MS – Quilombo Dezidério Felipe de Oliveira, em Dourados, enfrenta a resistência de produtores rurais de soja e milho para obter a titulação de seu território
UF: MS
Município Atingido: Dourados (MS)
Outros Municípios: Dourados (MS)
População: Quilombolas
Atividades Geradoras do Conflito: Atuação de entidades governamentais, Atuação do Judiciário e/ou do Ministério Público, Monoculturas
Impactos Socioambientais: Alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território, Falta / irregularidade na demarcação de território tradicional
Danos à Saúde: Falta de atendimento médico, Insegurança alimentar, Violência – ameaça
Síntese
A comunidade remanescente de quilombo Dezidério Felipe de Oliveira, do Distrito de Picadinha, localizado no município de Dourados, enfrenta a resistência de produtores rurais de soja e milho para obter a titulação de seu território. As 15 famílias ocupam 41 hectares remanescentes da Fazenda Cabeceira de São Domingos e reivindicam 3.738 hectares que, segundo Ramão Castro de Oliveira, presidente da associação, pertenciam a Dezidério Felipe. Outras 21 famílias descendentes do pioneiro Dezidério residem em bairros periféricos de Dourados.
Segundo Oliveira e colaboradores (2012), na comunidade eles cultivam milho, mandioca, feijão, cana e frutas. Além disso, a renda dos quilombolas é complementada com trabalhos informais em fazendas da região, em empresas terceirizadas ou empreiteiras.
A titulação do território enfrenta a oposição dos fazendeiros locais, que chegaram à região na década de 1970 e afirmam que a “harmonia” e a “tranquilidade” da região acababaram depois que surgiu a Associação Rural Dezidério Felipe de Oliveira (Arqdez), que reivindica o reconhecimento das terras quilombolas.
O Presidente do Sindicato Rural de Dourados, Gino José Ferreira, classificou a demanda quilombola de Picadinha como “uma fraude”. Ele criticou a decisão do governo de “tirar das terras produtores que compraram e pagaram pelos títulos” e propôs ação judicial contra a titulação. Os fazendeiros locais também foram apoiados pelo deputado federal Geraldo Resende (PPS), que discursou na Câmara dos Deputados, em maio de 2007, contra o reconhecimento dos quilombolas de Picadinha e questionou o Incra-MS, a respeito do processo de titulação.
A certidão de autorreconhecimento emitida pela Fundação Cultural Palmares (FCP), em processo (nº 54290.000373/2005-12) de reconhecimento e titulação do território, tramita no Incra-MS desde 2005. Representantes da comunidade já denunciaram que o andamento regular do procedimento foi interrompido várias vezes pelo órgão.
Em dezembro de 2008, um parecer do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul (IHGMS) veio fortalecer a perspectiva anti-quilombola do agronegócio, ao descartar a possibilidade da existência de comunidade quilombola na região da Picadinha, em Dourados, bem como em outras regiões do Estado. Contudo, em fevereiro de 2008, 14 comunidades negras rurais de Mato Grosso do Sul participaram do 1º Seminário Nacional Ará Ilu Ayê “Gente da Terra da Vida”, de comunidades quilombolas, realizado na capital Campo Grande a fim de reafirmar sua existência, sua identidade e sua ancestralidade.
Contexto Ampliado
As famílias quilombolas da Picadinha são descendentes de Dezidério Felipe de Oliveira, que viveu na região antes da abolição da escravatura e chegou fugido de Minas Gerais no início do século XX. Após instalar-se na localidade de Vista Alegre, mudou-se para a região de Picadinha em 1905, onde constituiu família e viveu em comunidade até morrer, numa área de 3.748 hectares de terra na cabeceira do córrego São Domingos.
Segundo Ramão Castro de Oliveira, presidente da Associação dos Remanescentes de Quilombo Dezidério Felipe de Oliveira (Arqdez), Dezidério morreu em 1935, e, como somente após sua morte as terras foram tituladas definitivamente, grande parte dos herdeiros foi obrigada a sair da área em decorrência das invasões de fazendeiros, da pressão que vinham sofrendo e da falta de condições financeiras para produzir.
Em janeiro de 2008, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) anunciou investimentos da ordem de R$ 1,5 milhão em obras de saneamento e abastecimento de água para cinco comunidades quilombolas do Estado, dentre as quais a comunidade de Picadinha, que se enquadrou nos pré-requisitos: possuir população inferior a 2.500 habitantes e sistema de saneamento deficitário ou inexistente.
Apesar do reconhecimento da comunidade pelo órgão federal em 2009, o mesmo não ocorre a nível estadual. No mesmo ano, um parecer do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul (IHGMS), assinado pelo então presidente do órgão Hildebrando Campestrini, considerou não haver documentos, nem ao menos indícios que provassem a existência, no atual Mato Grosso do Sul, de quilombos, mesmo que tardios, interpretação esta que serviu de base para o IHGMS não reconhecer a presença de quaisquer núcleos quilombolas remanescentes em nosso Estado.
Os quilombolas sul-matogrossenses, contudo, não esmoreceram diante da falta de reconhecimento por parte do estado onde vivem. Em fevereiro de 2008, com o apoio da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), aprovaram a Moção Pública Picadinha durante o 1º Seminário Nacional Ará Ilu Ayê Gente da Terra da Vida, realizado em Campo Grande (MS), a fim de reafirmar sua existência, sua identidade, tradicionalidade e demandas territoriais. Também solicitaram informações e salvaguardas ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e ao Ministério Público Federal (MPF) para a conclusão da titulação das terras do quilombo de Picadinha.
Na moção, foi questionada a suspensão do processo – sem justificativa -, já naquela época, por mais de três anos (desde o início de 2005) – bem como uma proposição, por técnicos do órgão, de substituição da maior parte da área apresentada no laudo antropológico por uma terra distante mais de 40 quilômetros da terra de moradia, de qualidade inferior à que a comunidade pleiteia e que não guarda com ela qualquer relação histórico-social.
O 1º Seminário Nacional Ará Ilu Ayê abordou questões fundiárias, ambientais e de direitos humanos, e contou com a presença de universidades e secretarias estaduais e das seguintes comunidades matogrossenses: Malaquias, do município de Figueirão; Furnas do Dionísio, de Jaraguari; Tia Eva e Chácara Buriti, de Campo Grande; Família Cardoso, de Nioaque; São Miguel, de Maracaju; Os Pretos, de Terenos; Boa Sorte, de Corguinho; e Picadinha, de Dourados.
Contraditoriamente ao que afirma o IHGMS em seu laudo, a Secretaria de Estado de Trabalho, Assistência Social e Economia Solidária então reconhecia a existência de 27 comunidades negras rurais, urbanas e quilombolas no Estado. Entre elas, as seguintes comunidades que lutam pelo reconhecimento e titulação de seus territórios: Chácara Buriti e Tia Eva (Campo Grande), Comunidade dos Pretos (Terenos), Família Bispo (Sonora), Família Quintino (Pedro Gomes), Furnas de Boa Sorte (Corguinho), Furnas dos Dionízios (Jaraguari), Malaquias (Figueirão), Ourolândia (Rio Negro), Santa Tereza (Figueirão), São Miguel (Maracaju), São Miguel e Família Cardoso (Nioaque).
Além de se mobilizarem e se organizarem para alcançar o reconhecimento dos direitos territoriais, as comunidades quilombolas buscavam parcerias para implementação de políticas públicas e ações de melhoria nas áreas de saúde, educação, produção de alimentos, geração de renda e valorização cultural.
Além de algumas entidades já mencionadas, a posição da Comunidade Quilombola de Picadinha tem o apoio de organizações como o Movimento Negro e o Conselho Municipal de Defesa e Desenvolvimento dos Direitos dos Afro-brasileiros (Comafro), Fórum Estadual da Comunidade Negra, Conselho Estadual dos Direitos do Negro (Cedine), Prefeitura Municipal de Dourados (gestão Laerte Tetila), Secretaria Estadual de Habitação (Sehab), Deputado Federal João Grandão (PT), Vereador Tenente Pedro (PT) e Ministério da Cultura.
Em maio de 2009, uma equipe técnica do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) esteve na área pleiteada pelos quilombolas, mas o trabalho de medição e delimitação não pôde ser concluído, pois um grupo de 40 produtores rurais realizou protesto na ocasião e impediu sua continuidade. Apesar da legalidade da pesquisa a ser executada pelo INCRA, os produtores rurais afirmaram só autorizariam a entrada em suas terras mediante autorização judicial. Os estudos só puderam ser realizados após o juiz da 1ª Vara da Justiça Federal em Dourados, Massimo Palazzolo, emitir a autorização exigida e estipular multa diária de R$ 10 mil em caso de descumprimento da decisão. Em 23 de julho daquele ano, os estudos foram de fato realizados, mas ainda sob o protesto de pelo menos 100 produtores rurais.
O edital de divulgação do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) só foi publicado em março de 2010. Após a publicação do edital, segundo a legislação, os atuais proprietários dos imóveis abrangidos pelo perímetro do território quilombola possuiriam prazo de 90 dias para apresentar as contestações e suas respectivas provas ao Instituto. Caso o órgão federal não as acolhesse, os atuais proprietários teriam seus títulos considerados nulos e indenizados pela terra nua e pelas benfeitorias de boa-fé.
No mesmo mês, um grupo de 13 produtores rurais apresentou suas contestações ao RTID. O advogado e produtor da localidade José Tibiriçá Martins Ferreira representou o grupo. Em apenas 90 dias, o advogado realizou pesquisas e elaborou a peça da contestação, na qual afirmou reconhecer que Dezidério de fato adquiriu as terras em questão, registrando-as em 1938. Porém, contestou a interpretação de que isso faça das terras uma área quilombola. Tibiriçá afirmou: Quando as terras da fazenda foram adquiridas por Dezidério de Oliveira, ele não era mais escravo. Ele nasceu, supostamente sob o regime da escravatura, em 1867, e comprou as terras na Picadinha, em 1º de abril de 1938, como cidadão livre.
Segundo reportagem do Correio do Estado, para ele, o reconhecimento da legitimidade das reivindicações dos herdeiros de Dezidério se baseia numa interpretação tacanha, ardilosa e de má-fé do que vem a ser uma comunidade quilombola. Porém, não há registro de sua contestação a respeito dos esbulhos sofridos pelos herdeiros, a base do procedimento administrativo do INCRA.
Em 17 de fevereiro de 2011, portal do CEDEFES noticiou que o Comitê de Decisão Regional do INCRA havia analisado as contestações apresentadas e decidido pela manutenção das conclusões do RTID. Com isto, o Estado brasileiro reconheceu a legitimidade do pleito da comunidade quilombola sobre uma área agora oficialmente delimitada em 3.538 hectares. O passo seguinte seria a notificação dos produtores rurais.
O processo administrativo, contudo, permaneceu relativamente paralisado até junho de 2011 devido à vigência de uma liminar concedida pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, favoravelmente à ação movida por Francisco e Walter Arakaki. Na ação, os autores alegavam que o próprio INCRA reconhecera no passado a legitimidade de sua propriedade sobre imóveis situados dentro da área a ser titulada, e qe possuíam títulos sobre os imóveis desde 1983. O INCRA, com o apoio do MPF, recorreu da decisão, tendo sua apelação acolhida pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região. O juiz responsável pelo caso defendeu a tese de que as terras quilombolas gozam de inalienabilidade, indisponibilidade e imprescritibilidade.
Na ocasião, o MPF considerou que a liminar conferia um peso maior ao direito de propriedade e negligenciava outros direitos. A primeira turma do TRF-3 considerou que mesmo que os particulares sejam portadores de título, ele poderá ser inoponível à União, mesmo sendo a transcrição imobiliária muito antiga, uma vez que a titularidade de áreas remanescentes de quilombos tem natureza originária.
Essa não seria a única ocasião em que decisões como essa paralisariam o processo administrativo. Em março de 2012, o TRF1 revogou outra decisão liminar com teor semelhante, dessa vez em favor do proprietário da Chácara Santo Antonio, Antônio Eulogio Lopes. Mais uma vez, o INCRA – com o apoio do MPF – recorreu da decisão e conseguiu dar continuidade à titulação.
Em novembro de 2012, o INCRA começou a notificar colonos residentes no distrito da Picadinha, em Dourados, para deixarem a área delimitada. O próximo passo seria a concretização da desapropriação dos imóveis. Em entrevista ao Diário MS, Cícero Costa, advogado de um grupo de produtores rurais, garantiu na ocasião que os produtores rurais se utilizariam de todos os meios judiciais possíveis para protelar as desapropriações: Acreditamos que a chance de perder aquela terra por força das reivindicações quilombolas é zero. (…) O INCRA não tem o poder de transformar a propriedade privada em quilombola. Alguns produtores também afirmaram à reportagem que não sairiam do local.
Porém, parte do processo teve que ser novamente suspensa quando em abril de 2013 o juiz federal Francisco Neves da Cunha, da 22ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal (DF), concedeu liminar favorável ao fazendeiro Alcides Pereira Cortez, retirando sua fazenda. Em resposta, o procurador Marco Antonio Delfino, do Ministério Público federal (MPF) em Dourados anunciou que iria recorrer da decisão.
Em julho daquele ano, uma nova decisão judicial do TRF1 favoreceu às demandas territoriais dos quilombolas. Naquela ocasião o tribunal negou provimento a pedido de liminar para suspensão do processo administrativo de titulação das terras quilombolas em ação movida pelos proprietários de um imóvel de 98 hectares incluídos na área a ser titulada. De acordo com nota do MPF, os procuradores consultados pelo tribunal consideraram que uma ação judicial para contestar a existência ou não de um território quilombola naquelas terras era um meio impróprio e que qualquer contestação desse tipo deveria ser realizada durante o processo administrativo.
Em novembro de 2013, o MPF também foi responsável pela proposição de uma ação civil pública que objetivava assegurar à comunidade o direito básico de acesso à água potável e abreviar a espera dos quilombolas por um sistema de abastecimento de água que lhe foi prometido pelo poder público local há quase seis anos. Um convênio fora firmado entre a Prefeitura de Dourados e a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) para a viabilização da obra, mas os dois órgãos não chegaram a um acordo sobre as responsabilidades de cada um.
O ano de 2014 trouxe uma importante vitória para a comunidade. No último dia daquele ano, a Agência Brasil repercutiu a notícia de que o INCRA havia finalmente publicado no Diário Oficial da União a portaria que reconhece e delimita o território da comunidade. Porém, isto só foi possível após um acordo firmado entre os quilombolas e os proprietários rurais da área, que resultou na redução do perímetro inicialmente identificado de cerca de 3.500 hectares para 2.651 hectares.
Na ocasião, foi anunciado que o próximo passo seria a regularização fundiária, com a retirada de ocupantes não quilombolas, a continuidade do processo de desapropriação e/ou o pagamento de indenização e a demarcação do território.
Cronologia:
1905: Início da ocupação da família de Dezidério Felipe de Oliveira em Picadinha.
1938: Dezidério Felipe de Oliveira registra mais de 3000 hectares na área como de sua propriedade.
2005: Iniciado processo de titulação das terras da comunidade de Picadinha.
Janeiro de 2008: Funasa anuncia investimentos em saneamento básico na comunidade de Picadinha.
Fevereiro de 2008: Quilombolas ligados a CONAQ divulgam monção de apoio à comunidade durante o 1º Seminário Nacional Ará Ilu Ayê.
12 de maio de 2009: Produtores rurais impedem realização de trabalho de técnicos do INCRA durante estudos para elaboração do RTID da comunidade.
23 de julho de 2009: Técnicos do INCRA realizam estudos de identificação da área da comunidade quilombola sob protestos dos produtores rurais.
Março de 2010: INCRA divulga RTID no Diário Oficial da União (DOU) delimitando área e abrindo prazo para contestações. No mesmo mês, os produtores apresentam suas contestações ao RTID.
Junho de 2011: Juiz José Lunardelli acolhe apelação do INCRA e suspende efeito de decisão judicial que excluía dois imóveis rurais pertencentes a Francisco e Walter Arakaki do processo administrativo de titulação da comunidade.
Março de 2012: INCRA consegue suspensão de outra liminar que excluía da titulação imóvel registrado em nome de Antônio Eulogio Lopes.
Novembro de 2012: INCRA inicia notificação dos produtores rurais.
Abril de 2013: Decisão da 22ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal suspende ações do processo de titulação que incidiam sobre imóvel de Alcides Pereira Cortez e paralisa desapropriações.
Julho de 2013: TRF1 nega pedido de suspensão do processo de titulação.
Novembro de 2013: MPF move ação civil pública para assegurar acesso à água pela comunidade.
31 de dezembro de 2014: INCRA publica portaria reconhecendo e delimitando oficialmente território quilombola. Área final é menor que a inicialmente identificada no RTID.
Última Atualização em: 19 jan. 2015.
Fontes
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