RS – Redução da classificação do nível toxicológico de agrotóxicos, pelo Ministério da Saúde, pode estar na raiz de problemas neurocomportamentais associados ao manuseio do produto

UF: RS

Município Atingido: Bento Gonçalves (RS)

Outros Municípios: Bento Gonçalves (RS)

População: Agricultores familiares

Atividades Geradoras do Conflito: Monoculturas

Impactos Socioambientais: Poluição atmosférica, Poluição de recurso hídrico, Poluição do solo

Danos à Saúde: Suicídio

Síntese

O modelo de produção agrícola baseado no uso de agrotóxicos, pelo qual o governo brasileiro tem se empenhado, tem causado danos extremos aos trabalhadores rurais, como a ocorrência de suicídios. As plantações do Rio Grande do Sul são exemplos não solitários nestas estatísticas. Reportagem realizada pela revista Galileu recebeu denúncias sobre a alta ocorrência de suicídios e problemas neurocomportamentais entre agricultores de morango e batata no Sul de Minas.


Porém, a falta ou subnotificação de dados estatísticos nos pequenos municípios vulnerabiliza e coloca em suspeita as referências e as análises epidemiológicas realizadas.


Os estudos citados pela revista Galileu no Rio Grande do Sul apontam evidências de que possa haver uma forte relação entre o uso de agrotóxicos e sintomas de depressão, que podem levar ao suicídio. Em Venâncio Aires, município que bateu o recorde de suicídios no país, num período de 17 anos pesquisados: “os três meses onde mais se utilizam agrotóxicos nas lavouras de fumo são outubro, novembro e dezembro, que justamente estão entre os quatro meses com maior número de suicídios” (Falk et al, 1996). De acordo com o mesmo estudo, “os indícios da relação entre o uso de agrotóxicos e suicídios no meio estudado e em alguns locais do exterior são muito grandes. Também a literatura científica internacional já estabeleceu claramente diversos e graves malefícios à saúde humana (física e mental) que estes venenos agrícolas causam”. “O que podemos afirmar, até o momento, é que os dados obtidos indicam que já existem indícios suficientes para formular uma hipótese para futuras pesquisas: a de que o uso de agrotóxicos (especialmente os organofosforados) é um dos principais fatores de risco para suicídios”.


A reportagem da Galileu revela outro dado constatado pelo médico João Werner Falk: “a maior parte dos suicidas [do período estudado em Venâncio Aires] é constituída por agricultores. A porcentagem varia de 47,61% a 66,66%, conforme o ano. Em 1993, incluídos os chamados 'safristas', que são trabalhadores rurais temporários da época da safra, esse percentual alcançou 83,32%. 'A relação entre suicídio e agricultura é inegável', conclui o médico”.

Contexto Ampliado

No Sul de Minas, Estiva, Bom Repouso e Ipuiuna foram cidades mineiras escolhidas para análise, com base em suspeitas levantadas por moradores e médicos da região. Segundo a reportagem da Galileu, em Estiva, por exemplo, município de 10 mil habitantes foram contados, com a ajuda da memória dos moradores, quatro suicídios teriam ocorrido entre junho de 2001 a março deste ano [2002]. Dois deles envolveram trabalhadores das lavouras de morango. Se for usada a proporção dos 100 mil moradores, o índice subiria para 40. Já em Ipuiuna, uma cidade que tem cerca de 9.000 habitantes, ocorreram pelo menos três casos entre os anos 2001 e 2002 (Galileu, 2002).


Tanto Ipuiuna quanto Bom Repouso são cidades onde há a plantação de batatas. Esta última, que também se dedica ao cultivo de fumo, usa agrotóxicos à base de ditiocarbamato, como o Dithane, que é a espécie que recebeu o sinal de perigo dos pesquisadores gaúchos. À época, comentaria o mais antigo médico de Estiva, Agenício de Oliveira: o uso de agrotóxicos é abusivo. Aquele receituário agronômico (o formulário exigido para a compra) não existe. Aqui se compra à vontade, quanto quiser, como quiser.


Estudos da Secretaria Municipal de Saúde de Bento Gonçalves e da Universidade Federal de Pelotas resgatam relatos dos trabalhadores no intuito de averiguar a relação entre a exposição a produtos agrotóxicos e seus efeitos neurocomportamentais. Embora o estudo em Bento Gonçalves tenha evidenciado sua pertinência pela metodologia precisa e clara, em muitos casos, a identificação da intoxicação pode ser comprometida devido a questões estruturais como a insuficiência de recursos humanos e laboratórios para a realização de diagnósticos.


Um dos passos da pesquisa foi resgatar informações sobre os dramas vividos pelas famílias e os processos que se dão durante a produção. Neste sentido, podem ser estabelecidas correlações entre a substância e a ocorrência de mortes. Bento Gonçalves é uma região que se caracteriza por pequenas e médias propriedades, com predomínio da fruticultura. O estudo (Faria et. Al, 2009) definiu a cultura do pêssego como critério de seleção dos estabelecimentos, já que é o tipo de produção em que prevalece o uso de inseticidas organofosforados.


O trabalho de campo foi realizado em duas etapas: a primeira no período com pouca exposição (junho-julho/2006) e a segunda no período com exposição intensa aos agrotóxicos (novembro-dezembro/2006). Foram elaborados questionários com a preocupação de cruzar as informações sociodemográficas, dados sobre o estabelecimento rural e caracterização do uso de agrotóxicos no estabelecimento. A investigação também focou ocorrência de tabagismo, consumo de bebidas alcoólicas, história de hepatites, outras doenças crônicas, uso de medicamentos e de álcool.


Em junho de 2009, ao ser entrevistada pelo IHU Online, a pesquisadora Neice Muller Xavier Faria confirmou que os problemas de saúde derivados da contaminação ambiental por agrotóxicos persistiam na região. Além de explicitar as vias de contaminação dos trabalhadores rurais, Farias afirma que o estudo transversal realizado com 1282 trabalhadores do campo na Serra Gaúcha havia confirmado uma clara associação entre intoxicação por agrotóxicos e a prevalência de transtornos psiquiátricos menores (teste srq-20). Além disso, testando isoladamente as questões do srq encontramos associação entre intoxicação por agrotóxicos com 13 dentre os 20 sintomas psiquiátricos avaliados. E, dentre estes, uma clara associação com pensamentos suicidas. Os resultados eram compatíveis com estudos similares realizados em outros países.


Em fevereiro de 1996, o então deputado Marcos Rolim (PT), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, afirmou que o grande número de suicídios no município de Venâncio Aires, em 1995, era causado pelo uso de agrotóxicos organofosforados na cultura do fumo. O Ministério Público Federal, em Porto Alegre, divulgou em setembro de 1996 sua decisão de instaurar um inquérito civil público para esclarecer a situação.


Em março daquele ano, o caso de Venâncio Aires foi anunciado como um dos que seria objeto de investigação da Comissão Parlamentar de Inquérito do Congresso Nacional, instaurada para avaliar denúncias contra a indústria do fumo. Segundo o repórter Carlos Alberto Souza, da Folha de São Paulo: Uma das medidas que a CPI pode adotar é a designação de um técnico do Ministério da Saúde, para investigar cientificamente se os suicidas (cerca de 80% são ligados à agricultura) foram contaminados por organofosforados, causadores de degeneração do sistema nervoso central.


As denúncias foram feitas com base num estudo realizado pelos pesquisadores João Werner Falk, médico e professor da Faculdade de Medicina da UFRGS, Lenine Alves de Carvalho, bioquímico, Mestre em Epidemiologia, Letícia Rodrigues da Silva, advogada do Movimento de Justiça e Direitos Humanos de Venâncio Aires e Sebastião Pinheiro, engenheiro agrônomo, técnico do IBAMA, que vasculharam o obituário dos últimos 17 anos da região.


Segundo o estudo, a Portaria nº 3 do Ministério da Saúde, de janeiro de 1992, agravou a situação quando ratificou o documento apócrifo do mesmo Ministério denominado Diretrizes e orientações referentes à autorização de registros, renovação de registros e uso de agrotóxicos e afins. Esta portaria alterou a classificação toxicológica dos agrotóxicos. Os produtos classificados como Classes I, faixa vermelha e caveira (Extremamente Tóxicos) e II, faixa amarela e caveira (Altamente Tóxicos), passaram para as Classes III, faixa azul (Medianamente Tóxicos), e IV, faixa verde (Pouco Tóxicos). Com esta alteração, apenas 6% dos agrotóxicos do país permaneceram nas Classes I e II, e 94% passaram às Classes III e IV. Antes, 85% deles eram classificados como Extremamente ou Altamente Tóxicos.


Em 2011, um projeto de lei do deputado Fernando Ferro (PT-PE) – proibindo a produção, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação e a exportação dos produtos agrotóxicos cujo princípio ativo seja o organofosforado (composto orgânico que contém fósforo em sua fórmula) Methamidophos, princípio ativo do Tamaron, um agrotóxico largamente utilizado nas lavouras de fumo e elencados entre as substâncias associadas aos suicídios em Venâncio Aires – foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. O projeto, contudo, até hoje não foi votado no Plenário da Câmara.


Em outubro de 2013, o Serviço de Vigilância Epidemiológica da Secretaria Municipal de Saúde de Bento Gonçalves/RS lançou um relatório sobre as intoxicações por agrotóxico ocorridas no município entre 1998 e 2012. Segundo o levantamento, no intervalo de 15 anos, 756 casos foram notificados pelos serviços de saúde existentes no município, a uma média de 56 casos por ano. Esse número corresponde a pelo menos 3% das intoxicações ocorridas no município naquele período. As categorias com a maior frequência relativa de casos foram: raticidas e rodenticidas (12,8%), glifosatos (12,7%), piretrinas e piretróides (11,5%) e os pesticidas inorgânicos (6,9%). Os pesticidas de uso agrícola responderam pela grande maioria das intoxicações por pesticidas (58,1%). Neste grupo destacaram-se os fungicidas (41,6%) e os herbicidas (29,9%). Segundo o Serviço: As intoxicações ocupacionais (57,8%) e as tentativas de suicídio (19,6%) têm respondido pela maior proporção de casos.


Tais dados transformaram Bento Gonçalves no município com o maior número de casos notificados de intoxicação do estado. Contudo, estimativas da ONU apontam que para cada caso que chega ao conhecimento das autoridades epidemiológicas no mundo todo, pelo menos 50 outros deixam de sê-lo, o que significa que a dimensão do problema pode ser ainda maior.


Entrevistado pelo repórter Caio Cigana do jornal Zero Hora, o ex-agricultor Leodir de Paris, 55 anos, de Bento Gonçalves, afirmou que teve dois acidentes enquanto aplicava fungicidas em parreirais nos ltimos cinco anos. No primeiro, sofreu queimaduras em partes do rosto que estavam desprotegidas e, no segundo, as pernas foram atingidas.


Nesta segunda vez, demorei 90 dias para ficar curado, lembra ele, que diz ter usado equipamentos de proteção individual (EPIs) nas duas oportunidades.


Para técnicos da Embrapa Uva e Vinho entrevistados por Cigana, poucos agricultores usam EPIs de forma adequada por falta de orientação e desconforto. Para completar, aplicam um volume de químicos superior ao necessário com medo de quebra na produção.


Além da perda financeira pelo excesso nas aplicações, aumenta o risco de intoxicação, avalia o supervisor de campos experimentais da Embrapa de Bento Gonçalves, Roque Antônio Zilio.


Cronologia:


Janeiro de 1992: Portaria nº 3 do Ministério da Saúde/MS rebaixa classificação de agrotóxicos.


1996: Estudo realizado em Venâncio Aires/RS aponta possível correlação entre exposição a agrotóxicos organofosforados e altos índices de suicídios entre agricultores.


Fevereiro de 1996: Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul denuncia situação de saúde dos agricultores de Venâncio Aires.


Março de 1996: Denúncias relativas a Venâncio Aires são avaliadas por CPI no Congresso Nacional.


Setembro de 1996: MPF/RS instaura inquérito civil público para investigar denúncias.


2009: Estudo realizado em Bento Gonçalves/RS aponta a ocorrência de intoxicações por agrotóxicos entre trabalhadores rurais de fruticultura.


2011: Projeto de Lei que proíbe uso de Tamaron nas lavouras é aprovado na CCJ da Câmara.


Outubro de 2013: Serviço de Vigilância Epidemiológica da Secretaria Municipal de Saúde de Bento Gonçalves/RS lança relatório sobre as intoxicações por agrotóxicos ocorridas no município entre 1998 e 2012.

Última atualização em: 03 de setembro de 2014

Fontes

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CIGANA, Caio. Uso de agrotóxicos eleva o risco à saúde de trabalhadores rurais. Zero Hora, 23 nov. 2013. Disponível em: http://goo.gl/AD7F1m. Acesso em: 29 ago. 2014.


FALK, João Werner, et al. Suicídio e doença mental em Venâncio Aires – RS: consequência do uso de agrotóxicos organofosforados, março de 1996. Disponível em: http://goo.gl/PCUx2e. Acesso em: 21 jan. 2010.


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FARIA, Neice et al. Estudo transversal sobre saúde mental de agricultores na Serra Gaúcha (Brasil). Revista de Saúde Pública. USP, Vol. 33, nº 4, 1999. Disponível em: http://goo.gl/ZweZdj. Acesso em: 21 jan. 2010.


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PRADO, Leonardo. CCJ proíbe agrotóxico associado a suicídio. MST, 09 ago. 2011. Disponível em: http://goo.gl/HFAUHt. Acesso em: 29 ago. 2014.


ROSA, José Antônio Rodrigues da et al. Bento Gonçalves – Relatório Epidemiológico – Intoxicações Por Pesticidas – Sistema de Informações Sobre Intoxicações – Sinintox. 5ª Revisão. 1998 a 2012. 23 p. Disponível em: <http://goo.gl/ixpGeq>. Acesso: 29 ago. 2014.


SOUZA, Carlos Alberto. CPI investiga relação entre agrotóxicos e suicídio no RS. Folha de São Paulo, 30 mar. 1996. Disponível em: <http://goo.gl/7T4ZHG>. Acesso em: 29 ago. 2014.


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