MT – Desestruturação social e comprometimento da reprodução de peixes por hidrelétrica de Manso
UF: MT
Município Atingido: Várzea Grande (MT)
Outros Municípios: Barão de Melgaço (MT), Chapada dos Guimarães (MT), Cuiabá (MT), Nobres (MT), Nova Brasilândia (MT), Rosário Oeste (MT), Santo Antônio do Leverger (MT), Várzea Grande (MT)
População: Agricultores familiares, Pescadores artesanais
Atividades Geradoras do Conflito: Atuação de entidades governamentais, Barragens e hidrelétricas
Impactos Socioambientais: Alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território, Falta / irregularidade na autorização ou licenciamento ambiental
Danos à Saúde: Desnutrição, Falta de atendimento médico, Insegurança alimentar, Piora na qualidade de vida
Síntese
Instalada em meados da década de 1990 no município de Chapada dos Guimarães, a Usina Hidrelétrica (UHE) de Manso possui capacidade para gerar cerca de 210 MW de energia elétrica. Iniciada como um empreendimento da estatal Furnas Centrais Elétricas (Furnas), é atualmente gerida por uma parceria entre a estatal (70%) e empresas privadas (30%), representadas pela empresa Produtores Energéticos de Manso S/A (Proman). Seu reservatório ocupa uma área de aproximadamente 47 mil hectares, cujo enchimento atingiu principalmente grupos populacionais que residiam ao longo dos rios Quilombo, Casca e Manso desde meados do século XIX. Pequenos agricultores, pescadores, garimpeiros e extrativistas se viram, de uma hora para outra, alijados de seus territórios tradicionais, base material de todo seu modo de vida e condição para sua reprodução física e social. A instalação da UHE Manso destruiu parte significativa dos ecossistemas locais e provocou enormes impactos sobre a as populações da região.
Em julho de 2000, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema) autuou Furnas por irregularidades no licenciamento ambiental da UHE Manso. Na mesma ocasião foi firmado Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre a Sema e Furnas, com a participação do Ministério Público.
Segundo levantamento realizado pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), parte significativa das famílias atingidas não foi indenizada ou devidamente compensada pelas perdas sofridas com o início das operações da usina. Das cerca de 1.070 famílias atingidas pelo empreendimento, pouco mais de 400 foram indenizadas. Mesmo essas famílias foram muito impactadas em seus modos de vida, tendo em vista que aquelas que optaram por não serem transferidas para casas nas periferias das cidades foram assentadas em terrenos inadequados à agricultura de subsistência a que estavam habituadas. Além disso, o assentamento não observou critérios de parentesco, vizinhança ou contiguidade característica da pregressa inserção das famílias assentadas nas suas terras originais. Isto levou a que famílias e comunidades inteiras se vissem separadas, e completamente desfeitos os laços de amizade ou solidariedade que as uniam.
Os agricultores não foram os únicos prejudicados pela instalação da UHE Manso. Desde 2001, pescadores de toda a bacia dos rios Manso e Cuiabá lutam por indenizações pelos prejuízos causados pela usina.
Furnas é também acusada de não cumprir as promessas feitas durante a fase de negociação das compensações. Segundo relatório elaborado pela Relatoria Nacional para Direito Humano ao Meio Ambiente da Plataforma Dhesca Brasil, em visita realizada em agosto de 2004 ao Mato Grosso, até aquela data as famílias assentadas tinham recebido apenas o terreno, casa e infra-estrutura básica, quatro hectares de solo preparado para o plantio e doze meses de ticket alimentação. As demais instalações ou benefícios prometidos, como postos de saúde, locais para cultos religiosos, centros comunitários, armazéns, bibliotecas, maquinário agrícola e assistência técnica funcionavam precariamente ou sequer haviam sido construídos e fornecidos. Na ocasião da missão Dhesca, das seis comunidades assentadas, apenas uma contava com posto de saúde equipado, as demais não possuíam qualquer estrutura ou apenas o prédio vazio.
Esse quadro levou as famílias atingidas a se organizarem, de forma a garantir seus direitos e pleitear compensações pelos danos causados por Furnas. A Federação dos Pescadores de Mato Grosso entrou em 2003 com uma ação judicial cobrando da empresa os prejuízos causados à categoria. Em março de 2004, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) realizou ocupação da UHE Manso para protestar contra a situação de miséria das famílias atingidas pela hidrelétrica e para exigir o reassentamento de todas as famílias atingidas em terras produtivas. Entre 2003 e 2004, diversos acordos foram firmados entre a estatal e o MAB a fim de garantir a sobrevivência das famílias. Por diversas vezes tais acordos foram descumpridos, demonstrando o descaso do governo federal sobre a questão.
Em 2004, Furnas contratou o Núcleo/Centro de Estudo e Pesquisa do Pantanal, Amazônia e Cerrado (Gera/UFMT) para realizar um levantamento sócio-econômico dos atingidos. Importante ressaltar que a comunidade científica foi contra a construção da usina de Manso.
Em junho de 2009, por solicitação do Ministério Público Federal (MPF), a Federação dos Pescadores de Mato Grosso contratou cinco peritos para fazer um levantamento do impacto social entre as famílias de seis colônias de pescadores atingidas pela construção da barragem da Usina Hidrelétrica de Manso. Essa solicitação decorreu de representação protocolada pela entidade no MPF para obrigar Furnas a indenizar os pescadores.
Contexto Ampliado
Apesar de ser apresentado como uma forma limpa de geração de energia, o uso do potencial hidrelétrico dos principais rios brasileiros tem sido marcado pela arbitrariedade, por degradação ambiental, desestruturação de diversas comunidades e geração de situações de injustiça ambiental.
Desde meados da década de 1960, centenas de comunidades, em diversos ecossistemas têm sofrido os impactos negativos da exploração capitalista dos recursos hídricos. O discurso desenvolvimentista que consolida a estrutura desigual de apropriação dos recursos naturais e da distribuição dos riscos ambientais vem caracterizando o paradoxo da sociedade brasileira contemporânea, cujos governos vêm em linhas gerais consolidar os danos irreparáveis às populações tradicionais e às gerações futuras.
No caso do processo de instalação da UHE Manso, a principal reclamação das famílias atingidas foi a falta de transparência da empresa na negociação. Diante de promessas não cumpridas, os reassentados se sentiram traídos pela estatal, que prometia às famílias vida melhor em outra localidade, mas que no entanto gerou empobrecimento e reduziu as oportunidades de sobrevivência delas. Em descompasso com o bem estar das famílias atingidas, o processo foi conduzido de forma a viabilizar o empreendimento. A reparação às 1.000 famílias, cujo modo de vida resultou totalmente desorganizado, foi, ao que parece, contabilizado apenas como um custo, a ser otimizado ao máximo possível pelo projeto.
Além da falta de transparência, a arbitrariedade e o autoritarismo marcaram o período de negociação. Muitos dos entrevistados pelos Relatores da Plataforma Dhesca Brasil reclamam de ameaças, intimidações, humilhações, violência policial e pouca ou nenhuma possibilidade de negociação (o valor da indenização paga às famílias foi considerado insuficiente para possibilitar a reestruturação de suas vidas). Até mesmo a mudança das famílias atingidas para os novos assentamentos foi feita em meio a informações desencontradas e grande mistério: o modo calculado com que a mudança se fez impediu qualquer avaliação do que estava de fato acontecendo e o consequente questionamento da ação pelos agricultores. Nesse processo, muitos bens se deterioraram, produzindo maiores prejuízos materiais. A desconsideração pelos laços sociais pré-existentes provocou prejuízos ainda maiores para aquelas pessoas, que se viram impedidas de reconstruí-los nas novas comunidades.
A maior parte das famílias assentadas se viu empobrecida, tendo em vista que os lotes recebidos estavam em locais próximos a áreas de preservação ou inadequados às culturas tradicionais – muitos dos quais devido à formação excessivamente arenosa dos terrenos. Nem mesmo garantia de água potável havia. O abastecimento tornou-se irregular, chegando a até 15 dias de falta d'água. Os assentados estariam vivendo, enfim, ironia extrema: suas casas novas sem água, enquanto as antigas estavam submersas por um lago artificial. Obviamente, o quadro encontrado pelos relatores da Plataforma Dhesca foi o de propensão à insegurança alimentar e ao empobrecimento das condições de vida dessas famílias.
O principal problema seria o desequilíbrio provocado pela usina ao ecossistema local, que teria causado o fim da piracema e o desaparecimento de diversas espécies de peixes de considerável valor econômico para as comunidades ribeirinhas. Além disso, no ambiente represado a pesca no laço imporia o uso de equipamentos que nem todos teriam condições de adquirir, o que levou muitos pescadores tradicionais a buscar outras formas de sobrevivência. Muitas famílias que antes sobreviviam da pesca tornaram-se carentes de condições para se prover de alimentação adequada. A barragem trouxe fome a comunidades habituadas a garantir sua própria subsistência.
Essa realidade pode ser identificada em outros empreendimentos hidrelétricos recentes, que configuram o modus operandi do setor energético brasileiro. Segundo se pode perceber na maior parte destes empreendimentos, a população local é identificada como obstáculo a ser transposto pelo inexorável projeto de desenvolvimento nacional, fruto de um consenso de que o País precisa crescer a qualquer custo, e de que a instalação de indústrias eletrointensivas é um dos pilares desse modelo de desenvolvimento em curso.
Ao contrário da propaganda oficial, que afirma que a expansão do setor elétrico se origina no risco de racionamento (o chamado apagão), o que se percebe é que a construção de parte significativa das usinas hidrelétricas brasileiras vem para viabilizar um perfil industrial que impõe um alto custo ambiental e social ao país, na medida em que as indústrias de papel e celulose, alumínio, aço, cimento, petroquímica e siderurgia consumiriam cerca de 30% de toda a energia produzida, mais da metade do consumo de todo o setor industrial brasileiro.
No Mato Grosso, esse cenário é agravado pelo incentivo à construção das chamadas Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), que avançam sobre o cerrado, represam rios e atingem inúmeras comunidades pelo caminho, para servir a processos também questionáveis da agroindústria.
A apropriação privada de recursos coletivos tem sido a principal causa de situações de injustiça ambiental no Estado, provocando fome, empobrecimento, deslocamentos forçados, insegurança alimentar e doenças.
Última atualização em: 10 de outubro de 2009
Fontes
AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA. Contrato de concessão nº010/2000 ANEEL-UHE MANSO. Disponível em: LINK . Acesso em: 22 jun. 2009.
CENTRO DE MÍDIA INDEPENDENTE. MAB ocupa barragem de Manso, em Mato Grosso. Disponível em: LINK . Acesso em: 22 jun. 2009.
DIÁRIO DE CUIABÁ. Peritos analisam impacto sobre pesca. Disponível em:LINK . Acesso em: 22 jun. 2009.
ECOA. Hidrelétrica de Manso opera sem licença ambiental. Disponível em: LINK . Acesso em: 22 jun. 2009.
LEROY, Jean-Pierre e SILVESTRE, Daniel. Relatório da Missão ao Mato Grosso. Rio de Janeiro: Programa de Voluntários das Nações Unidas: Fundação Ford, 2005. 55 p. Disponível em: LINK. Acesso em: 22 jun. 2009.
SANTOS, Adriano Sebastião Lucas dos et al. População atingida por barragens e políticas públicas: O caso do assentamento Mameder Roder – Chapada dos Guimarães, MT – Brasil. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE GEOGRAFIA AGRÁRIA, III e SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE GEOGRAFIA AGRÁRIA, II, 2005, Presidente Prudente. Trabalhos. São Paulo: UNESP, 2005. Disponível em: LINK Acesso em: 22 jun. 2009.
TOLEDO, Nelita Ramos. Atingidos pela construção da barragem da usina de Manso em Mato Grosso e a educação ambiental. 2003. 200f. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade Federal do Mato Grosso. Faculdade de Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação.