delimitação de suas terras (Cimi, 2023).

A mineradora Potássio do Brasil iniciou suas atividades em Autazes em 2009 e, em 2013, teve o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) aprovado pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam). Mesmo assim, já havia, antes mesmo da aprovação do EIA, iniciado prospecção nas proximidades da TI Jauary, com perfurações que atingiram o cemitério indígena dos Mura.

Ela contou com autorização do antigo Departamento Nacional de Pesquisa Mineral (DNPM), segundo matéria de Elaíze Farias para o Amazônia Real (2022). Autoridades públicas ligadas aos governos municipal, estadual e federal, além de empresários, apoiavam a exploração mineral dentro do território indígena. É o caso do prefeito de Autazes, Andreson Calvacante (União Brasil) – entre 2021 e 2024 -, do governador Wilson Lima (União Brasil) – entre 2019 e 2022 e 2023 e 2026 – e do vice-presidente Hamilton Mourão (PL) – entre 2019 e 2022.

Localização do projeto da Potássio do Brasil em Autazes (AM). Fonte: Amazônia Real (2022).

Em 2019, o povo Mura elaborou o seu próprio Protocolo de Consulta (Protocolo de Consulta Trincheiras: Yandé Peara Mura), instrumento com diretrizes para orientar a decisão dos indígenas e as formas de abordagem e consulta por parte da empresa e do Estado junto às comunidades dos Mura. Enquanto isso, placas de identificação da Potássio do Brasil continuavam a ser vistas nas áreas reivindicadas pelos Mura, se apropriando ilegalmente do espaço ancestral e gerando uma série de impactos socioambientais (Farias, 2022).

Segundo relatos dos próprios indígenas a Elaíze Farias (2022), o trânsito de veículos, máquinas e embarcações aumentou substancialmente na região, trazendo pessoas estranhas à comunidade. Isso ocasionou o aumento da poluição sonora, provocou aumento dos acidentes, alagou canoas utilizadas para pesca artesanal e passou a perturbar o sono dos locais.

Alterações na qualidade das águas subterrâneas e dos cursos de água doce também foram observadas pelos indígenas, em decorrência, por exemplo da injeção de salmoura nas áreas de exploração, provocando a salinização das águas subterrâneas. Rejeitos da mineração de potássio também são uma preocupação para a qualidade da água doce, com o potencial de alterar significativamente os ecossistemas dos rios.

Um outro ponto sensível da atuação da empresa Potássio do Brasil, tida pelos Mura como ilegal, foram as escavações arqueológicas. Na área dos Mura foram encontradas peças históricas, que foram levadas por funcionários da empresa e por pessoas que se identificavam como representantes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Foram identificados 41 pontos com vestígios arqueológicos. Apesar disso, a Potássio do Brasil minimiza a existência de indígenas na região, considerando, em seus estudos, apenas a presença de pequenos povoados ou vilas habitados por comunidades ribeirinhas (Farias, 2022). De acordo com a Funai, existem 16 comunidades dos Mura no município de Autazes.

Perfuração da Potássio do Brasil no território indígena dos Mura. Foto: Bruno Kelly. Fonte: Amazônia Real (2022).

De acordo com matéria de José Rosha (2020) para o Cimi, em abril de 2019, os indígenas Mura realizaram um protesto ocupando o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) de Manaus (AM). A ação ocorreu em meio à proposta do então presidente Jair Bolsonaro (PL) de municipalizar a saúde indígena, o que precarizaria ainda mais os serviços prestados pelo poder público.

Durante o manifesto, eles propuseram a realização de uma campanha para denunciar a falta de ação do governo, a violação de direitos, as invasões dos seus territórios, as ameaças de morte que vinham sofrendo, a poluição das águas e o temor da exploração de silvinita, que pode levar a crimes ambientais como os causados pelas mineradoras em Mariana e Brumadinho, em MG – segundo compara Rosha (2020).

Como resultado da campanha, foi produzida uma cartilha por parte de professores, alunos e lideranças das aldeias Trincheira, Josefa e Sissaíma com um breve resgate da história do povo Mura e os objetivos da campanha. “Para nós é uma forma de exercitar o conhecimento e de resistência cultural”, defendeu o professor Mariomar Moreira de Souza, que coordenou a campanha.

Neste mesmo ano, em outubro de 2019, os Mura fizeram uma manifestação fechando a rodovia AM-254 (Manaus-Autazes) para exigir o fim da discriminação e a continuidade do transporte gratuito que vinha sendo oferecido até então para os indígenas realizarem a travessia de balsa entre a aldeia e a sede municipal de Autazes. Os indígenas sofreram intimidação por parte de policiais civis, que realizaram disparos como forma de dispersar os manifestantes (Rosha, 2020).

De acordo com Mariana Vick (2022) para o Nexo Jornal, em 2022, a juíza federal Jaiza Maria Pinto Fraxe, da 1ª Vara Federal, determinou que a Potássio do Brasil devolvesse as terras compradas ilegalmente e sob pressão de indígenas na TI Soares/Urucurituba. A juíza anulou a compra dos terrenos, acatando petição feita pelo MPF.

Ela ainda determinou a retirada de placas da Potássio do Brasil instaladas à margem das áreas adquiridas dentro da comunidade indígena, obrigando a empresa a apresentar o Estudo de Componente Indígena (ECI) ausente no EIA submetido ao Ipaam.

A então direção da Funai – órgão presidido pelo delegado da Polícia Federal (PF), Marcelo Augusto Xavier da Silva, durante a gestão de Jair Bolsonaro (2019-2022) – recorreu da decisão, argumentando com a tese do marco temporal, que restringia o direito às terras indígenas àqueles povos que ocupavam a área reivindicada quando da promulgação da Constituição de 1988 ou por ela lutando judicialmente (o que seria impossível, pois até então os povos indígenas eram tutelados, não podendo se auto-representar em ações judiciais, entre outros impedimentos).

A Justiça Federal rejeitou o argumento da Funai, voltando a determinar a obrigação de fazer a demarcação (Farias, 2022).

Em 10 de março de 2022, a Advocacia Geral da União (AGU) enviou uma petição como “auxiliar da parte ré” para a juíza Jaiza Fraxe, solicitando que tomasse uma decisão sobre o projeto de mineração em Autazes. A então direção da AGU, ocupada pelo jurista Bruno Bianco (2021-2022), solicitou que o Ipaam fosse o órgão licenciador, a despeito da solicitação do MPF, para quem a competência deveria ser do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) por se tratar de área indígena.

De toda maneira, embora tivesse havido pressão para tal durante o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), a delegação da competência ao Ibama também é ainda um fator controverso, dado que o dispositivo constitucional que permitiria ao Congresso Nacional autorizar mineração em terras indígenas – como o Projeto de Lei (PL) 191/2020 – não foi regulamentado, tendo sido retirado de tramitação durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2023-2026).

A AGU pediu ainda a liberação dos valores depositados em juízo pela empresa para a realização da consulta dos indígenas e, por fim, solicitou que a Justiça Federal anuísse com a retomada do processo de licenciamento ambiental pelo órgão ambiental estadual (Farias, 2022).

De acordo com o Cimi (2023), em março de 2023 a empresa foi multada, a partir de recomendação dada pelo MPF, em R$ 100 mil, além de mais R$ 50 mil diários por descumprimento da decisão judicial que a obrigava a retirar as placas do território da aldeia Soares/Urucurituba. Para o MPF e para a Justiça Federal no Amazonas, havia provas suficientes de que as atividades da Potássio do Brasil estavam ocorrendo em área indígena, o que é ilegal.

De acordo com Leanderson Lima (2023), em matéria para o Amazônia Real, após 20 anos de espera, os Mura de Soares/Urucurituba receberam a notícia de que a Funai constituiria o Grupo Técnico (GT) para iniciar os estudos para a delimitação territorial. A criação do GT foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) em 1º de agosto de 2023 – Portaria nº 741, de 01/08/23 – e foi o primeiro passo para o reconhecimento do território.

O GT será responsável pelos estudos antropológicos, etnohistóricos, sociológicos, jurídicos, cartográficos e ambientais necessários para a identificação da TI. Por outro lado, tal ação motivou pecuaristas, fazendeiros e políticos locais a se mobilizarem contra a demarcação. Eles passaram a arrecadar dinheiro, por meio da realização de eventos, para contratar advogados que pudessem atuar contra a demarcação. Este cenário resultou no aumento de difamações e ameaças, inclusive de morte, contra lideranças indígenas.

Em maio de 2023, durante entrevista coletiva realizada na sede do MPF, lideranças indígenas dos Mura relataram que a empresa havia espalhado informações falsas sobre desapropriações na região, gerando conflitos e ameaças entre os comunitários. Em agosto de 2023, a Justiça Federal do Amazonas, por meio de decisão da juíza Jaiza Fraxe, acatou pedido do MPF e determinou a suspensão da licença concedida pelo Ipaam. A decisão destacou que a atividade não podia ser realizada sem autorização do Congresso Nacional e sem posterior consulta aos povos indígenas afetados (MPF, 2023).

No dia 23 de outubro de 2023, conforme publicado pela Funai, uma comitiva de representantes do povo Mura foi recebida no Ministério dos Povos Indígenas (MPI) em Brasília. Eles foram recebidos pela ministra Sonia Guajajara, pelas secretárias de Estado Ceiça Pitaguary e Eunice Kerexu, pela presidenta da Funai em exercício, Lucia Alberta, e por servidoras da Funai de áreas técnicas de licenciamento ambiental e demarcação de terras indígenas. A demanda do grupo era o acompanhamento do licenciamento ambiental do projeto de mineração em Autazes.

Dias antes, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) havia autorizado o prosseguimento do processo de licenciamento ambiental sob competência do Ipaam. A Funai e o MPI se dispuseram a continuar o diálogo e o acompanhamento do processo, de modo a garantir uma consulta legítima aos indígenas, observando as consequências e impactos do empreendimento aos modos de vida dos indígenas.

Conforme divulgado pelo MPF em 16 de novembro de 2023, a Justiça Federal no Amazonas atendeu a pedido emergencial do MPF, da Organização de lideranças indígenas Mura de Careiro da Várzea (OLIMCV) e da comunidade indígena do Lago do Soares, em Autazes (AM), e suspendeu imediatamente o procedimento de licenciamento ambiental, a consulta realizada de forma irregular e qualquer avanço nos trâmites para a implantação do empreendimento da empresa Potássio do Brasil.

A decisão teve como base o agravamento das irregularidades, violações, falsas promessas, ameaças e cooptações dos povos indígenas, inclusive de lideranças Mura por parte de servidores/gestores públicos e do próprio presidente da empresa Potássio do Brasil, Adriano Espeschit.

O MPF utilizou, como subsídios, diversos relatos de áudio, vídeo, ligações telefônicas, oitivas presenciais e videoconferência, documentos e outros meios que demonstravam inúmeras violações e transgressões por parte da empresa. Ressaltou-se que o protocolo de consulta do povo Mura também não havia sido respeitado. Segundo apontado pelo MPF (2023), informações falsas foram trazidas a público no sentido de que os Mura já teriam aprovado o empreendimento (MPF, 2023).

A decisão alertou para os riscos de conflitos e mortes para o povo Mura caso o empreendimento irregular continuasse a ser implantado. Determinou-se, então, a retirada do marco fixado irregularmente no território indígena e foi cobrada multa no valor de R$ 500 mil por dia de descumprimento e por violações ao território e ao povo Mura.

A Potássio do Brasil também foi multada em R$ 1 milhão pelo descumprimento dos deveres assumidos durante as audiências de conciliação, em especial por realizar pressão indevida sobre o povo Mura. A Justiça Federal ainda determinou a imediata suspensão de qualquer atitude de coação, manipulação, fraude, intimidação, ameaça, pressão e cooptação contra os indígenas Mura. Também foi fixada multa de R$ 100 mil por dia de descumprimento em relação a esta última exigência (MPF, 2023).

Em 22 de dezembro de 2023, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) reuniu lideranças indígenas em Manaus (AM) para se manifestar condenando a declaração dada, dias antes, pelo governador do Amazonas, Wilson Lima (União Brasil), de que o estado do Amazonas era contra a demarcação (VICK, 2022): “O Estado é totalmente contra [a demarcação]. Vão acabar com a Bacia Leiteira de Autazes e definitivamente com a possibilidade da exploração do potássio e de uma área que a gente não tem conhecimento de populações tradicionais indígenas” (Lima, 2023).

Protesto do povo Mura contra projeto de mineração de potássio. Foto: J. Rosha. Fonte: Cimi (2020).

Segundo publicado pelo ClimaInfo e republicado pelo Combate Racismo Ambiental, em 08 de abril de 2024, o Ipaam concedeu a licença de instalação (LI) para o projeto de exploração de potássio em Autazes. Os Mura afirmaram que não iriam aceitar a atividade em seu território sem o seu consentimento. A licença foi emitida após o TRF1 derrubar, no final de março, uma decisão da juíza Jaiza Fraxe que impedia o licenciamento ambiental da Potássio do Brasil.

Os Mura apontaram que a empresa continuava pressionando os indígenas a aceitarem a exploração. O Ipaam, que emitiu a licença, afirmou que ela se referia ao processo de escavação e montagem da estrutura, sem autorização de funcionamento, de uma lavra subterrânea.

Segundo o Ipaam, as LIs seriam liberadas por atividade cumprindo um cronograma, com prazo mínimo de análise de 30 dias para cada atividade licenciada. O MPF considerou irregular a licença emitida pelo governo estadual, já que ela viola direitos constitucionais, normas internacionais e direitos dos povos indígenas.

De acordo com Lígia Apel (2024), imediatamente após o anúncio do governo, o Conselho Indigenista Missionário, o Cimi Regional Norte I e a Rede Eclesial Pan-Amazônica Brasil (Repam) passaram a somar forças com o povo Mura e manifestaram seu repúdio à liberação da licença ambiental:

“Reiteramos a imparcialidade do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), com aval do governador, que elaborou o Estudo de Impacto Ambiental e concedeu o licenciamento à empresa Potássio do Brasil, mesmo conhecedora de que são atribuições e competências do Ibama, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e dos demais órgãos do governo federal. O empreendimento em Autazes coloca em risco a sobrevivência física e cultural do povo Mura, que já vem sofrendo o impacto do empreendimento nas práticas sorrateiras da empresa, que visam pressionar o povo com a promessa de políticas públicas, as quais não são de sua competência, e projetos de compensação em troca da aceitação do empreendimento, numa clara estratégia de passar por cima da lei e do povo Mura. (…) Reiteramos nosso NÃO à Mineração em Terras Indígenas e na Amazônia. NÃO à entrada da mineradora no território Mura e o fim do assédio que as lideranças vêm sofrendo. É necessária a paralisação do empreendimento, se não pela desumanização que ocorre, pelas irregularidades e ilegalidades com as quais vêm sendo realizadas, especialmente a desconsideração para com as comunidades Mura que não estão sendo consultadas. É necessária a realização dos estudos fundiários e de demarcação das terras indígenas Mura, tanto ou mais necessárias e urgentes do que os EIA-Rima” (Apel, 2024).

A nota completa pode ser lida aqui. Além desta, diversas organizações indígenas locais e regionais também emitiram notas e cartas repudiando a emissão da licença por parte do Ipaam, dentre elas: Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam); Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab); Povo Mura de Careiro da Várzea (OLIMCV); Terra Indígena Murutinga – Tracajá; Aldeia Trincheira; Aldeia São Pedro – Terra Indígena São Pedro; Aldeia Ponta Das Pedras – Terra Indígena Guapenú; Aldeia Paracuuba; Aldeia Moyray – Terra Indígena Guapenú; Comunidade Indígena Lago do Soares e Aldeia Guapenú – Terra Indígena Guapenú.

Além do repúdio à mineração no território tradicional dos Mura e da demanda pela consulta aos indígenas, um aspecto em comum nos manifestos é o não reconhecimento da atual diretoria do Conselho Indígena Mura (CIM), na figura de Kleber de Almeida Prado, como representativa do coletivo. Segundo as cartas, o CIM estaria sendo usado por parte da empresa e dos governos como palanque político, ferindo princípios do movimento indígena mura, já que estaria apoiando o projeto de mineração em oposição à própria demarcação do território.

Matéria de Elaíze Farias (2024) indica que, com a liberação da LI, lideranças mura passaram a temer riscos de conflitos. Herton Mura, professor e liderança da etnia, salientou que está em curso uma ação grave de violações de direitos e de tentativa de “esconder a existência de indígenas Mura no Lago do Soares”. Para ele, sem uma resposta imediata e dura da Funai, os Mura vão precisar lutar sozinhos contra a mineração de potássio, mas não vão desistir seu território.

“Está todo mundo preocupado em falar da Amazônia como a solução do planeta para diminuir a crise climática, mas ninguém quer saber da situação do Lago do Soares e dos parentes Mura. Como se a mineração não fosse influenciar na questão climática, uma vez que corre risco de contaminar a bacia amazônica com cloreto de sal”.

A esperança dos Mura é que a Funai inicie, o mais breve possível, os trabalhos do GT de Delimitação e Demarcação da TI Soares/Urucurituba.

 

Última atualização em: julho 2024

 

 

Cronologia

Século XVII: Primeiros registros historiográficos sobre a presença dos Mura na região do baixo rio Madeira, no então Estado do Maranhão, hoje estado do Amazonas.

1714: Religiosos jesuítas propõem o extermínio dos Mura por meio das chamadas “guerras justas”.

1786: Os Mura são “pacificados” após um contínuo enfraquecimento de sua resistência pelas constantes disputas territoriais com os Munduruku, então aliados dos portugueses.

1975: Terras Mura sob gestão da Funai são sistematicamente usurpadas por particulares; paralelamente, funcionários do órgão mantêm rebanhos de bovinos na região.

2003: Povo Mura solicita, pela primeira vez, a demarcação de seu território para a Fundação Nacional do Índio (Funai).

30 de setembro de 2005: Incêndio provocado por limpeza de terreno para a formação de plantações e pasto ameaça aldeia Tauari, em Autazes (AM).

2007: Povo Mura pressiona mais uma vez a Funai pela demarcação de seu território.

05 de outubro de 2007: Funai realiza audiência pública no município de Autazes para discutir demarcação de terras indígenas dos Mura. Demarcação incide sobre fazendas e áreas de pastagem de gado bovino, principal atividade econômica do município.

2009: Mineradora Potássio do Brasil inicia suas atividades em Autazes (AM).

Março de 2012: Aldeias mura começam a receber eletrificação rural no programa Luz para Todos.

Agosto de 2012: Funai publica portaria de delimitação de quatro terras indígenas dos Mura.

Abril de 2013: Ministério Público Federal no Amazonas (MPF/AM) move ação civil pública (ACP) contra a Funai exigindo a continuidade da demarcação da TI Murutinga.

Maio de 2013: Justiça Federal decide favoravelmente ao pleito do MPF/AM e determina prazo para conclusão do processo de demarcação e multas em caso de atrasos.

Julho de 2013: Conselho Indigenista Missionário (Cimi) denuncia publicamente que José Cláudio Pereira dos Santos, coordenador secretário do Conselho Indígena Mura (CIM), estava sendo ameaçado de morte.

Setembro de 2013: Denúncias por parte do Conselho Indígena Mura (CIM) são encaminhadas ao MPF.

2013: Mineradora Potássio do Brasil tem o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) aprovado pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam).

Março de 2014: Maria Carvalho de Barreto, Mura de Manicoré, é assassinada.

Agosto de 2014: Justiça Federal decide favoravelmente ao pleito do MPF/AM, determina prazo para conclusão do processo de demarcação da TI Lago do Ponciano e institui multas em caso de atrasos.

Julho de 2016: O MPF faz recomendação ao Ipaam para que cancele a licença prévia (LP) do projeto da Potássio do Brasil.

2018: Os indígenas Mura reivindicam seu território pela terceira vez à Funai, e decidem realizar a própria autodemarcação da área denominada como Terra Indígena (TI) Soares/Urucurituba.

2019: O povo Mura elabora seu próprio Protocolo de Consulta (Protocolo de Consulta Trincheiras: Yandé Peara Mura).

Abril de 2019: Indígenas Mura realizam protesto ocupando o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) de Manaus (AM) contra a proposta de municipalização da saúde indígena elaborada pelo governo federal sob a gestão de Jair Bolsonaro.

Outubro de 2019: Os Mura fecham a rodovia AM-254 (Manaus-Autazes) para exigir o fim da discriminação e a continuidade do transporte gratuito de balsas para os indígenas.

2022: A juíza federal Jaiza Maria Pinto Fraxe, da 1ª Vara Federal, determina que a Potássio do Brasil devolva as terras compradas ilegalmente e sob pressão de indígenas na TI Soares/Urucurituba, e que retire placas da empresa das áreas da comunidade.

10 de março de 2022: A Advocacia Geral da União (AGU) envia uma petição solicitando que a juíza Jaiza Fraxe decida favoravelmente ao projeto de mineração em Autazes.

Março de 2023: A empresa Potássio do Brasil é multada, a pedido do MPF, em R$ 100 mil, além de mais R$ 50 mil diários por descumprimento da decisão judicial que a obriga a retirar as placas do território da aldeia Soares/Urucurituba.

1º de agosto de 2023: A Funai publica portaria de criação do Grupo Técnico (GT) para iniciar os estudos para a delimitação territorial da TI Soares/Urucurituba.

Maio de 2023: Lideranças indígenas dos Mura relatam ao MPF que a empresa está espalhando informações falsas sobre desapropriações na região, gerando conflitos e ameaças entre os comunitários.

Agosto de 2023: A Justiça Federal no Amazonas acata pedido do MPF e determina a suspensão da licença concedida pelo Ipaam.

23 de outubro de 2023: Uma comitiva de representantes do povo Mura é recebida no Ministério dos Povos Indígenas (MPI) em Brasília.

16 de novembro de 2023: A Justiça Federal no Amazonas atende a pedido do MPF, da Organização de lideranças indígenas Mura de Careiro da Várzea (OLIMCV) e da comunidade indígena do Lago do Soares, e suspende o procedimento de licenciamento ambiental da Potássio do Brasil.

22 de dezembro de 2023: A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) reúne lideranças indígenas em Manaus (AM) para se manifestar contra a declaração dada pelo governador do Amazonas, Wilson Lima (União Brasil), sobre ser totalmente contrário à demarcação do território mura.

08 de abril de 2024: Ipaam concede a licença de instalação (LI) para o projeto de exploração de potássio em Autazes.

– Logo após o anúncio, diversas organizações indígenas, locais e regionais, e apoiadores emitem notas e cartas repudiando a emissão da licença por parte do Ipaam.

 

Fontes

AMAZONAS dá licença para explorar potássio em terra do Povo Mura. ClimaInfo, republicado por Combate Racismo Ambiental, 10 abr. 2024. Disponível em: https://shre.ink/8roi. Acesso em: 06 maio 2024.

APEL, Lígia Kloster. Repam e Cimi se unem ao povo Mura e repudiam licenciamento para exploração de potássio sem consulta aos indígenas. Cimi Norte 1, republicado por Combate Racismo Ambiental, 12 abr. 2024. Disponível em: https://shre.ink/8roK. Acesso em: 06 maio 2024.

BRASIL. Seção Judiciária do Amazonas. 1ª Vara Federal. Relatório de Inspeção Judicial. Autos nº º 0019192-92.2016.4.01.3200. Manaus (AM), 29 mar. 2022. Disponível em: https://shre.ink/8H3h. Acesso em: 24 maio 2024.

BRASIL. Senado Federal. Senador discute conflito de terras em Autazes (AM). Disponível em: http://goo.gl/mvR0Gu. Acesso em: 08 mar. 2010.

CARTA de Repúdio da Aldeia Guapenú/Terra Indígena Guapenú. Autazes (AM), 08 abr. 2024. Disponível em: https://shre.ink/8HT3. Acesso em: 06 maio 2024.

CARTA de Repúdio da Comunidade Indígena Lago do Soares. Autazes (AM), 08 abr. 2024. Disponível em: https://shre.ink/8HsP. Acesso em: 06 maio 2024.

CARTA de repúdio da Terra Indígena Murutinga – Tracajá. Autazes (AM), 08 abr. 2024. Disponível em: https://shre.ink/8Hsx. Acesso em: 06 maio 2024.

CARTA de repúdio do povo Mura de Careiro Da Várzea. Careiro da Várzea (AM), 08 abr. 2024. Disponível em: https://shre.ink/8Hsn. Acesso em: 06 maio 2024.

CONSELHO INDÍGENA MURA – CIM; ORGANIZAÇÃO DE LIDERANÇAS INDÍGENAS MURA DE CAREIRO DA VÁRZEA – OLIMCV; INSTITUTO PACTO AMAZÔNICO. Trincheiras: Yandé Peara Mura – Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Indígena Mura de Autazes e Careiro da Várzea, Amazonas. 45 f. Manaus, 2019. Disponível em: https://shre.ink/8H3V. Acesso em: 24 maio 2024.

CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Povo Mura. Disponível em: https://shre.ink/8WVz. Acesso em: 15 maio 2024.

FARIAS, Elaíze. Comunidade indígena no interior do Amazonas recebe luz elétrica. A Crítica, 05 mar. 2012, republicado por Terras Indígenas no Brasil – Instituto Socioambiental. Disponível em: https://shre.ink/8WVZ. Acesso em: 15 maio 2024.

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FARIAS, Elaíze. Justiça Federal anula compra de terrenos do povo Mura pela Potássio do Brasil. Brasil de Fato, 27 maio 2022. Disponível em: https://shre.ink/8n0u. Acesso em: 24 maio 2024.

FUNAI delimita quatro terras indígenas do povo Mura, no Amazonas. Acervo Combate Racismo Ambiental, 16 ago. 2012. Disponível em: https://shre.ink/8WVD. Acesso em: 15 maio 2024.

MEMBROS do povo Mura são recebidos pelo MPI e Funai. Funai, 23 out. 2023. Disponível em: https://shre.ink/8USC. Acesso em 24 maio 2024.

MPF/AM defende demarcação de terras indígenas do povo Mura. Procuradoria Geral da República, Notícias, 13 set. 2013, republicado por Instituto Socioambiental. Disponível em: https://shre.ink/8WVk. Acesso em: 15 maio 2024.

MPF/AM: Justiça obriga União e Funai a concluírem demarcação de terras do povo Mura. Procuradoria Geral da República, 08 ago. 2014, republicado por Terras Indígenas no Brasil – Instituto Socioambiental. Disponível em: https://shre.ink/8WwP. Acesso em: 15 maio 2024.

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ROSHA, José. Lideranças indígenas Mura levam denúncias ao Ministério Público. Acervo Combate Racismo Ambiental, 10 set. 2013. Disponível em: https://shre.ink/8WVs. Acesso em: 15 maio 2024.

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SOUZA, Jakeline de. Maria Carvalho Barreto, filha de indígenas Mura do Mataurá, foi encontrada morta anteontem, após participar de reunião para a demarcação da aldeia. Acervo Combate Racismo Ambiental, 05 mar. 2014. Disponível em: https://shre.ink/8WwH. Acesso em: 15 maio 2024.

VICK, Mariana. Os indígenas que ‘autodemarcaram’ sua terra cobiçada. Nexo Jornal, 24 jun. 2023. Disponível em: https://shre.ink/8Hji. Acesso em: 24 maio 2024.

 

 

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