Finalmente é oficializada a criação do assentamento Cícero Guedes, pelo Incra, para 185 famílias de trabalhadores rurais sem-terra
UF: RJ
Município Atingido: Campos dos Goytacazes (RJ)
População: Trabalhadores rurais sem terra
Atividades Geradoras do Conflito: Agroindústria, Monoculturas
Impactos Socioambientais: Alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território, Precarização/riscos no ambiente de trabalho
Danos à Saúde: Piora na qualidade de vida, Violência – assassinato, Violência – coação física, Violência – lesão corporal, Violência psicológica
Síntese
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em 1998, realizou vistorias nas fazendas do Complexo de Usinas Cambahyba, localizado no município de Campos dos Goytacazes (RJ). O complexo era composto por sete fazendas, somando um total de 3.500 ha de terras e foi desativado em 1993 após ir à falência.
A vistoria do Incra teve o objetivo de verificar a produtividade das terras e registrou que elas estavam improdutivas, publicando um decreto de desapropriação em 30 de novembro de 1998, conforme o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Entretanto, rapidamente os advogados da Usina entraram com Ação de Nulidade da vistoria e, enquanto a Justiça Federal não decidisse pela legalidade do laudo do Instituto, foi suspensa a desapropriação. Diante disso, o Incra não podia mais destinar as terras para a Reforma Agrária.
Em 17 de abril de 2000, os trabalhadores do MST ocuparam algumas fazendas do Complexo, consolidando o acampamento Oziel Alves, nome dado em homenagem ao jovem sem-terra torturado e morto por policiais militares do Estado do Pará (PMPA) no Massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996. De acordo com o MST, seus integrantes dividiram as fazendas em lotes para conseguir ocupar uma maior parte das terras; produzindo hortifrutigranjeiros, investiram na construção de casas e na compra de máquinas para ajudar na produção agrícola.
Contudo, ao mesmo tempo, os proprietários do Complexo de Usinas Cambahyba entraram com vários pedidos de reintegração de posse das terras ocupadas pelo MST. Dessa forma, no início de 2006, por mandado judicial, foi realizada ação de despejo pela Polícia Federal (PF). Oficiais de justiça e contratados da Usina acompanhados pelo então proprietário, Cristóvão Lisandro, como descrevem José Guilherme Gonzaga (2006), Carlos Gondim (2019), dentre outras publicações, além de expulsarem em torno de 470 famílias de trabalhadores, destruíram as casas, a plantação e apreenderam os maquinários. O processo de desapropriação das terras da Usina Ficou paralisado desde então, e a exigência de nova vistoria foi emitida pela Justiça Federal em 1998.
Posteriormente, o MST realizou nova ocupação no Complexo de Cambahyba, em novembro de 2012, quando 200 famílias construíram um novo acampamento – Luiz Maranhão. Contudo, praticamente dois meses depois, Cícero Guedes dos Santos, membro da direção estadual do MST no Rio de Janeiro, foi assassinado com dez tiros na cabeça dentro da Usina Cambahyba, no dia 25 de janeiro de 2013.
Em 2019, o MST se desligou do local onde ficava o acampamento, e, em 23 de agosto de 2023, foi oficializada a criação do assentamento Cícero Guedes, pelo Incra, para 185 famílias.
Contexto Ampliado
O município Campos dos Goytacazes, situado no norte do estado do Rio de Janeiro, possui uma economia de base rural, principalmente pela produção de cana-de-açúcar. De acordo com o sítio Nova Cana, existem cinco usinas de açúcar e álcool no Rio de Janeiro, sendo quatro delas no município de Campos dos Goytacazes. Além disso, a criação de gado e culturas de subsistência também se destacam em sua economia, sendoum dos municípios brasileiros que mais recebe royalties da exploração petrolífera em águas profundas, especialmente devido à grande produtividade da chamada “bacia de Campos”.
Entre 1929 e 1991 houve grandes investimentos públicos para o desenvolvimento das usinas de álcool no município, principalmente após 1975, com a criação do Programa Nacional do Álcool (Proalcool), que visou a substituição dos combustíveis veiculares derivados do petróleo por álcool anidro devido à crise do petróleo, a partir de 1973. Todavia, como observou Francine Damasceno Pinheiro (2009), com o fim do Programa em 1991 e, consequentemente, a extinção dos recursos do Estado brasileiro, que incentivavam a produção do álcool, as usinas começaram a falir, deixando dívidas trabalhistas, débitos fiscais e propriedades improdutivas.
A Usina de Cambahyba, uma das usinas em Campos dos Goytacazes, composta por sete fazendas que somavam um total de 3.500 ha de terras, foi desativada em 1993 após ir à falência. A pesquisa de Pinheiro (2009) expõe que, em 1998, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) realizou vistoria nas fazendas do Complexo de Usinas Cambahyba com o objetivo de verificar a produtividade das terras. Dessa forma, o Instituto identificou que as terras estavam improdutivas e publicou um decreto de desapropriação em 30 de novembro de 1998.
No entanto, rapidamente, apenas três dias depois, os advogados da usina entraram com um Mandado de Segurança no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 03 de dezembro de 1998, para proteger o direito de propriedade do usineiro. Na época, o dono das terras era Jorge Elizandro, de acordo com Gonzaga (2006).
Em março de 2000, a ação da usina foi julgada e negada. Todavia, a empresa tinha protocolado uma Ação de Nulidade, em 1998, da vistoria realizada pelo Incra e, enquanto a Justiça Federal não decidisse pela legalidade do laudo do Instituto, foi suspensa a desapropriação. Diante dessa suspensão, o Instituto não podia mais destinar as terras para a reforma agrária.
O argumento da usina, exposto no trabalho de Pinheiro (2009), era de que havia um projeto de recuperação das lavouras registrado no Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Estado do Rio de Janeiro (Crea-RJ) que impedia que as terras fossem destinadas para a reforma agrária, sendo que o projeto havia sido arquivado pelo mesmo órgão. Dessa maneira, em 17 de janeiro de 2000 foi julgado improcedente o pedido da usina; contudo, ainda estava pendente a apreciação do Judiciário sobre a perícia realizada pelo Incra.
Nesse sentido, em 17 de abril de 2000 os trabalhadores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ocuparam algumas fazendas do Complexo de Usinas Cambahyba, consolidando o acampamento Oziel Alves. O MST acreditava que a destinação para a reforma agrária seria fácil porque as terras estavam improdutivas, as usinas abandonadas, com dívidas junto ao governo federal e aos ex-trabalhadores, além de estarem respaldados pelo laudo do Incra de 1998. Mariana Quintans (2005) explica a situação:
“A ocupação contou com aproximadamente quatrocentas famílias de sem-terra, que em sua maioria eram de ex-empregados da Usina, que não receberam seus direitos trabalhistas e, com o encerramento das atividades da Usina, ficaram sem perspectiva de trabalho. Este acampamento foi batizado de Oziel Alves, em homenagem ao jovem sem-terra torturado e morto por Policiais Militares no Massacre de Eldorado dos Carajás. Depois deste primeiro momento, jagunços acamparam perto da área onde se encontravam as famílias, impedindo a ampliação da ocupação para o restante da fazenda. Os Sem Terra realizaram uma marcha que contou com aproximadamente 700 pessoas e conseguiram retirar os jagunços, começando a produzir na área”.
De acordo com trabalhos de Pinheiro (2009); Ana Tavares, Fernanda Vieira et.al (2019), o procurador da Fazenda Nacional, o Dr. Marcus Vinicius Figueiredo de Oliveira, consultou o MST sobre um possível interesse do movimento em gerenciar o imóvel onde se localizava o acampamento Fazenda Nossa Senhora das Dores, também situado nas terras da antiga Fazenda Cambahyba. Dessa forma, Lúcia Marina dos Santos, dirigente do MST, foi indicada como fiel depositária das terras; ou seja, as terras foram transferidas como terras arrecadadas por dívidas da União para fins da reforma agrária.
Como estratégia de resistência, o MST dividiu a fazenda em lotes para conseguir ocupar uma maior parte das terras. Durante o tempo em que permaneceram acampados, produziram cerca de 50 toneladas de produtos hortifrutigranjeiros, realizaram feiras para dialogar com a população e promoveram produtos oriundos da Reforma Agrária. Os sem-terra investiram na construção de casas e na compra de máquinas para ajudar na produção agrícola.
Todavia, em 2002, com a ampliação do acampamento, os usineiros formalizaram um novo pedido de reintegração de posse. Diante disso, a Justiça Federal de Campos dos Goytacazes decidiu pela reintegração; contudo, o Ministério Público Federal conseguiu impedir a ação, como apontou Pinheiro (2009).
Em 2004, de acordo com a mesma autora, os proprietários do Complexo de Usinas Cambahyba entraram com novo recurso pedindo a reintegração total das terras da usina. Na sentença decorrente dessa ação, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) pediu nova perícia da área, sendo que já se encontrava pendente a averiguação do laudo emitido pelo Incra em 1998. Observa-se, nesse sentido, que o TRF2 vinha desrespeitando as atribuições do Incra, órgão competente para avaliar se as terras estavam produtivas ou não. Entretanto, com a liminar de reintegração emitida em 2002, inúmeras vezes houve determinação do juiz para reintegração sem que a ação de despejo ocorresse de fato.
Em 08 de julho de 2005, o juiz Federal André Luis Martins da Silva determinou que se realizasse o despejo, emitido em 2002. A ação foi realizada no início de 2006 pela Polícia Federal (PF), oficiais de justiça e contratados da usina, acompanhados pelo dono, Cristóvão Lisandro. Além de expulsarem os trabalhadores (cerca de 470 famílias), demoliram as casas, apreenderam os maquinários e destruíram as plantações. Toda a estrutura para a produção de hortifrutigranjeiros foi destruída.
Segundo Pinheiro (2009), que estava presente, foi “uma ação de guerra”, e a PF prendeu as principais lideranças do acampamento na ocasião. Então, os sem-terra se dispersaram, sendo que “os mais orgânicos [isto é, com um histórico mais longo de militância junto] ao MST”, nas palavras de Pinheiro (2009), foram para o pequeno acampamento Oziel Alves.
O MST divulgou ainda que estradas próximas às fazendas ocupadas foram fechadas para impedir que a imprensa chegasse ao local para cobrir o despejo. Dessa forma, a imprensa somente conseguiu chegar à área cinco horas depois de as 150 famílias acampadas terem sido despejadas. No dia seguinte, de acordo com a mesma autora, as fazendas foram arrendadas para usineiros da usina Santa Cruz, do Grupo J. Pessoa, maior produtora de álcool do mundo na época, que respondia a processo por trabalho escravo. Em 2009, as terras já estavam todas plantadas com cana de açúcar.
De acordo com Guilherme Gonzaga (2006) e Pinheiro (2009), o MST participa do Comitê de Erradicação do Trabalho Escravo e Degradante do Norte e Noroeste Fluminense, atuando em diversas denúncias de trabalho precarizado no interior das usinas de cana de açúcar, inclusive com várias manifestações na Porta da Usina Santa Cruz.
Desde 1998, nova perícia emitida pela Justiça Federal, que avaliaria se as terras eram produtivas, não ocorreu. Destaca-se, nesse sentido, que a situação das terras já estava totalmente alterada após o arrendamento. Somente foi possível expropriar o montante de 150 dos 3.500 ha, onde foram assentadas 35 famílias do acampamento Oziel Alves, enquanto as outras seis fazendas continuaram em propriedade dos usineiros.
De acordo com informações divulgadas no site do MST em 2012, as dívidas da usina com a União totalizavam 190 milhões de reais, além de terem sido encontrados trabalhadores em regime de trabalho análogo à escravidão nas terras da Usina Santa Cruz. No mesmo ano, o Complexo de Usinas Cambahyba voltou a ser assunto na mídia após publicação do livro “Memórias de uma guerra suja”, de Marcelo Netto e Rogério Medeiros, que denunciava que militares haviam usado fornos da Cambahyba para incinerar corpos de militantes durante o período ditatorial.
O livro é um relato em primeira pessoa feito aos autores pelo ex-delegado capixaba Cláudio Guerra, estrategista do Serviço Nacional de Informação (SNI) durante 15 anos, e ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Guerra relatou que dez corpos de militantes de esquerda –mortos devido às torturas praticadas pelos militares em órgãos como o DOPS – foram incinerados nos fornos da Usina Cambahyba.
O ex-delegado relatou que ele próprio incinerou os dez corpos, entre eles o de Ana Rosa Kucisnky e seu marido, Wilson Silva, David Capistrano, João Massena Mello, José Roman e Luiz Ignácio Maranhão Filho, esses quatro dirigentes históricos do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
De acordo com informações de 11 de maio de 2012, expostas no site do MST, a usina na época era propriedade do ex-vice-governador do estado do Rio de Janeiro, Heli Ribeiro (Aliança Renovadora Nacional – Arena), entre 1967 e 1971, “pois ele faria o que fosse preciso para evitar que o comunismo tomasse o poder no Brasil”, segundo Claudio Guerra. Além disso, o regime militar oferecia armas a Ribeiro para combate aos sem-terra da região.
De acordo com a jornalista Rose Nogueira, ex-presa política pela ditadura militar, militante de esquerda e presidenta do Grupo Tortura Nunca Mais, para o Vermelho.Org, pode-se considerar essa usina como a “Auschwitz do Brasil”, pois os militares usaram métodos nazistas, como a tortura e a incineração. Nas investigações da Comissão Nacional da Verdade (CNV, criada pela lei 12.528/2011 para apurar graves violações de direitos humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988), está relatada a diligência de seus membros até os fornos da usina, com a presença do ex-delegado, e que pode ser acessada aqui.
Finalmente, em 07 de agosto de 2012, o juiz Dario Ribeiro Machado Junior, da 2ª Vara Federal em Campos, decidiu pela continuidade do processo de desapropriação da Usina de Cambahyba solicitada pelo Incra. A partir da decisão, o Instituto teria aproximadamente seis meses para vistoriar a área, desapropriá-la e pagar o ressarcimento aos ex-proprietários, de acordo com informações divulgadas pela Agência Brasil dez dias após a decisão judicial. Dessa forma, depois de 14 anos de luta, o MST conseguiu a autorização para o Incra realizar a desapropriação.
Posteriormente, o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra, em 02 de novembro de 2012, realizou nova ocupação no Complexo de Cambahyba. Aproximadamente, 200 famílias entraram na área durante a madrugada com o objetivo de construir um novo acampamento, dessa vez denominado Luiz Maranhão. A intenção era cobrar maior agilidade do processo de desapropriação. O MST também pediu nesse período a construção de um memorial aos militantes nas terras da usina.
Contudo, quando se imaginava que os acordos estavam sendo realizados, Cícero Guedes dos Santos, da direção estadual do MST, foi assassinado com dez tiros na cabeça dentro das terras da antiga Usina Cambahyba no dia 25 de janeiro de 2013. De acordo com o jornal Terceira Via, Cícero Guedes tinha 54 anos e se libertou do trabalho análogo à escravidão em lavouras de cana-de-açúcar na infância, em Alagoas, migrando para Campos dos Goytacazes. Aprendeu a ler aos 40 anos, integrou o MST na virada do século, e foi integrado ao assentamento Zumbi dos Palmares, na área da extinta Usina São João, também no município.
Ele foi morto após participar de reunião no acampamento Luiz Maranhão quando retornava de bicicleta para casa, no Assentamento Zumbi dos Palmares, durante a noite. Embora fosse da coordenação do assentamento Luiz Maranhão, ele não seria beneficiado com a oficialização do assentamento em Cambahyba, pois já era assentado ao norte de Campos dos Goytacazes.
Em 1º de fevereiro do mesmo ano (2013), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgou que o mandante do assassinato de Cícero Guedes dos Santos, José Renato Gomes de Abreu, havia sido preso. Ele é aliado do tráfico na comunidade Tira Gosto, em Campos dos Goytacazes. Foram realizadas duas audiências, uma em 23 de julho e outra em 30 de agosto de 2013, de acordo com informações do site do MST. Renan Monção Barreto, Alcidenes Moreira Alves e Marivaldo Ribeiro dos Santos foram considerados suspeitos de serem os executores.
Em 15 de fevereiro de 2013, o Incra ajuizou uma ação de desapropriação de um conjunto de fazendas pertencentes à antiga Usina Cambahyba, então conhecidas como Cambahyba, Saquarema e Flora. A área total, de 1.319 ha, possibilitava assentar 111 famílias. Além de ter sido considerada uma grande área improdutiva, segundo os índices da Lei 8.629/93 e baseados no Censo Agropecuário de 1975, o complexo de fazendas também descumpria a função social da propriedade do ponto de vista fiscal ambiental e trabalhista. O laudo de avaliação feito pelo Incra apontou a inexistência física e registral de reserva legal, além de degradação de Áreas de Preservação Permanente (APP).
A usina também foi apontada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) como descumpridora das obrigações trabalhistas e previdenciárias, tendo sido identificada exploração do trabalho infantil, bem como desrespeito ao valor do salário-mínimo e da jornada legal de trabalho. O Incra empenhou R$ 13,8 milhões em Títulos da Dívida Agrária (TDA) visando a indenização dos proprietários, e protocolou pedido de licença ambiental junto à Secretaria de Estado do Ambiente e Sustentabilidade (Seas). Essas informações foram divulgadas pelo Incra em 18 de fevereiro de 2013.
Contudo, de acordo com notícia do MST do Rio de Janeiro, em 28 de novembro de 2013, o acampamento Luiz Maranhão não foi oficializado em assentamento, nem a Justiça Federal imitiu ao Incra a posse do imóvel. Ou seja, a desapropriação não foi totalmente realizada. Na época, cerca de 200 famílias viviam no Luiz Maranhão e aguardavam decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ).
No entanto, esse acampamento permaneceu ativo até janeiro de 2019. De acordo com comunicado do MST, após seis anos do assassinato de Cícero Guedes, ninguém ainda havia sido julgado. Além disso, eles acabaram se estabelecendo no assentamento Luís Maranhão, razão pelo qual o MST comunicou o desligamento de suas ações na área, conforme anunciaram:
“Os suspeitos de tal ação agora se encontram no Luís Maranhão. Invadiram, de forma silenciosa, paulatinamente, e trouxeram consigo uma série de trabalhadores precarizados, mas que não refletem a mística e nossos princípios. Acreditamos que algumas dessas famílias seduziram-se pelo discurso irresponsável que comumente grupos que atuam na clandestinidade fazem para amealhar trabalhadores em estágio de extrema necessidade. Esses grupos, longe de promoverem o acesso aos direitos, reproduzem a lógica da dominação no campo: o medo e a busca por efetivação do poder pela violência e intimidação. Repudiamos veementemente essas práticas, que não expressam nossos valores e nossa trajetória de luta pela Reforma Agrária nesses 35 anos. Entendemos que o acampamento Luís Maranhão não reflete mais nossa organização, razão pela qual vimos a público esclarecer que não mais se trata de uma ocupação do MST/RJ.”
Em 07 de novembro de 2019, José Renato Gomes de Abreu foi absolvido pelo júri popular, presidido pelo juiz Eron Simas, no Fórum Maria Teresa Gusmão, na Avenida XV de Novembro, em Campos dos Goytacazes. O júri decidiu pela absolvição do réu por quatro votos a dois. De acordo com o Brasil de Fato, cerca de 100 pessoas fizeram uma vigília pedindo justiça para o crime.
O delegado envolvido no inquérito reafirmou em depoimento que José Renato teria sido o mandante do crime. Entretanto, a decisão que inocentou o réu foi tomada em poucos minutos pelo júri. Segundo nota do MST:
“Esse resultado reforça o quanto trabalhadores e trabalhadoras rurais não conseguem ter o reconhecimento de seus direitos diante do sistema de justiça brasileiro, marcado pela oligarquia rural e empresarial, que insiste num sistema baseado em dois pesos e duas medidas, mantendo as cercas desse poder inacessível à classe trabalhadora. Na amplitude da vida e da luta, continuaremos nas trincheiras carregando o legado que Cícero nos deixa”.
Em julho de 2019, o procurador da República Guilherme Garcia Virgílio apresentou denúncia contra o ex-delegado do DOPS Claudio Guerra. O denunciado foi acusado de destruição e ocultação de cadáveres. Segundo o procurador, as ações criminosas de Guerra são graves e não devem ser toleradas em uma sociedade democrática. Seus crimes foram investigados em processo criminal, baseado em seus próprios relatos no livro “Memórias de uma guerra suja”. Segundo afirmou o procurador Virgílio:
“O comportamento do réu se desviou da legalidade, afastando princípios que devem nortear o exercício da função pública por qualquer agente do Estado, sobretudo daquele no exercício de cargos em forças de segurança pública, a que se impõe o dever de proteção a direitos e garantias constitucionais da população”.
Em 31 de maio de 2021, a Justiça Federal autorizou a desapropriação da Usina Cambahyba. Com essa decisão, enfim, destinava-se a área ao Incra para assentar famílias de trabalhadores/as rurais sem terra. Completavam-se, então, 21 anos da ocupação. A decisão que determinou a desapropriação das terras foi assinada pela juíza substituta Katherine Ramos Cordeiro, da 1ª Vara Federal de Campos dos Goytacazes. Nela, a magistrada estabeleceu um prazo de dez dias para a imissão provisória da posse ao Incra.
Segundo nota do MST, divulgada após a decisão:
“É uma história de violência, mas de resistência dos trabalhadores e trabalhadoras. Por isso, nós, trabalhadores e trabalhadoras do MST/RJ, não abandonamos nunca a luta pela Cambahyba, porque é nossa história, é nossa resistência, é a nossa capacidade de irresignação diante da injustiça do latifúndio, é pela memória dos lutadores e lutadoras, como Cícero, Neli, Seu Antonio, que nos legaram sementes que reafirmamos: a Cambahyba é nossa”.
No dia 24 de junho de 2021, 300 famílias ocuparam uma das fazendas que pertencia ao Complexo de Fazendas Cambahyba, após ser decretada oficialmente desapropriada para fins de reforma agrária. Nasceu assim o Acampamento Cícero Guedes, com famílias oriundas de diversos territórios de resistência da região, de processos de lutas atuais e anteriores, como os agricultores de São João da Barra despejados no Porto do Açu, Ocupação Nova Horizonte, do bairro Parque Guarus, trabalhadores do bairro da Companhia de Desenvolvimento Industrial do Estado do Rio de Janeiro (Codin) e do antigo acampamento Luís Maranhão.
“Ocupamos as terras da Cambahyba para exigir democracia, terra para produzir comida saudável para todas as trabalhadoras e trabalhadores pobres do campo e da cidade que vêm sofrendo as consequências da pandemia de Covid-19 negligenciada pelo governo. Ocupamos a Cambahyba cumprindo todos os protocolos de saúde porque queremos vacinas para todas, todes e todos. Reforçamos as práticas de saúde em relação ao distanciamento social, uso de máscaras e álcool em gel. Nos levantamos para denunciar o governo genocida de Jair Bolsonaro, com mais de 500 mil mortes de brasileiras e brasileiros. Ocupamos a Cambahyba porque ela é um patrimônio público da memória, de resistências das famílias de trabalhadores e trabalhadoras Sem Terra, que nada mais querem do que a efetividade da Constituição que impõe a Reforma Agrária para terras improdutivas. Em nenhum momento tivemos dúvidas de que se tratava de um latifúndio improdutivo marcado pela exploração do trabalho, impactos ambientais e comprometimento com a ditadura empresarial-militar que manchou nossa história. Nossa Luta é uma luta de todxs, viva o Acampamento Cícero Guedes por vida digna, vacina no braço, comida no prato!!! Ditadura Nunca Mais!”
Em dezembro de 2021, ao completar seis meses de ocupação no acampamento Cícero Guedes, o MST ressaltou que, junto com a decisão de imissão de posse do Incra, o juízo federal de Campos dos Goytacazes decidiu pela permanência das famílias, determinando que a autarquia fizesse a mediação e evitasse o uso da violência criando um assentamento provisório.
No entanto, o Incra ainda não havia estabelecido uma mesa de negociação com as famílias que almejavam se beneficiar da reforma agrária. Na concepção do MST, essa omissão por parte do Incra, “que deveria ter o papel de mediação, de impedir conflitos”, criava novos acirramentos, especialmente, entre as pessoas que não compreendem o contexto da luta pela terra e sua destinação para reforma agrária:
“Nós, famílias do acampamento Cícero Guedes, sabemos que a terra obtida para Reforma Agrária é para produzir alimentos, para garantir o sustento das muitas famílias de trabalhadores e trabalhadoras rurais que sabem da importância que é ter uma produção diversificada e sem agrotóxicos. Esse era o projeto de vida do companheiro Cícero Guedes, que tombou na luta e é homenageado com o nome do assentamento”.
No dia 07 de agosto de 2022, o juiz federal Dario Ribeiro Machado Junior, da 2ª Vara Federal em Campos, decidiu favoravelmente pela continuação do processo de desapropriação da área, solicitado pela representação do Incra no estado. No entanto, de acordo com a Agência Brasil, o presidente da Cambahyba, Jorge Lisandro Gomes, disse desconhecer a referida decisão judicial, afirmando que a empresa iria recorrer em segunda instância: “As terras estão dentro da produtividade exigida por lei e este ano todas as lavouras serão reformadas”.
No dia 16 de agosto de 2022, o MST e outros movimentos sociais protestaram na Praça São Salvador, na região central da cidade, pedindo agilidade no processo de desapropriação da fazenda e pressionando por investigações da morte e desaparecimento de militantes na ditadura militar.
Como assegurou Dieymes Pechincha, membro do Coletivo Memória Verdade e Justiça, que congrega cerca de 20 organizações que reivindicam investigações sobre a repressão na ditadura militar: “[O protesto é] para mostrar que temos pessoas na sociedade que contribuíram para a ditadura. O fato de ter cedido a propriedade para que isso fosse feito não se resume só a uma questão particular. Outros setores da sociedade também contribuíram para isso”.
Em 2023, como lembrou o MST, completaram-se 10 anos do assassinato do agricultor rural Cícero Guedes, e a Quiprocó Filmes anunciou a produção, em parceria com o MST-Rio, do documentário “Brava gente”, com direção e roteiro de Fernando Sousa e Gabriel Barbosa, que aborda, por meio de depoimentos e imagens de arquivo, a luta do trabalhador rural pela conquista da terra, defesa da educação e da universidade pública, além do seu legado e o pioneirismo no desenvolvimento de técnicas agroecológicas de produção no Norte Fluminense. Como expõe o MST em sua página:
“Cícero Guedes tinha uma enorme capacidade de articulação e mobilização política. Foi uma das principais lideranças do MST no Estado do Rio de Janeiro, influenciou e foi fundamental na formação de estudantes em nível de graduação e pós-graduação da UENF [Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro] e UFF [Universidade Federal Fluminense], em Campos dos Goytacazes. Particularmente, destacaria a sua contribuição com o movimento estudantil na luta pela universidade pública e pela construção do Restaurante Universitário, o Bandejão da UENF, que hoje leva seu nome”.
Em 8 de junho de 2023, a Justiça Federal de Campos condenou o ex-delegado do DOPS Cláudio Antônio Guerra a sete anos de prisão, em regime semiaberto, pelo crime de ocultação de cadáver, de acordo com divulgação do MPF. Na sentença, a Justiça Federal reconheceu:
“[A] imprescritibilidade dos crimes sob apuração, aqui considerados como crimes contra a humanidade (ou de lesa-humanidade), em atenção à Constituição da República, às normas internacionais de direitos humanos e à jurisprudência sedimentada no âmbito dos sistemas global e interamericano de proteção aos direitos humanos”.
De acordo com a Agência Brasil, ele confessou ter recolhido os corpos de 12 pessoas e levado para serem incinerados entre 1973 e 1975. Os corpos foram retirados de locais como a “Casa da morte”, em Petrópolis (RJ), e o Departamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) no Rio de Janeiro, sendo incinerados posteriormente na Usina Cambahyba. À condenação, cabe recurso, e a Justiça Federal concedeu a Cláudio Guerra o direito de recorrer em liberdade. A Agência Brasil não conseguiu contato com a defesa do ex-delegado do antigo DOPS.
Em 23 de agosto de 2023 foi oficializada a criação do assentamento Cícero Guedes. De acordo com o Incra, a portaria nº 149/2023 criou o assentamento e autorizou o órgão a iniciar a seleção das famílias como beneficiárias do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Ainda de acordo com o jornal O Globo, o assentamento da Cambahyba abrigará lotes para 185 famílias.
Atualizada em novembro 2023
Cronologia
30 de novembro de 1998 – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) emite decreto de desapropriação das fazendas do Complexo de Usinas Cambahyba em Campos dos Goytacazes.
02 de dezembro de 1998 – Advogados da usina entram com Ação de Nulidade do procedimento desapropriatório logo após vistoria na 2ª Vara Federal de Campos dos Goytacazes.
17 de abril de 2000 – Integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ocupam algumas fazendas do Complexo de Usinas Cambahyba, consolidando o acampamento Oziel Alves.
2002 – Usineiros movem novo pedido de reintegração de posse.
08 de julho de 2005 – Juiz federal André Luis Martins da Silva determina despejo dos integrantes do acampamento Oziel Alves.
2006 – Polícia Federal (PF), oficiais de justiça e contratados da Usina Cambahyba despejam os trabalhadores, demolem as casas, apreendem os maquinários e destroem plantações.
2012 – Livro “Memórias de uma guerra suja” de Claudio Guerra e Rogerio Medeiros, revela que os fornos da Usina Cambahyba foram utilizados para incineração de corpos de militantes de esquerda durante o período ditatorial militar.
07 de agosto de 2012 – Juiz Dario Ribeiro Machado Junior, da 2ª Vara Federal em Campos, decide pela continuação do processo de desapropriação da Usina de Cambahyba, solicitada pelo Incra em 1998.
02 de novembro de 2012 – MST realiza nova ocupação no Complexo de Cambahyba com cerca de 200 famílias, e cria o acampamento Luiz Maranhão.
25 de janeiro de 2013 – Cícero Guedes dos Santos, da direção estadual do MST, é assassinado com dez tiros na cabeça dentro da Usina Cambahyba.
15 de fevereiro de 2013 – Incra ajuíza ação de desapropriação do conjunto de fazendas pertencentes à antiga Usina Cambahyba (fazendas Cambahyba, Saquarema e Flora). A área total é de 1.319 ha, possibilitando assentar 111 famílias.
28 de novembro de 2013 – MST-RJ divulga que o acampamento Luiz Maranhão não foi oficializado em assentamento e o judiciário não emitiu ao Incra a posse do imóvel. Cerca de 200 famílias que vivem no Luiz Maranhão aguardam decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ).
Janeiro de 2019 – MST comunica que o movimento não participará da organização do acampamento Luiz Maranhão.
Julho de 2019 – Procurador do MPF, Guilherme Garcia Virgílio, apresenta denúncia contra o ex-delegado do DOPS Claudio Guerra, acusando-o de destruição e ocultação de cadáveres durante a ditadura militar.
07 de novembro de 2019 – Tribunal do Júri inocenta José Renato Gomes de Abreu, denunciado como mandante do assassinato de Cícero Guedes.
31 de maio de 2021 – Justiça Federal autoriza desapropriação da Usina Cambahyba, destinando-a ao Incra para assentar famílias de trabalhadores/as rurais sem terra.
24 de junho de 2021 – 300 famílias ocupam uma das fazendas do Complexo de Fazendas Cambahyba, oficialmente desapropriada para fins de reforma agrária.
Dezembro de 2021 – Juízo federal de Campos dos Goytacazes decide pela permanência das famílias na pequena porção, determinando que a autarquia faça a mediação e evite o uso da violência, criando um assentamento provisório.
07 de agosto de 2022 – Juiz Dario Ribeiro Machado Junior, da 2ª Vara Federal em Campos dos Goytacazes, decide favoravelmente pela continuação do processo de desapropriação da área, solicitado pela representação do Incra no estado.
16 de agosto de 2022 – MST e outros movimentos sociais protestam na Praça São Salvador, na região central da cidade, pedindo agilidade no processo de desapropriação da fazenda e pressionando por investigações da morte e desaparecimento de militantes na ditadura militar.
8 de junho de 2023 – Justiça Federal de Campos condena o ex-delegado do DOPS, Cláudio Antônio Guerra, a sete anos de prisão, em regime semiaberto, pelo crime de ocultação de cadáver.
23 de agosto de 2023 – Incra publica portaria que determina criação do projeto de assentamento Cícero Guedes.
Fontes
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