PR – Quilombolas da Invernada do Paiol de Telha: há mais de cem anos lutando por suas terras

UF: PR

Município Atingido: Três Barras do Paraná (PR)

Outros Municípios: Agudos do Sul (PR), Antônio Olinto (PR), Boa Ventura de São Roque (PR), Capanema (PR), Cruz Machado (PR), Dois Vizinhos (PR), Guamiranga (PR), Imbituva (PR), Ipiranga (PR), Irati (PR), Ivaí (PR), Lapa (PR), Mallet (PR), Mandirituba (PR), Palmeira (PR), Paula Freitas (PR), Paulo Frontin (PR), Piên (PR), Planalto (PR), Prudentópolis (PR), Quitandinha (PR), Rebouças (PR), Reserva do Iguaçu (PR), Rio Azul (PR), Salto do Lontra (PR), São Mateus do Sul (PR), Teixeira Soares (PR), Tijucas do Sul (PR), Três Barras do Paraná (PR)

População: Quilombolas

Atividades Geradoras do Conflito: Monoculturas

Impactos Socioambientais: Alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território

Danos à Saúde: Piora na qualidade de vida, Violência – coação física, Violência – lesão corporal

Síntese

Invernada do Paiol de Telha ou Fundão é uma área de 3600 alqueires (aproximadamente 8.700 hectares) localizada no atual município de Reserva do Iguaçu, próximo a Guarapuava, no Centro-Sul paranaense. Seus legítimos herdeiros, os descendentes dos ex-escravos da Senhora Balbina Francisca de Siqueira, enfrentam desde 1866 (ano no qual seus antepassados herdaram a posse da área) um contínuo processo de fraudes e expropriações que terminaram por expulsá-los de suas terras.


Hoje, espalhados por todo o país, mas principalmente pela periferia de Reserva do Iguaçu, Pinhão e Guarapuava, lutam pela retomada de suas terras, que desde 1975 estão sob a posse da atual Cooperativa Agrária Agroindustrial (que também já foi chamada de Cooperativa Agrária Mista Entre Rios ou Cooperativa Central Agrária Ltda).


Derrotados na justiça comum em 1991, os membros da antiga Comunidade do Fundão (ou Invernada do Paiol de Telha) têm levado adiante -com o apóio de entidades como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), Fundação Cultural Palmares (FCP), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), entre outras – um processo administrativo junto ao governo federal na tentativa de lograr o reconhecimento de sua ocupação tradicional do território e a demarcação coletiva das terras como remanescente de quilombos.


O primeiro passo desse processo foi alcançado em 2005, quando a FCP emitiu a Certidão de Auto Reconhecimento da comunidade, legitimando a demanda pelas terras. Por esse motivo eles também têm enfrentado novas batalhas judiciais contra a Cooperativa, que tenta através da justiça suspender o processo de identificação e demarcação. Desde então o processo se arrasta entre a burocracia do Governo Federal e os meandros da Justiça.

Contexto Ampliado

Descendentes diretos de oito ex-escravos da proprietária de terras Dona Balbina Francisca de Siqueira, os atuais membros da comunidade Invernada do Paiol de Telha (ou Fundão) lutam para recuperar as terras que desde 1866 foram sendo paulatinamente expropriada por terceiros. Dispersos por Guarapuava, Pinhão e Reserva do Iguaçu, esses descendentes dos herdeiros de uma propriedade rural de cerca de 3600 alqueires, tentam, através da justiça e do reconhecimento de sua identidade étnica diferenciada, retomar o legado que lhes foi negado pelas sucessivas fraudes e engodos dos quais seus avós e bisavós foram vítimas.


O processo de expropriação dos ex-escravos começou já em 1866, quando os demais herdeiros (Pedro Lustosa da Siqueira e Joaquim José Dangui) do inventário de dona Balbina Siqueira, desrespeitando os desejos da proprietária, anexaram ilegalmente às suas terras cerca de 2.300 alqueires dos 3.600 deixados de herança para os alforriados. Com isso, restou para eles e suas famílias cerca de 1250 alqueires. Vivendo numa sociedade escravista (a abolição só ocorreria 22 anos depois), em que os direitos dos negros, mesmo alforriados, pouco valia, eles viram parte de seu legado lhes ser negado.


Já no século XX, na década de 1940, seus descendentes tentaram reaver as terras que lhes foram roubadas por ocasião da partilha, acreditando que conseguiriam, na nova ordem instituída pelo Estado Novo, lograr o reconhecimento de seus direitos. Mais uma vez isso lhes foi negado. O processo que moveram foi arquivado sem haver decisão favorável nem aos descendentes dos escravos nem aos descendentes dos outros dois herdeiros, os quais, entretanto, permaneceram na posse das terras. Aparentemente a Justiça da época considerou que a questão não merecia ser apreciada.


No ano de comemoração de 100 anos do legado (e do engodo que sofreram) os descendentes dos ex-escravos fundaram a Associação Heleodoro Reintegração Paiol de Telha, criada para articular os descendentes dos herdeiros ainda vivos na questão da recuperação das terras griladas. Mas o que se viu no ano seguinte foi o inverso da proposta e o início do fim das comunidades então existentes. A partir de 1967, um novo processo de expropriação, dessa vez muito mais sutil, teve início. E prosseguiria até 1975, quando finalmente todos os antigos herdeiros dos ex-escravos de Dona Balbina estariam fora das terras legadas e sem a posse de seus direitos sobre o território.


Esse processo teve início com a ação do senhor João Trinco Ribeiro. Segundo relatos dos membros da comunidade, eles teriam sido enganados por esse senhor, que, convencendo-os de que trataria da regularização da área e a divisão do território (então ocupado coletivamente por todas as famílias) conseguiu que 28 herdeiros cedessem e transferissem a dois cessionários todos os direitos que possuíam sobre a Invernada. Tal cessão foi lavrada em Escritura Pública de Cessão e Transferência de Direitos Hereditários em 17 de agosto de 1967.


Em 1º de outubro de 1974, numa outra escritura pública, João Trinco Ribeiro transferiu para o então delegado local, Oscar Pacheco dos Santos, os direitos adquiridos, passando a ele as terras adquiridas dos 28 descendentes dos escravos herdeiros. No mesmo ano o delegado revendeu para a então Cooperativa Central Agrária Ltda todos os direitos sobre as terras. Posse que a Cooperativa mantêm até os dias atuais.


Por convencimento ou pela força, o Delegado Oscar dos Santos conseguiu também transferir os direitos possessórios dos demais herdeiros para a Cooperativa, que em 1975 se viu dona de todo os territórios herdados pelos descendentes dos escravos alforriados da dona Balbina.


Em 1981, a agora Cooperativa Agrária Mista Entre Rios deu entrada na Justiça Estadual de uma ação de usucapião, para a regularização definitiva da posse de suas terras. Essa ação foi contestada pelo Estado do Paraná e por indivíduos que alegavam propriedade de parcelas da área em questão. Em 1991, o processo foi julgado definitivamente, declarando a Cooperativa proprietária da Invernada Paiol de Telha. É importante destacar que em nenhum momento, durante os dez anos em que o processo tramitou na justiça, os legítimos herdeiros das terras foram sequer ouvidos.


Apoiados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), os descendentes dos ex-escravos entraram com uma representação na Procuradoria Geral da República no Paraná. Contudo a ação não teve prosseguimento, julgando a Procuradoria que as vias legais haviam sido esgotadas, bem como o prazo para a ação decisória.


Esgotadas as possibilidades de retomar as terras expropriadas pela via judicial, as famílias da comunidade Invernada retornaram ao local em julho de 1997. Reunidos à beira da estrada (barranco) que circunda as terras herdadas, o grupo, ?nos quase dois anos que ali permaneceu, só fez crescer?. Segundo relato de Nédier Muller, ?A reação a este ato de resistência não tardou e foi além de um simples pedido de reintegração de posse. Numa distância de 50 metros da primeira barraca dos descendentes dos escravos a Cooperativa instalou um posto de observação permanente onde pistoleiros se revezavam?.


As ações desses pistoleiros não se resumiam à simples vigilância. Segundo a mesma autora, esse período de ocupação foi marcado pela violência: ?as famílias eram acordadas no meio da noite por rajadas de tiro, as mulheres ameaçadas e molestadas ao irem buscar água num córrego próximo, muitos, até crianças, foram parar num posto de saúde com suspeita de envenenamento (o posto de saúde recusou-se a atestar por escrito este diagnóstico), os acampados foram proibidos de plantar nas capoeiras, sofreram atentados contra as suas vidas e eram chamados à delegacia local numa atitude de intimidação?.


Como é possível verificar, a Cooperativa não contava apenas com os serviços de milícias armadas ilegais, bem como com o apoio e a conivência dos órgãos oficiais, teoricamente, encarregados da saúde e da segurança da população. Em mais de 100 anos de conflito, as ações das autoridades pouco diferem das ações de seus antepassados. A mudança de um estado escravocrata ou autoritário para um estado democrático de direito pouco influenciou na atitude dessas autoridades para com a comunidade, numa clara demonstração do racismo institucional ainda possível de ser verificado nas ações de diversas instituições do Estado brasileiro, em seus diversos níveis de governo.


O revés sofrido pelas famílias acampadas não significou o fim da luta pela retomada das terras. Apesar da falta de apoio oficial a nível municipal e estadual, as famílias conseguiram angariar a cooperação de entidades ligadas às sociedade civil organizada e às universidades do estado. Em dezembro de 1998, o Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações Interétnicas ? NUER (UFSC), a CPT e outras entidades entraram com uma representação junto à 6ª Câmara da Procuradoria Geral da República, que deu origem à um Procedimento Administrativo no Ministério Público Federal. Além disso, conseguiram que no mesmo ano o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) deslocasse as famílias acampadas nas cercas da Invernada para uma área prevista para efeitos da reforma agrária. A rigor, essa é uma situação provisória e que não soluciona o conflito, mas serve ao menos como forma de alternativa à situação anterior, que estava se tornando insustentável para os acampados.


Todo esse apoio e as campanhas e ações decorrentes do mesmo ainda não redundaram na recuperação do território perdido, porém foram fundamentais para que o Estado Brasileiro, através da Fundação Cultural Palmares (FCP), reconhecesse a legitimidade da demanda e da identidade étnica do grupo. Em 28 de setembro de 2005, no auditório da Universidade Estadual do Centro Oeste ? UNICENTRO aconteceu o ato de entrega da Certidão de Auto Reconhecimento à comunidade Invernada do Paiol de Telha. A solenidade, acompanhada por aproximadamente 700 pessoas, contou com uma grande presença dos negros herdeiros, representantes das entidades que apóiam a luta da comunidade negra, do poder público e da cidade de Guarapuava.


Esse ato pode ser caracterizado como um ponto de inflexão no conflito, pois, pela primeira vez nos mais de 100 anos de luta pelas suas terras, o Estado brasileiro reconhecia a comunidade. Alem do efeito simbólico desse ato, há ainda o caráter prático da Certidão de Auto Reconhecimento, pois ela significa um primeiro passo na recuperação do território perdido. A partir do momento em que a FCP reconhece uma comunidade como descendente ou remanescente de quilombos, ela pode pleitear junto ao INCRA a demarcação de seu território tradicional.


Cabe salientar que a aquisição desta certidão não foi considerada importante apenas pelos membros daquela comunidade, mas de todas as comunidades remanescentes de quilombos do Paraná, tendo em vista que até aquele momento nenhuma delas havia logrado o reconhecimento oficial de sua identidade étnica e permaneciam lutando por seus territórios tradicionais, constantemente ameaçados pelo agronegócio e pela expansão de outros empreendimentos capitalistas.


O reconhecimento por parte do governo federal da identidade e legitimidade das demandas dos membros da comunidade fortaleceu sua luta também a nível estadual. Em 23 de novembro de 2006, o Secretário Especial para Assuntos Estratégicos, Nizan Pereira, recebeu representantes da comunidade quilombola Paiol de Telha, de Guarapuava, Pinhão e Reserva do Iguaçu, e prometeu ajuda na questão fundiária, o que representou um avanço, tendo em vista o histórico do conflito. Na ocasião também foi divulgado que o INCRA iniciaria em janeiro do ano seguinte a elaboração de um laudo para determinar a área a ser demarcada para a comunidade.


Em reação a esse processo de reconhecimento oficial e de início dos estudos para o atendimento das demandas da comunidade, agora reconhecida como descendente de quilombos, os proprietários da Cooperativa Agrária Agroindustrial e diversas pessoas físicas ingressam no dia 7 de janeiro de 2008, na Justiça Federal, com a ação ordinária n.º 2008.70.00.000158-3, contra o INCRA, requerendo que o procedimento de titulação n.º 54.200.001727/2005-08 fosse encerrado. No dia 21 de fevereiro o pedido de antecipação da tutela formulado pelos autores foi deferido pelo juiz de 1º grau, Paulo Cristóvão de Araújo Silva Filho.


Essa ação deu início a uma batalha judicial, pois em 26 de março de 2008 o INCRA entrou no Tribunal Regional Federal ? 4ª Região com o Agravo de Instrumento n.º 2008.04.00.010160-5, visando cassar a decisão de antecipação da tutela proferida pelo juiz de primeira instância na ação ordinária. O Agravo foi julgado em 18 de abril de 2008, pela Desembargadora Federal Maria Lúcia Luz Leiria, que deferiu a antecipação da tutela em favor do INCRA, determinando a cassação da decisão anterior, no tocante às alegações de inconstitucionalidade do Decreto nº 4.887/2003 e da IN INCRA nº 20/2005, e a retomada do procedimento administrativo n.º 54.200.001727/2005-08 de titulação da área.


Na ocasião, a desembargadora discorreu acerca dos fundamentos pluriculturais do constitucionalismo moderno, das recomendações e manifestações de comitês internacionais acerca dos direitos quilombolas, do entendimento atual de comunidades remanescentes de quilombos, da legalidade da realização da desapropriação para titulação de terras quilombolas, do critério da auto-atribuição, da aplicabilidade da Convenção 169/OIT e da constitucionalidade do Decreto n.º 4.887/2003. Além disso, a magistrada salientou que comitês internacionais (como o de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o para a Eliminação da Discriminação Racial) recomendam, em relatórios relativos ao Brasil, a adoção de procedimentos para a efetiva titulação das comunidades quilombolas. E lembrou que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos realizou, em 2007, audiência para discutir a questão dos quilombolas. Na ocasião, foram narrados problemas relacionados à falta de identificação oficial e registro por parte do Estado brasileiro, à demora e ineficácia para a concessão da titularidade das terras e à carência de políticas públicas eficientes destinadas a tais comunidades.


Toda a fundamentação da decisão da desembargadora foi corroborada pela 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), que no dia 1º de julho confirmou a decisão da relatora. No dia 30 do mesmo mês a decisão foi publicada no Diário Eletrônico da Justiça Federal da 4ª Região. Isso permitiu o prosseguimento do procedimento administrativo no INCRA.


É importante ressaltar que isso não significou ainda a demarcação das terras, pois até o momento esse processo se encontra em fase de elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). A elaboração deste relatório é um passo fundamental para a determinação da extensão da área a ser demarcada, porém a demora na elaboração dos mesmos só beneficia os atuais detentores das terras e prolonga ainda mais um conflito que se desenrola há mais de cem anos.

Última atualização em: 06 de dezembro de 2009

Fontes

AGÊNCIA ESTADUAL DE NOTÍCIAS DO PARANÁ. Governo reafirma compromisso com comunidades negras. Disponível em: http://www.agenciadenoticias.pr.gov.br/modules/news/article.php?storyid=24541. Acesso em: 16 jan. 2009.


BEM PARANÁ. Justiça reconhece quilombola no interior o Paraná. Disponível em: http://www.agenciadenoticias.pr.gov.br/modules/news/article.php?storyid=24541. Acesso em: 16 jan. 2009.


____________. Justiça mantém procedimento para demarcação de área quilombola no PR. . Disponível em: http://www.bemparana.com.br/index.php?n=76399&t=justica-mantem-procedimento-para-demarcacao-de-area-quilombola-no-pr. Acesso em: 16 jan. 2009.


COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Comunidade da Invernada do Paiol de Telha é o primeiro grupo reconhecido como quilombola no Paraná. Disponível em: http://www.cedefes.org.br/new/index.php?conteudo=materias/index&secao=3&tema=31&materia=1503. Acesso em: 16 jan. 2009.


____________. Os herdeiros de dona Balbina são reconhecidos. . Disponível em: http://www.cpt.org.br/?system=news&action=read&id=304&eid=128. Acesso em: 16 jan. 2009.


COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO. Comunidade Inverndada Paiol de Telha. Disponível em: http://cpisp.org.br/acoes/html/juris_paiol_telha.html. Acesso em: 16 jan. 2009.


CRUZ, Cassius Marcelus. e SALLES, Jefferson de Oliveira. Quilombos e conflitos socioambientais no Paraná. Disponível em: http://www.justicaambiental.org.br/_justicaambiental/pagina.php?id=1760. Acesso em: 16 jan. 2009.


OBSERVATÓRIO QUILOMBOLA. Comunidade de Paiol da Telha consegue sua segunda vitória na justiça. Disponível em: http://www.koinonia.org.br/oq/noticias_detalhes.asp?cod_noticia=4674&tit=Not%EDcias. Acesso em: 16 jan. 2009.


SINDICATO DOS TRABALHADORES DA EDUCAÇÃO DO PARANÁ. A luta dos negros da Invernada Paiol de Telha. Disponível em: http://www.app.com.br/portalapp/noticia_conteudo.php?id=203. Acesso em: 16 jan. 2009.

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