RJ – Cidade dos Meninos: décadas de contaminação e doença versus o desejo da moradia
UF: RJ
Município Atingido: Duque de Caxias (RJ)
Outros Municípios: Duque de Caxias (RJ)
População: Moradores de aterros e/ou terrenos contaminados, Moradores de bairros atingidos por acidentes ambientais
Atividades Geradoras do Conflito: Agrotóxicos, Atuação de entidades governamentais, Indústria química e petroquímica, Políticas públicas e legislação ambiental
Impactos Socioambientais: Poluição de recurso hídrico, Poluição do solo
Danos à Saúde: Doenças não transmissíveis ou crônicas, Falta de atendimento médico, Piora na qualidade de vida
Síntese
Criada por Darcy Vargas em 1943 como um internato para meninas, a partir da antiga Fazenda São Bento, no município de Duque de Caxias, a Cidade das Meninas não chegou a receber nenhuma interna, mas seu projeto assistencialista, previsto para aliar ensino profissional e moradia, foi preservado quando assumido pela Fundação Abrigo Cristo Redentor, em 1946. Mantendo a base do projeto original, a fundação o transformou em um internato para rapazes, onde os internos teriam educação básica, além de alimentação e moradia garantidas. Além disso, os internos tinham à sua disposição cursos profissionalizantes de padaria, pesca, marcenaria, cestaria, vassouraria, agricultura e criação de animais. Todos os produtos gerados por esses cursos eram revertidos direta ou indiretamente para os próprios internos e contribuíam para a manutenção do internato. Apesar de ser administrada pela Fundação Abrigo Cristo Redentor, a chamada Cidade dos Meninos funcionava em um terreno sob jurisdição do então Ministério da Educação e Saúde.
No final da década de 1940 e início da década de 1950, a baixada fluminense era considerada uma região endêmica de malária e outras doenças tropicais. Então, o Governo Federal, através do Ministério da Educação e Saúde, instala na localidade um grande projeto de produção de pesticidas químicos para o combate aos vetores dessas doenças. A partir da cessão de diversos pavilhões da Cidade dos Meninos, funda em 1949 o Instituto de Malariologia, dedicado ao estudo e desenvolvimento desses produtos. No ano seguinte é inaugurada a Fábrica de Produtos Profiláticos, dedicada à produção de hexaclorociclohexano (HCH), arsenito de cobre, hexaclorobenzeno (BHC), monofluoroaetato de sódio, cianeto de cálcio e diclorodifenil tricloretano (DDT), entre outros.
A instituição educacional e a fábrica de pesticidas funcionariam em conjunto na Cidade dos Meninos até 1961, quando o Ministério da Saúde (MS) fecha a fábrica e transfere parte de suas atividades para o campus de Manguinhos, onde funciona atualmente a FIOCRUZ. Esse fechamento estaria relacionado à inviabilidade econômica de se manter a infraestrutura no local, diante de um cenário de alta dos preços da matéria-prima necessária e da crescente concorrência de empresas paulistas. Contudo, após o fechamento da fábrica não houve o cuidado necessário com a destinação final dos resíduos tóxicos armazenados no local. Tonéis e montes de pesticidas foram abandonados sem qualquer tipo de tratamento ou orientação à população local sobre a periculosidade daquelas substâncias. Assim, alunos, funcionários e colaboradores dos institutos educacionais, ex-funcionários da fábrica e do Instituto de Malariologia e suas famílias acabaram utilizando-as indiscriminadamente e até mesmo vendendo-as nas feiras livres de Duque de Caxias.
Foi somente em fins da década de 1980, através da investigação de denúncias veiculadas na imprensa a respeito do comércio ilegal dos agrotóxicos popularmente conhecidos como “pó-da-broca”, que se verificou que cerca de 40 toneladas do material havia sido abandonado na Cidade dos Meninos. Estima-se que a quantidade inicial do material abandonado tenha sido algo em torno de 300 a 400 toneladas de resíduos tóxicos, especialmente hexaclorociclohexano (HCH) – erroneamente conhecido pelos moradores da localidade como BHC – e diclorodifenil tricloretano (DDT).
Estudos posteriores com a população local verificaram que os moradores da Cidade dos Meninos possuem uma concentração de HCH no plasma sanguíneo até 65% maior do que a de indivíduos dos grupos de controle. Desde então, o caso tem merecido a atenção da imprensa e mobilizado os moradores em torno de uma solução definitiva para a contaminação. Entretanto, o Ministério da Saúde ainda não conseguiu resolver efetivamente o problema. Para vários especialistas, as tentativas de remediação química da área contaminada apenas agravaram o problema, na medida em que a reação de neutralização tentada, realizada por uma empresa contratada pelo MS, apenas gerou compostos ainda mais perigosos, como fenóis e benzenos, e inviabilizou a possibilidade se tentar a biorremediação do solo contaminado.
A proposta de remoção da comunidade e isolamento da área encontra resistência dos moradores, que se veem como privilegiados por morarem em um local relativamente seguro, arborizado e com boa qualidade de vida. Apesar dos altos custos à sua saúde, eles se organizaram em torno da Associação de moradores do bairro a fim de resistir a qualquer proposta de remoção e demandam a titulação de seus imóveis. Sua luta é por acompanhamento médico dos contaminados e por medidas que resultem na descontaminação da área sem que isso signifique ser transferidos para locais distantes dali. Contudo, nem todas essas posições são consensuais entre os moradores.
A Procuradoria Geral da Justiça do Rio de Janeiro (PGE-RJ) tem acompanhado o caso e desde 1990 atua no sentido de evacuar a área. Naquele ano notificou Ministério da Saúde, solicitando que fossem efetuados a evacuação da área foco principal de contaminação e a transferência dos moradores para locais próximos, o monitoramento da população exposta, o isolamento adequado da área, o monitoramento do lençol freático segundo plano da Feema, e a retirada completa do material contaminado e sua incineração. Apesar de um Termo de Ajuste de Conduta e duas ações civis públicas existentes, até hoje, a principal medida concretizada para solucionar o problema foi a determinação judicial, em 1993, da desativação dos internatos outrora existentes no local, com base nas determinações do recém-criado Estatuto da Criança e do Adolescente e dos riscos inerentes á proximidade da área contaminada. Outra medida foi a remoção de algumas famílias que moravam em casas dentro do foco principal da área de contaminação, com a demolição das casa e o aluguel de outros imóveis para viverem
Em 2008, após a criação de vários outros grupos em anos anteriores, foi criado Grupo de Trabalho Interministerial "Cidade dos Meninos", com a finalidade de coordenar as ações do "Plano de Ação Cidade dos Meninos". O GT Interministerial é composto por representantes dos Ministérios da Saúde (MS), das Cidades (MCidades), do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), do Meio Ambiente (MMA), Departamento de Polícia Federal (DPF), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), Advocacia-Geral da União (AGU), Governo do Estado do Rio de Janeiro e Prefeitura de Duque de Caxias (PMDC). Entretanto, o GT não conta com a participação dos representantes dos moradores, o que tem provocado apreensão e angústia na população local, já que as propostas do Governo Federal para indenizar os moradores estabelecem a condição de abrirem mão de qualquer pretensão de posse dos imóveis localizados na área contaminada e a mudança para outros locais.
Contexto Ampliado
Os limites oficiais da chamada Cidade dos Meninos são de aproximadamente 1.900 hectares. Atualmente, a área é considerada imóvel da União, sob responsabilidade do Ministério da Previdência Social; porém, inicialmente, estava ligada ao antigo Ministério da Educação e Saúde. No passado, ela já foi administrada pela Fundação Abrigo Cristo Redentor e, posteriormente, pela Legião Brasileira de Assistência (LBA).
Apesar de ter sido criada em 1943 como um projeto assistencialista voltado para meninas desvalidas, orientado para sua profissionalização e independência financeira (segundo o projeto original, as meninas assistidas pelo projeto obteriam casas na própria Cidade das Meninas, depois de finda a sua profissionalização), essa proposta, progressista para a época, foi abandonada após a transferência da administração do local para a Fundação Abrigo Cristo Redentor, que optou por um projeto voltado exclusivamente para o público masculino, abrigando rapazes pobres de todo o estado em regime de internato.
Além de cursos profissionalizantes de padaria, pesca, marcenaria, cestaria, mecânica e vassouraria, os internos aprendiam noções de cultivo de hortas, pomares, criação de aves, suínos e bovinos; os alimentos cultivados e os animais criados nesses cursos eram posteriormente utilizados na alimentação dos próprios internos.
A Cidade dos Meninos começou a funcionar em 1946. Cerca de três anos depois, a partir de uma requisição do então diretor do antigo Serviço Nacional de Malária, ligado ao Ministério da Educação e Saúde, foi instalado na Cidade dos Meninos o Instituto de Malariologia (ocupando oito pavilhões), a fim de conduzir estudos a respeito do combate à malária e outras doenças tropicais. Naquele mesmo ano, o Ministério da Educação e Saúde analisaria propostas de produção do inseticida conhecido como pó de broca ou hexaclorociclohexano (HCH) no local.
No ano seguinte, uma Fábrica de Produtos Profiláticos foi inaugurada na Cidade dos Meninos, utilizando o benzeno produzido na Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda, como matéria prima do HCH. Além disso, pesquisava-se a produção de outros pesticidas, como o arsenito de cobre e o diclorodifeniltricloretano (DDT).
O fechamento da fábrica, em 1961, não trouxe maior segurança aos moradores da Cidade dos Meninos. Até hoje se discute quanto material tóxico foi abandonado no local com o fechamento da planta de produção naquele ano, mas os relatos de moradores e estudos recentes falam de algo entre 300 e 400 toneladas do produto. Todo esse material ficou à disposição dos moradores sem que houvesse qualquer controle ou orientação quanto aos riscos para a saúde ou ao meio ambiente inerentes à manipulação e uso inadequados do produto.
A partir do fechamento da fábrica e da paulatina transferência das atividades do Instituto de Malariologia para o Instituto Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), teve início uma longa disputa, entre a Fundação Abrigo Cristo Redentor e o Ministério da Saúde, a respeito dos pavilhões recém-desocupados pelo Ministério. A fundação viu na ocasião uma oportunidade de exigir seus prédios de volta, conforme acordado na década de 1940, e o Ministério tencionava manter algumas atividades no local.
Até o início da década de 1990, sequer se sabia dos riscos existentes na localidade. Os antigos moradores da Cidade dos Meninos e os alunos do internato permaneciam seguindo suas vidas sem qualquer tipo de preocupação com o material que jazia nas ruínas da antiga fábrica. Sabendo apenas da utilidade do produto, quando atacados por infestações de insetos, os moradores usavam os pesticidas ali armazenados. Até mesmo pragas de jardim foram combatidas com a substância. Com freqüência, o material era também vendido nas feiras livres de Duque de Caxias, motivo pelo qual a contaminação pode ter-se espalhado para além dos limites da Cidade dos Meninos. Chuvas e a existência de uma estrada que corta o local também agiram como fatores de dispersão do material.
Foi justamente a venda ilegal do chamado pó-de-broca que primeiro chamou a atenção dos jornalistas fluminenses para o problema, e a investigação da origem do produto levou ao depósito na localidade. A veiculação dessas notícias na mídia levou a Defesa Civil e a antiga Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (FEEMA, hoje absorvida pelo Instituto Estadual do Ambiente – INEA) a realizarem uma vistoria no local, onde encontraram pelo menos 40 toneladas do produto, o que corresponderia a algo em torno de 10 a 15% do material originalmente abandonado. Agora cientes dos riscos oriundos do material, os moradores iniciaram algumas mobilizações para reivindicar assistência em relação às possíveis doenças relacionadas à contaminação. Para isso, receberam apoio de Organizações Não-Governamentais (ONGs) ambientalistas.
A demanda por assistência médica veio a se somar à demanda por moradia, que já mobilizava os moradores na ocasião. Basicamente formada por funcionários ou ex-funcionários da Fundação Abrigo Cristo Redentor, a Associação de Moradores e Amigos da Fundação Cristo Redentor já atuava desde meados de 1987 com o intuito de garantir a permanência de antigos moradores no local, ameaçados de despejo pela Fundação devido às suas aposentadorias.
Paralelamente a esse início de publicização do caso de contaminação, o Governo Federal sancionou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que extinguiu a figura do internato e provocou o início do processo de esvaziamento dos institutos educacionais da Cidade dos Meninos.
Quando, em 1993, a juíza da infância e adolescência da Comarca de Duque de Caxias determinou a interdição do internato, a fim de garantir a segurança e a saúde das crianças que ali permaneciam, o local contava com pouco mais de 200 internos. O que significa que a medida teve pouca efetividade, tendo em vista que a maior parte das crianças ameaçadas já não se encontrava mais lá. Essa decisão teve por base estudos realizados em 1991 pela FIOCRUZ no local, que constataram que pessoas residentes num raio de 100 metros da fábrica estariam contaminadas pelo HCH. Não foram encontradas relações com patologias.
Todavia, esses resultados foram suficientes para que, em julho daquele ano, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPE/RJ) ajuizasse uma ação civil pública a fim de obrigar a União a realizar exames para determinação da contaminação por HCH de moradores da Cidade dos Meninos; promover o adequado tratamento de saúde das pessoas contaminadas, executar as etapas pertinentes do Plano de Ação da FIOCRUZ e do Plano de Monitoramento do HCH no solo e na água proposto pela FEEMA, e, finalmente, executar, com a aprovação da Feema, um projeto de tratamento e recuperação da área contaminada. Entretanto, esta ação não teve prosseguimento pelo fato do MPE ter sido considerado sem competência para atuar neste caso na medida em que, sendo o réu a União, seria o Ministério Público Federal (MPF) o responsável para atuar no problema.
Além da interdição das escolas existentes em Cidades dos Meninos pela juíza da infância e adolescência, fato que obrigou os jovens e crianças do lugar a irem para longe para estudar, o ano de 1993 foi marcado por uma tímida tentativa de resolução da questão por parte do poder público. Decidiu-se realizar estudos a respeito da destinação final do produto antes de se remover a substância de seu local de origem. Ao mesmo tempo, uma nova avaliação dos moradores realizada pela FIOCRUZ confirmou contaminação por HCH em pelo menos 24% das amostras de sangue coletadas. No ano seguinte, novos estudos identificariam a extensão da área contaminada: as mais atingidas seriam aquelas próximas à antiga fábrica e à estrada que corta a localidade, o que sinalizava para a necessidade urgente de se realizar a remediação do material e de se evitar a expansão da contaminação.
Cada vez mais pressionado a dar uma solução definitiva ao problema, em 1995, o Ministério da Saúde optou por uma estratégia que se revelaria problemática no futuro. Através de um convênio com a emprea NortoxAgoindústria do Paraná, foi administrada uma solução de hidrato de carbono (cal) a fim de provocar uma reação de neutralização no material contaminado. Segundo a empresa, a operação teria tido sucesso em reduzir a concentração de isômeros de HCH na terra contaminada. Contudo, estudos posteriores comprovaram que, na verdade, a operação se revelou inócua e, além disso, resultou em formação de novos compostos ainda mais tóxicos e na sua migração, atingindo as águas subterrâneas. Com a mistura solo-cal-HCH, a área do foco principal de contaminação pode ter sido ampliada para cerca de 38.000 m², gerando uma massa de material contaminado de cerca de 29.700t, contendo também dioxinas e fenóis, compostos considerados cancerígenos. Em 1999, parte desse material foi transferida para a Refinaria de Duque de Caxias (REDUC).
Dois anos depois, seria a vez de dez famílias serem retiradas do local. O Ministério da Saúde iniciou ações para viabilizar a remoção das 400 famílias restantes. Sem conseguir resolver o problema in loco, os técnicos do Ministério optaram por mudá-lo de local, tendo em vista que essa política não resolveria o problema. Remover as famílias servia mais para enfraquecer sua organização e resistência do que para melhorar as condições de vida daqueles que já estavam contaminados e careciam de assistência médica.
Entre 2002 e 2004, sucessivos estudos identificaram os principais focos de contaminação e realizaram o diagnóstico ambiental de todo o terreno, ao mesmo tempo em que a FIOCRUZ iniciava a coleta de sangue das famílias residentes para acompanhamento da contaminação através de exames sorológicos.
Ainda em 2004, o Governo Federal propôs o Projeto de Lei 3034/2004, que autorizava a União a conceder indenização por danos morais e materiais aos ocupantes de imóveis residenciais a ela pertencentes na “Cidade dos Meninos” e que tinham sido expostos a compostos organoclorados. Segundo o projeto, cada família receberia indenização em dinheiro no valor mínimo de R$ 50.000,00 e ficaria obrigada a desocupar os imóveis e à assinatura de termo de transação no qual os ocupantes renunciariam a qualquer direito ou ação relativa à exposição ao referido risco ambiental. Na prática, significava que as famílias perderiam seus imóveis e teriam de se reestruturar em outro lugar com a quantia recebida. Além disso, perderiam o direito a exigir judicialmente a assistência necessária e até hoje não prestada – ou prestada de modo precário – aos contaminados.
Esse projeto encontrou resistência entre os moradores, que se recusam a sair do local, se mobilizando e atuando no sentido de impedir a aprovação do projeto na Câmara e no Senado Federal. Tentaram sensibilizar o Legislativo a recusar o projeto e pediram apoio para pressionar o Executivo a arcar com as consequências dos atos de suas instituições e da posterior inoperância quanto à solução do problema, que persiste até os dias atuais.
Diante da perspectiva de remoção dos moradores e posterior descontaminação da área, o poder público municipal e estadual já cogitam projetos para ocupar o vazio populacional que será formado se a proposta do Governo Federal for levada a cabo. Obviamente, esses projetos não consideram a permanência dos moradores, de modo que sequer foram discutidos com os mesmos. Isto tem gerado um grande mal estar entre a população do local que, após décadas de convivência com um risco químico que não gerou, pode ser obrigada a ver o lugar que aprendeu a chamar de lar sendo ocupado por outras pessoas e projetos.
Durante a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (CNUDS), conhecida como Rio+20, ativistas de organizações de combate às injustiças ambientais e contaminações químicas lançaram um evento – Rio+Tóxico – ao qual levaram participantes de diversas origens para conhecer casos emblemáticos de contaminação química no Estado do Rio de Janeiro. Entre os locais visitados pelo grupo, estavam Santa Cruz (principalmente no entorno da TKCSA), o entorno da Refinaria Duque de Caxias (REDUC), o Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho e a Cidade dos Meninos. O objetivo do evento era chamar atenção para o descaso com a saúde da população atingida por graves episódios de contaminação no Estado ao longo dos últimos 50 anos.
Em decorrência do evento, o caso da Cidade dos Meninos voltou à pauta da imprensa nacional. Em 17 de junho de 2012, o repórter Hanrrikson de Andrade esteve no local para conversar com os moradores e mostrou os problemas de saúde ainda enfrentados pela população local.
Entrevistada por Andrade, a aposentada Lourdes da Silva, 79 anos, que vive na região há 58 anos, afirmou: É duro chegar aos 61 anos com um alto nível de HCH no sangue. E o mais duro é chegar num hospital público e não encontrar um médico que possa me atender. (…) Minha tristeza não é apenas pela minha condição, e sim pelos meus filhos e netos que também estão contaminados. Ouvimos várias vezes o pessoal do Ministério da Saúde dizer que seria mais barato tirar o povo daqui do que ter o trabalho de descontaminar a região.
Havelino da Silva, morador do local, disse na ocasião ao portal G1 que: A gente vive em um permanente estado de incerteza. Não sabemos direito até que ponto isso afeta a nossa vida.
A Associação de Moradores da Cidade dos Meninos aproveitou o momento para divulgar que, desde a década de 1960, pelo menos 50 pessoas já morreram em função de complicações causadas pelo HCH e DDT.
Questionado, o prefeito de Duque de Caxias José Camilo Zito afirmou que a prefeitura estava negociando a transferência da área da União para o município. A partir de então, a proposta seria a transferência dos moradores para outra área e a posterior descontaminação do local. Ou seja, passados oito anos, os planos do poder público para os moradores contaminados da Cidade dos Meninos permaneciam os mesmos.
Com o início de um loteamento irregular de uma área conhecida como Sítio Santa Izabel, cerca de 550 famílias passaram a construir novas casas no local. Este aumento na população local foi fortemente combatido pela Prefeitura que, em maio de 2013, iniciou a demolição de todas as novas casas construídas no local e a transferência dessas famílias para um conjunto habitacional localizado no bairro Nossa Senhora do Carmo.
Cronologia:
1943: Darcy Vargas transforma 19,4 km² da antiga Fazenda São Bento em internato para meninas. Tem início a chamada Cidade das Meninas.
1946: A Cidade das Meninas é transferida para a Fundação Abrigo Cristo Redentor, que a transforma em um internato para rapazes. São construídos novos pavilhões com cursos e moradia. Área passa a abrigar quatro institutos educacionais para internos e duas escolas públicas (municipal e estadual, abertas a todas as crianças da região). São ministrados, além dos cursos regulares, cursos profissionalizantes de padaria, pesca, marcenaria, cestaria, vassouraria, além do cultivo de hortas e criação de animais no local, tanto para consumo dos internos, quanto para seu aprendizado.
1949: Ministério da Educação e Saúde instala Instituto de Malariologia na área; oito pavilhões da Cidade dos Meninos são transformados em instalações do Instituto.
1950: Ministério da Educação e Saúde inaugura a chamada Fábrica de Produtos Profiláticos na Cidade dos Meninos. Fábrica inicia produção de Hexaclorociclohexano (HCH), arsenito de cobre, hexaclorobenzeno (BHC), monofluoroaetato de sódio, cianeto de cálcio e Diclorodifenil tricloretano (DDT).
1961: Ministério da Saúde (MS) fecha fábrica de pesticidas na instituição conhecida como Cidade dos Meninos e abandona cerca de 300 a 400 toneladas de compostos tóxicos organoclorados, especialmente Hexaclorociclohexano (HCH) e Diclorodifenil tricloretano (DDT), sem qualquer tipo de proteção. Inicia-se a contaminação da população do entorno.
1962: Ministério da Saúde inicia devolução dos pavilhões ocupados pela Fábrica de Produtos Profiláticos à Fundação Abrigo Cristo Redentor. Produção realizada no local é transferda para o Instituto de Maguinhos, no Rio de Janeiro.
1989: Fiscalização para descobrir origem de pó-de-broca vendido livremente em feiras populares de Duque de Caxias encontra cerca de 40 toneladas de material abandonado na Cidade dos Meninos.
Março de 1990: Procuradoria Geral da Justiça do Rio de Janeiro (PGE-RJ) instaura inquérito e solicita providências para evacuação da área do foco principal na Cidade dos Meninos.
Abril de 1990: PGE-RJ notifica Ministério da Saúde solicitando que sejam efetuadas a evacuação da área do foco principal de contaminação e a transferência dos moradores para locais próximos; o monitoramento da população exposta; o isolamento adequado da área; o monitoramento do lençol freático segundo plano da Feema e a retirada completa do material contaminado e sua incineração.
Julho de 1990: Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) extingue os internatos. Internos da Cidade dos Meninos começam a ser encaminhados para outras instituições e para suas famílias.
18 de julho de 1990: Centro de Estudos de Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (CESTEH/Fiocruz), a pedido do Ministério da Saúde, encaminha a PGE-RJ um plano para avaliação de contaminação da área, contenção de riscos e manejo da contaminação.
1991: Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) apresenta relatório sobre estudos clínico-laboratoriais realizados em 43 adultos e quatro crianças residentes em um raio de 100 metros do local da fábrica, sendo encontrado no sangue dos amostrados níveis 65% superiores à concentração do HCH presente no grupo controle (indivíduos não expostos), porém sem correlação com patologias.
Julho de 1991: Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) propõe ação civil pública a fim de obrigar a União a realizar exames para determinação da contaminação por HCH de moradores da Cidade dos Meninos; promover o adequado tratamento de saúde das pessoas contaminadas; executar as etapas pertinentes do Plano de Ação da Fiocruz e do Plano de Monitoramento do HCH no solo e na água proposto pela FEEMA e, finalmente, executar, com a aprovação da Feema, um projeto de tratamento e recuperação da área contaminada.
1993: Maria Luiza Miguel, Juíza da Infância e Adolescência da Comarca de Duque de Caxias, interdita o abrigo remanescente da Cidade dos Meninos, sob alegação de risco à saúde dos internos devido à exposição ao material tóxico. No processo, as escolas públicas do local também são fechadas.
29 de janeiro de 1993: Em reunião, que contou com a participação de representantes do IBAMA, Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), Legião Brasileira de Assistência (LBA), Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária, Prefeitura Municipal de Duque de Caxias (pmdc) e FEEMA, decidiu-se que a retirada do HCH deveria ser precedida de estudo sobre o destino final do produto – incineração ou aterro controlado -, e sobre a delimitação da área contaminada, bem como o monitoramento das operações pela FEEMA.
Julho de 1993: CESTEH/Fiocruz divulga resultado de exames realizados com internos da Cidade dos Meninos. Cerca de 20% das amostras apresenta presença de HCH no sangue.
08 de setembro de 1993: Ministério Público Federal (MPF), Ministério da Saúde (MS), Ministério do Meio Ambiente (MMA), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente do Estado do Rio de Janeiro (FEEMA), Legião Brasileira de Assistência (LBA), Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e a Prefeitura de Duque de Caxias (PMDC) firmam Termo de Compromisso de Ajustamento de Condutas e de Obrigações.
1994: Estudos realizados por técnicos ligados à FIOCRUZ constatam extensão da área contaminada por HCH na Cidade dos Meninos. Segundo o estudo, as áreas críticas em contaminação são as proximidades da antiga fábrica, a estrada que atravessa a região e uma área de pasto.
Abril de 1994: MPF entra com ação civil pública contra a União exigindo a imediata interdição da unidade Cidade dos Meninos; a imediata transferência de todas as crianças e adolescentes ali abrigados; a realização de exames médicos para apuração do grau de contaminação de cada menor e o repasse mensal de verba correspondente à manutenção das crianças e adolescentes transferidos e, definitivamente, a citação da ré, a prestação de atendimento médico e indenização, inclusive por danos morais, pela União, às crianças e adolescentes vítimas de contaminação.
1995: A serviço do Ministério da Saúde, a NortoxAgoindústria do Paraná utiliza hidrato de carbono para neutralizar resíduos tóxicos existentes na área. Estudos posteriores comprovam que esta medida apenas agrava a contaminação e impede o uso de biorremediação para combater o problema. Reação entre os compostos pode ter gerado dioxinas e fenóis, substâncias cancerígenas.
1996: Concluída a desativação das atividades da Fundação Abrigo Cristo Redentor no local e remoção dos internos.
1999: Cerca de 40 toneladas do material tóxico existente na Cidade dos Meninos são transferidas para a Refinaria de Duque de Caxias (REDUC).
2001. Cerca de 10 famílias residentes nas proximidades das áreas mais contaminadas são transferidas para outras localidades. Relatório do Ministério da Saúde recomenda a remoção das cerca de 400 famílias restantes na área.
2002: Ministério da Saúde conclui estudos de análise de risco; no mesmo ano, a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB) identifica os focos principais e secundários de contaminação.
2003: Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) inicia coleta de sangue de moradores da Cidade dos Meninos a fim de avaliar a extensão da contaminação na população local.
2004: Ministério da Saúde conclui diagnóstico ambiental de todo o terreno.
02 de março de 2004: Governo Federal propõe o Projeto de Lei 3034/2004, que autoriza a União a conceder indenização por danos morais e materiais aos ocupantes de imóveis residenciais a ela pertencentes que tenham sido expostos a compostos organoclorados. Cada família receberia indenização em dinheiro no valor mínimo de R$ 50.000,00 e ficaria obrigada a desocupar os imóveis e à assinatura de termo de transação no qual os ocupantes renunciariam a qualquer direito ou ação relativa à exposição ao referido risco ambiental.
19 de dezembro de 2005: FIOCRUZ entrega exames laboratoriais que atestam contaminação da população da comunidade do bairro Cidade dos Meninos, em Duque de Caxias, por organoclorados. Os resultados mostram níveis diferenciados de contaminação por Hexaclorociclohexano (HCH) e Diclorodifenil tricloretano (DDT).
01 de agosto de 2008: Através da Portaria Interministerial 1.557, Ministério da Saúde cria o Grupo de Trabalho Interministerial “Cidade dos Meninos” com a finalidade de coordenar as ações do “Plano de Ação Cidade dos Meninos”. GT Interministerial é composto por representantes dos Ministérios da Saúde (MS), das Cidades (MCidades), do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), do Meio Ambiente (MMA), Departamento de Polícia Federal (DPF), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), Advocacia-Geral da União (AGU), Governo do Estado do Rio de Janeiro e Prefeitura de Duque de Caxias (PMDC). Representantes da população da Cidade dos Meninos poderiam ser convidados a participar a critério do GTI, mas inicialmente não fazem parte do mesmo.
Junho de 2012: Movimentos sociais realizam visita à Cidade dos Meninos. Prefeitura de Duque de Caxias propõe novamente remoção como solução para o problema.
Maio de 2013: Prefeitura inicia derrubada de casas em loteamento irregular surgido dentro da Cidade dos Meninos.
Última atualização em: 26 de junho de 2013
Fontes
ANDRADE, Hanrrikson. À margem da Rio+20, “Cidade dos Meninos” tem mais de 90% de moradores contaminados por pesticida. UOL, 17 jun. 2012. Disponível em: http://goo.gl/wMK7Y. Acesso em: 31 maio 2013.
ASSOCIAÇÃO DE MORADORES E AMIGOS DA CIDADE DOS MENINOS (AMACM). A comunidade de Cidade dos Meninos (RJ) precisa de ajuda. (E-mail recebido em 28 jun. 2009).
BARBOSA, Viviane. Perigo sob os pés: 4 casos trágicos de contaminação de solo. Exame, 18/10/2011 apud Combate ao Racismo Ambiental. Disponível em: http://goo.gl/CtL7D. Acesso em: 31 maio 2013.
BRASIL Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Atuação do Ministério da Saúde no caso de contaminação ambiental por pesticidas organoclorados, na Cidade dos Meninos, município de Duque de Caxias, RJ. Brasília: Ministério da Saúde, 2002. 60 p. ilus, tab. (Série I. História da Saúde no Brasil). Disponível em: http://goo.gl/ivA4n. Acesso em: 29 set. 2009.
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DURANTE a Rio+20, sociedade civil organiza visita a empreendimentos tóxicos no Rio de Janeiro. Rio Tóxico, 08 jun. 2012. Disponível em: http://goo.gl/0ld88. Acesso em: 31 maio 2013.
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