SE – Reconhecimento e titulação da comunidade de Lagoa Nova não barram violência e protelação de usineiros na justiça
UF: SE
Município Atingido: Pacatuba (SE)
Outros Municípios: Pacatuba (SE)
População: Agricultores familiares, Quilombolas
Atividades Geradoras do Conflito: Atuação do Judiciário e/ou do Ministério Público, Monoculturas
Impactos Socioambientais: Alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território, Assoreamento de recurso hídrico, Falta / irregularidade na demarcação de território tradicional, Poluição de recurso hídrico, Poluição do solo
Danos à Saúde: Desnutrição, Falta de atendimento médico, Insegurança alimentar, Piora na qualidade de vida, Violência – ameaça, Violência – coação física
Síntese
Localizado no leste sergipano, a cerca de 70 quilômetros da capital do Estado, o pequeno município de Pacatuba é hoje palco de uma longa disputa entre posseiros quilombolas e a empresa Santana Agroindustrial Ltda (Sanagro), pelo domínio de 2812 hectares na localidade de Lagoa Nova, zona rural do município. Conflitos rurais não são novidade no cotidiano das cerca de 100 famílias que atualmente ocupam a área. Desde muito cedo essas famílias são vítimas de ações que terminaram por reduzir seu território original. A presença de muitas destas famílias na região é estimada em cerca de três séculos.
Segundo relatos colhidos, em 2006, pela missão da Relatoria para os Direitos Humanos à Alimentação Adequada, Água e Terra Rural da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Plataforma DhESCA), os posseiros do Assentamento Independência Nossa Senhora do Carmo descendem de moradores que teriam recebido doação de parte da antiga Fazenda Santana – então propriedade da Missão Santana dos Frades (da Ordem dos Carmelitas) , para que pudessem plantar e garantir seu próprio sustento.
Contudo, com a saída dos frades carmelitas, alguns fazendeiros avançaram sobre a área doada, estendendo seus pretendidos domínios sobre o território dos posseiros, que, expropriados destas terras, viram-se obrigados a explorar uma área menor e insuficiente para garantir suas condições de vida e sociabilidade.
Contexto Ampliado
Segundo o sociólogo Eliano Azevedo Lopes, a luta pela terra no município de Pacatuba é uma das mais significativas no Estado de Sergipe, em que a Comissão Pastoral da Terra, a Diocese de Propriá, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e o Centro Dom José Brandão de Castro têm se alternado, quando não atuando juntos na defesa dos camponeses. Lopes observa que a Diocese de Propriá foi o divisor de águas entre uma situação historicamente caracterizada pela resignação e pela acomodação dos pobres do campo à exploração das oligarquias rurais e um novo horizonte que surgia, colocando-os na cena política como atores sociais importantes e sujeitos de direitos. O início desta atuação política teria se dado entre 1976 e 1979, em pleno período militar, quando a Codevasf contribuiu para a expulsão dos 'meeiros' de arroz (…) das terras que ocupavam às margens do rio São Francisco para dar lugar à implantação do projeto de irrigação Betume.
Apesar da disputa envolvendo a comunidade de Lagoa Nova e a Sanagro remontar à década de 1980, os conflitos fundiários na região são bem mais antigos. Dominada por grandes fazendeiros e políticos ligados à elite agrária sergipana, Pacatuba já foi palco de muitas ações violentas e a propriedade da terra sempre foi o pivô de grandes desigualdades e embates. Um dos casos mais escandalosos, conforme registra Azevedo Lopes, ocorreu no dia 25 de março de 1991, na fazenda Lagoa Nova, [quando] jagunços contratados por um fazendeiro e ex-deputado federal deram um tiro na boca no dirigente sindical Deusdeth Santos e agrediram fisicamente o teólogo José Martins da Rocha e a freira Hermínia Pereira Chaves, ambos da CPT/SE.
O processo de expropriação da área dos posseiros da antiga área dos carmelitas em Lagoa Nova teria começado entre 1984 e 1985. Nesta ocasião, conforme notícia do Correio de Sergipe, a Sanagro teria negociado com a Serigy Agronegócios (Seragro), empresa à época do fazendeiro Bosco França, o arrendamento, por dez anos, de cerca de 900 hectares, para a produção de cana-de-açúcar destinada à sua usina de álcool. No entanto, a área seria parte daquela doada pelos carmelitas aos posseiros.
O grupo arrendador era já uma terceira geração da família do usineiro pernambucano José Pessoa de Queiroz. Formado em 1987, em Alagoas, a atuação do grupo JP se confunde com a da Companhia Brasileira do Açúcar e do Álcool (CBAA). O site do grupo não relata a existência da Sanagro de Pacatuba, na sua história. Contudo, o Correio de Sergipe associa a Sanagro e a CBAA ao grupo. Em 1989, a CBAA incorporou a Seragro, e depois, a Debrasa e a usina Santa Olinda (atual CBAA-Sidrolândia), no Mato Grosso do Sul. Em 1996 foi criada a usina Santana, em Minas Gerais. Nos anos 2000, as empresas JP consolidaram sua posição em São Paulo e no Rio de Janeiro, respectivamente com a CBAA-Icém e a Santa Cruz, em Campos dos Goytacazes. Em 2004, o grupo adquiriu o controle administrativo da usina Everest, em conjunto com um grupo de produtores de cana da região de Penápolis (SP).
Segundo a relatoria DhESCA, durante todo o processo de desapropriação, as famílias de trabalhadores rurais que vivem na área [da antiga fazenda Santana, em Lagoa Nova, Pacatuba] foram submetidas a despejos violentos e a ações de pistolagem por parte dos pretensos donos da terra. A instalação da usina da Sanagro – de acordo com a mesma relatoria, a maior produtora de álcool de Sergipe – apenas veio agravar os conflitos já existentes na região, na medida em que a empresa se utilizaria da institucionalidade de suas atividades e dos empregos gerados, sazonalmente, para angariar apoio a suas demandas e colocar-se como agredida pelas ações dos posseiros.
Esses, segundo a reportagem do Correio de Sergipe, estariam associados ao MST. Contudo, a mesma matéria traz a afirmação de uma das lideranças do Assentamento Independência Nossa Senhora do Carmo de que tal vinculação não procedia, uma vez que todos os posseiros eram nascidos e criados em Lagoa Nova.
Entre 1984 e 1996 a Sanagro praticamente não encontrou resistência institucional às suas ações. Neste período, apesar das constantes denúncias dos posseiros, os órgãos responsáveis pela administração e fiscalização da propriedade da terra no Estado, especialmente o Incra, pouco fizeram de fato para superar os impasses desses conflitos na localidade. Os interesses da empresa foram gradualmente se firmando até não encontrar oposição alguma na esfera administrativa e na judicial.
Entre 1991 e 1996, apesar da ciência do conflito pelo Incra/SE, os posseiros da fazenda Santana se viram ameaçados de total expropriação. Em 1991, de acordo com informações apresentadas no relato da missão da Plataforma DhESCA, deu-se uma invasão da Sanagro, com apoio de Bosco França (…), durante a qual foram destruídas as plantações e cercas. Bosco França declar[ou]-se dono também desta nova área invadida. Em um segundo momento, em 1996, a ordem de despejo determinada pelo juiz da Comarca de Pacatuba, foi cumprida violentamente, houve queima de barracos, documentos, roupas.
Ambas as ações desencadearam, entretanto, um empenho maior das famílias posseiras pela desapropriação dos 2800 hectares reivindicados pelo arrendador das terras. Após a ação de despejo em 1996, a resistência dos posseiros se tornou mais forte e, frente às denúncias da arbitrariedade e à ocupação da sede do Incra em Aracaju, o órgão deliberou pela desapropriação de parte da área da Usina e a criação do atual Assentamento Independência. O Incra já havia, em 1994, avaliado e vistoriado a área ocupada pela Sanagro, cujo contrato de arrendamento venceria em setembro de 1995.
Contudo, desde 2000, a Sanagro tem interposto diversos obstáculos para a viabilização do assentamento. As ações judiciais movidas pela empresa, na Justiça Federal e até mesmo no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), têm prolongado indefinidamente a instalação da infra-estrutura básica do assentamento e o início do programa de reforma agrária na região. Apesar das diversas vitórias do Incra no âmbito judicial, a posse da terra continua indefinida, para isso contribuindo a lentidão da justiça federal e recursos da empresa, que resultam na permanência dela nas terras desapropriadas. Além disso, a empresa não estaria cumprindo os acordos firmados para garantir uma convivência pacífica com os posseiros.
Todo este cenário tem gerado um clima de constante hostilidade entre ambas as partes que, aliada à impossibilidade de implantação de programas sociais federais e à inércia do poder público local, impacta diretamente a qualidade de vida e a saúde da população.
Além disso, o fato de parte das terras mais férteis permanecerem em poder da empresa estaria também contribuindo para a continuidade das condições de insegurança alimentar e dos índices de desnutrição da comunidade de Lagoa Nova. A precariedade do tratamento da água disponível e as formas de despejo dos rejeitos das atividades da empresa são apontados como vetores importantes para o surgimento de doenças naquela população. A regularização da situação fundiária é assim considerada condição fundamental para as mudanças neste quadro.
Com o posicionamento do poder executivo a favor da desapropriação das terras, sob controle da empresa, e da regularização da situação fundiária das famílias ali presentes, pela criação de assentamento pelo Incra, coube ao judiciário deliberar a respeito da legitimidade das demandas das partes em litígio.
Os primeiros lances da batalha judicial se deram na 3ª Vara da Justiça Federal em Sergipe, em 2000, onde o Incra conseguiu o deferimento de uma ação que lhe garantiu a posse dos cerca de 3000 hectares em disputa. A nova situação criada obrigou a empresa a atuar numa esfera em relação à qual sua influência seria consideravelmente menor e onde se viu sujeita à negociação com outros atores sociais. Para reverter a decisão da 3ª Vara, a Sanagro entrou com a Reclamação 856/2000, no STJ.
Em novembro do mesmo ano, o ministro relator Francisco Falcão concedeu liminar à Sanagro reformando a decisão da primeira instância e suspendendo a emissão de posse concedida ao Incra. Esta decisão não encontrou respaldo entre seus colegas do STJ – cinco anos depois, a Primeira Turma do STJ, suspendeu a decisão do ministro Falcão, confirmando a decisão da juíza da primeira instância.
Durante o tempo que transcorreu entre a decisão do ministro Francisco Falcão e sua suspensão pela Primeira Turma, a população da comunidade de Lagoa Nova manteve-se mobilizada e por diversas vezes realizou protestos para pressionar a justiça a se posicionar em relação ao caso. Sua vitória, contudo, foi apenas transitória, pois ainda naquele mês o mesmo ministro daria provimento a uma medida cautelar interposta pela Sanagro que suspendia novamente a imissão de posse. Os recursos a essa medida ainda não foram julgados e a situação permanece indefinida.
Essa decisão foi criticada por parte das organizações que apóiam a luta dos posseiros e deu origem a ações por parte desses para forçar a negociação com a empresa. No mês seguinte à medida cautelar eles cortaram o fornecimento de água para a irrigação das plantações da Sanagro. Com sua produção paralisada a empresa não teve alternativa senão firmar um acordo, intermediado pelo Ministério Público Federal, onde se comprometia a se retirar da área em disputa e encerraria a ação judicial que impedia a posse do Incra sobre a área. Em troca, os posseiros permitiriam que a Sanagro colhesse a cana-de-açúcar já plantada na área e continuasse a utilizar a água da Lagoa Nova para irrigação da área que permaneceria sob seu controle. Liberada a água, a empresa não teria cumprido sua parte no acordo.
Em dezembro de 2005, 90 famílias do Assentamento Independência Nossa Senhora do Carmo cercaram a área em litígio com a Sanagro para pressionar a justiça a conceder a posse das terras. Um ano depois, a presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Sergipe, deputada Ana Lúcia (PT), alertou para o clima de tensão e a possibilidade de derramamento de sangue nos conflitos em Lagoa Nova e Lagoa do Campinho. Em novembro de 2006, a ONG Fian Internacional encaminhou uma carta onde denunciava as decisões do ministro Francisco Falcão ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em julho daquele ano, a Plataforma DhESCA Brasil já havia enviado uma relatora ao local, para investigar o caso. Essa relatora encontrou diversas irregularidades e violações dos direitos humanos (à saúde, à educação, à segurança alimentar e acesso à terra, entre outros). Seu relatório recomendou uma série de ações para mitigar os impactos dessas violações sobre a população local, mas tais recomendações não foram equacionadas pelos órgãos responsáveis.
Em junho de 2007, o deputado federal Iran Barbosa (PT) denunciou da tribuna da Câmara dos Deputados um ataque por jagunços, que teriam sido contratados pela empresa Sanagro, contra acampamentos do MST no município de Capela, em Sergipe.
A morosidade judicial, a inércia do poder público e a atuação de algumas empresas favorecem a situação de extrema pobreza e insegurança da população de Lagoa Nova. O tempo dedicado à luta pela garantia de seus direitos constitucionais impede os posseiros assentados de desenvolverem o solo que já controlam. A falta de condições mínimas de infra-estrutura, saneamento, recursos financeiros, atendimento médico e educação, os condena a permanecer na pobreza e os sujeita a todos os impactos negativos da monocultura da cana-de-açúcar.
Em julho de 2008, a Sanagro foi condenada pela Justiça Federal em Sergipe a reparar danos ambientais produzidos em Pacatuba.
Última atualização em: 14 de outubro de 2009
Fontes
AGÊNCIA BRASIL. Deputada denuncia ameaças de morte contra quilombolas e posseiros em Sergipe. Disponível em: LINK. Acesso em: 24 abr. 2009.
AGÊNCIA CARTA MAIOR. Bancada ruralista ameaça titulação de terras de quilombos. Disponível em: LINK. Acesso em: 24 abr. 2009.
CINFORM. Assentados cercam plantação para exigir posse de terras em Pacatuba. Disponível em: LINK. Acesso em: 24 abr. 2009.
FOR THE RIGHT TO FOOD (FIAN) INTERNATIONAL. Pedido de investigação da decisão do Ministro Francisco Falcão, relator da Medida Cautelar nº10.841
no Recurso Especial nº628.660/ SE de 2004, no Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: LINK. Acesso em: 24 abr. 2009.
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. MPF/SE obtém liminar contra a empresa Sanagro. Disponível em: LINK. Acesso em: 24 abr. 2009.
PLATAFORMA BRASILEIRA DE DIREITOS HUMANOS ECONOMICOS, SOCIAIS, CULTURAIS E AMBIENTAIS – DHESCA BRASIL. Relatório de Missão de denúncias de violações de direitos humanos da Relatoria Nacional para os Direitos Humanos à Alimentação Adequada, Água e Terra Rural, da Plataforma DHESCA Brasil, à Comunidade de Lagoa Nova, Assentamento Independência. Nossa Senhora do Carmo, Pacatuba(SE), realizada em 13 e 14 de julho de 2006.Disponível em: LINK. Acesso em: 24 abr. 2009.
MPF/SE move ação contra destilaria por crime ambiental – LINK
MPF/SE obtém liminar contra a empresa Sanagro – LINK
Intimidação – Correio de Sergipe (05/11/2006). Disponpivel em: LINK
LOPES, Eliano Sérgio Azevedo – História dos Movimentos Sociais no Campo em Sergipe: uma Abordagem Preliminar. Disponível em: LINK
LOPES, Eliano Sérgio Azevedo – Um Balanço da Luta pela Terra em Sergipe – 1985/2005. Disponivel em: LINK
História do Grupo [CBAA] LINK
Pronunciamento Deputado Iran Barbosa – Câmara dos Deputados – 20/06/2007. Disponível em: LINK