MT – Conflito por terras públicas em Jaciara – famílias sem-terra não conseguem sequer a quarta parte de 10 mil hectares apropriados por fazendeiros

UF: MT

Município Atingido: Jaciara (MT)

Outros Municípios: Jaciara (MT)

População: Agricultores familiares

Atividades Geradoras do Conflito: Atuação de entidades governamentais, Atuação do Judiciário e/ou do Ministério Público, Monoculturas

Impactos Socioambientais: Falta / irregularidade na demarcação de território tradicional

Danos à Saúde: Falta de atendimento médico, Insegurança alimentar, Piora na qualidade de vida, Violência – ameaça

Síntese

Em 2003, a Associação dos Pequenos Produtores Rurais de Nossa Senhora Aparecida entrou com pedido junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para que os cerca de 2.500 hectares restantes, de uma área de 10.000 hectares de terras públicas, fossem disponibilizados para fins de reforma agrária e a criação de um assentamento para cerca de 40 famílias de trabalhadores rurais sem-terra. A lentidão do Incra em atender a demanda levou estes trabalhadores a acamparem nos fundos da Igreja Católica do Distrito de Selma, com autorização do pároco local, e a se sujeitarem a toda sorte de pressões, preconceitos, ameaças e resistência de fazendeiros locais.


Organizados em torno da recém-fundada Associação Centro Comunitário de Selma, fazendeiros locais conseguiram, apesar da falta de elementos como a comprovação da posse legal da área em litígio, a reintegração da posse das terras e o despejo dos sem-terra do local ocupado. Apesar dos recursos, o despejo foi confirmado pelo Tribunal de Justiça do Estado e seguiu o habitual roteiro de humilhações, ameaças e violência por parte de policiais e oficiais de justiça encarregados.


As famílias passaram então a montar seu acampamento na estrada que corta a região, em condições insalubres de higiene e moradia, sem qualquer tipo de infra-estrutura que possibilitasse permanência digna no local, sem condições de garantir seu sustento, sob ameaças e a pressão de fazendeiros sobre os poderes públicos e comerciantes da localidade, para que não atendessem ou prestassem qualquer forma de assistência àquelas famílias, assim inviabilizando sua presença na região.


Em julho de 2005, outras pessoas se uniram ao movimento inicial, e cerca de 120 famílias fizeram a segunda ocupação da Gleba Jatobá. Esta reocupação não teve melhor sorte que a primeira. A justiça estadual, novamente, arbitrou a favor do domínio dos fazendeiros sobre a área. Liminar da juíza Gisele Alves da Silva, da 2º Vara Cível de Jaciara, determinou a reintegração de posse do local e, em que pese o direito constitucional de ir e vir, determinou também que os sem-terra fossem impedidos de acessar outras áreas no distrito.


Em 31 de agosto daquele ano, a Polícia Militar do Estado cumpriu a ação de reintegração de posse e alocou as 120 famílias numa área, negociada com a Casa Militar do governo estadual, pertencente ao Instituto de Terras do Mato Grosso (Intermat). A solução provisória, contrária aos interesses das famílias sem-terra, serviu para apaziguar o clima de tensão na região e atendeu aos fazendeiros locais, na medida em que a opção preferencial das famílias sem-terra seria a reconstrução do acampamento em área próxima às terras demandadas.


Até o momento, não há informações de que o Incra tenha efetivado a solução do problema, visto que as famílias permanecem sujeitas à situação provisória, e sem vislumbrar garantias de condições para uma existência digna, e remunerada pelo próprio trabalho.

Contexto Ampliado

O município de Jaciara, no sudeste mato-grossense está localizado em uma região caracterizada por grande número de conflitos fundiários e de disputas por território entre famílias de pequenos produtores rurais, trabalhadores rurais sem-terra, populações tradicionais, comunidades indígenas, fazendeiros e grandes empresas agropecuárias.


A existência de conflitos socioambientais envolvendo territórios e populações tradicionais não é privilégio desta região do Mato Grosso. O mesmo processo está ocorrendo em toda a grande área que compreende o noroeste do Mato Grosso do Sul, oeste de Goiás, sul do Pará, leste do Amazonas e sul de Rondônia. O chamado arco do desmatamento é também uma frente de conflitos fundiários e de imensos impactos socioambientais, decorrentes de grandes projetos que operam e são subsidiados pelo modelo de desenvolvimento que privilegia a ocupação extensiva dos territórios e a exploração intensiva dos recursos naturais, em detrimento da saúde e do modo de vida das populações tradicionais pertencentes à região.


O conflito envolvendo sem-terras e fazendeiros na chamada Gleba Jatobá, no distrito de Selma, Jaciara, é hoje um símbolo da violenta colonização e do poder de pressão dos grandes proprietários de terra no Estado do Mato Grosso. Acostumados a ocupar grandes extensões de terras férteis, eles contam com a parceria do Estado na promoção de um desenvolvimento econômico e ordenação do solo concentrador e, consequentemente, desigual e socialmente injusto. A grilagem de terras públicas tem sido o principal meio para alcançar esse resultado. Os que promovem ou são coniventes com a apropriação crescente de territórios, inclusive públicos, aos domínios de uma minoria, veem os movimentos sociais do campo, as populações tradicionais e a reforma agrária como obstáculos a vencer.


O conflito em Jaciara reflete esse contexto. Ele traz à luz elementos característicos do processo de apropriação privada das terras públicas do Estado. Como parte do patrimônio público do Mato Grosso, os cerca de 10.000 hectares originais da chamada Gleba Jatobá foram paulatinamente transferidos para o patrimônio de duas famílias do município. O processo, iniciado em 1984, culminou com a apropriação de mais de 7.500 hectares por seis fazendeiros da mesma família, à exceção do ex-major do exército Hugo Tadeu Koning, também proprietário de fazendas na área.


Jaciara, como outros municípios do Estado, é dominada politicamente por grupos ligados ao agronegócio e às tradicionais elites rurais. O próprio Mato Grosso é hoje governado por um dos maios produtores de soja do mundo, proprietário de vastas extensões de terra no Estado e sócio de grandes grupos agroindustriais.


Essa dominação política é um obstáculo ao avanço de iniciativas e políticas comprometidas com a efetivação da reforma agrária ou para a recomposição de territórios tradicionais dos povos originários da região. Tanto o Incra quanto a Funai enfrentam enorme resistência dos grupos que têm dominado a política no Mato Grosso, fazendo uso de propaganda, campanhas difamatórias e ações judiciais, para impedir o êxito de que quaisquer políticas fundiárias que venham para mudar essa situação.


Não é por outro motivo que o Mato Grosso é hoje vice-campeão nacional em denúncias de situações de trabalho escravo e um dos estados com maior índice de desmatamento no país. As poucas áreas preservadas se encontram justamente nas áreas ocupadas pelas comunidades tradicionais e indígenas, sofrendo grande pressão para não obterem as garantias jurídicas fundamentais à posse dessas terras.


Se comunidades, como os povos indígenas, com incontestável direito a determinadas áreas, já encontram dificuldades para obterem o domínio sobre suas terras, as famílias sem-terra encontram ainda maiores dificuldades para ocupar e explorar terras públicas e viverem dignamente do seu trabalho. Segundo diferentes denúncias, elas têm que enfrentar a enorme influência que a bancada ruralista exerce sobre o governo federal e os órgãos responsáveis pela gestão de terras públicas e demarcação de territórios tradicionais, assim como sobre um judiciário estadual amplamente favorável às demandas dos grandes proprietários e capaz de emitir liminares mesmo carecendo dos elementos mínimos para tanto. Esses fatores somados impedem o sucesso das famílias como as que permanecem lutando por uma parcela da Gleba Jatobá, e obrigam-nas a passarem por grandes e quase intransponíveis dificuldades enquanto aguardam, em condições de vida degradantes, por uma decisão oficial que, mantida a trajetória deste caso, poderá ser ainda contrária às suas expectativas.


Por tudo isso, a não solução dessa questão fundiária em Jaciaba intervém fortemente na qualidade de vida e na saúde desta parcela da população o não reconhecimento de seu direito à terra gera insegurança e impede tais famílias de acessarem políticas públicas que poderiam provê-las de melhores condições de vida, realização e trabalho. O abandono à própria sorte também é refletido no quadro de insegurança alimentar que pode levar ao desenvolvimento de diversas doenças, especialmente nas crianças e idosos. O conflito em torno da Gleba Jatobá se torna, assim, uma questão de saúde pública e de direitos humanos, ainda negligenciados pelos diversos níveis do poder público brasileiro.

Última atualização em: 10 de outubro de 2009

Fontes

ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO MATO GROSSO. Sem-Terra de Jaciara obtém solução provisória. Disponível em: http://www.al.mt.gov.br/V2008/ViewConteudo.asp?no_codigo=9750. Acesso em: 29 jun. 2009.


DIÁRIO DE CUIABÁ. PM inicia a desocupação de gleba. Disponível em: http://www.diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=229258. Acesso em: 29 jun. 2009.


_________. Clima é tenso em gleba de Jaciara. Disponível em: http://www.diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=226198. Acesso em: 29 jun. 2009.


LEROY, Jean-Pierre e SILVESTRE, Daniel. Relatório da Missão ao Mato Grosso. Rio de Janeiro: Programa de Voluntários das Nações Unidas: Fundação Ford, 2005. 55 p. Disponível em: http://boell-latinoamerica.org/download_pt/relatoriodireitoaomeioambiente.pdf. Acesso em: 22 jun. 2009.

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