Comunidades tradicionais lutam contra a grilagem e o desmatamento promovidos pelo agronegócio na região do Cerrado piauiense

UF: PI

Município Atingido: Santa Filomena (PI)

Outros Municípios: Baixa Grande do Ribeiro (PI), Gilbués (PI)

População: Agricultores familiares, Povos indígenas, Ribeirinhos

Atividades Geradoras do Conflito: Agrotóxicos, Atuação de entidades governamentais, Atuação do Judiciário e/ou do Ministério Público, Especulação imobiliária, Monoculturas, Transgênicos

Impactos Socioambientais: Alteração no ciclo reprodutivo da fauna, Alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território, Assoreamento de recurso hídrico, Contaminação ou intoxicação por substâncias nocivas, Desertificação, Desmatamento e/ou queimada, Erosão do solo, Falta / irregularidade na demarcação de território tradicional, Incêndios e/ou queimadas, Poluição de recurso hídrico, Poluição do solo

Danos à Saúde: Contaminação por agrotóxico, Doenças não transmissíveis ou crônicas, Insegurança alimentar, Piora na qualidade de vida, Violência – ameaça, Violência – assassinato, Violência – coação física, Violência – lesão corporal, Violência psicológica

Síntese

O conflito envolve a luta de comunidades do Cerrado piauiense contra a expansão do agronegócio na região, exemplificada pela disputa entre comunidades rurais tradicionais e a Fazenda Kajubar, situada na Chapada Fortaleza, município de Santa Filomena, a 800km da capital, Teresina. A fazenda é tida como responsável por um desmatamento de cerca de dois mil hectares entre 2021 e 2023 (Pitta et al., 2022). A situação com a Kajubar revela a ação de grileiros e de empresas do agronegócio, muitas vezes ligadas a fundos internacionais, que estimulam o desmatamento e a violência contra comunidades rurais e tradicionais.

As principais comunidades referenciadas nesse processo com a fazenda Kajubar têm sido as comunidades Chupé 1 e Chupé 2, no Território do Chupé; a comunidade de Barra da Lagoa e os indígenas Akroá Gamela, no território do Vão do Vico, inseridas no município de Santa Filomena. Em conflitos subjacentes, aparecem as comunidades de Brejo do Miguel, Cabeceiras do Rio e Melancias, no município de Gilbués; e Estação Ecológica de Uruçuí-Una e Morro D’Água de Cima, no município Baixa Grande do Ribeiro. Todos esses municípios estão situados no sul do estado do Piauí.

Os principais agentes externos mobilizadores de conflitos no campo das instituições, agentes privados, empresas nacionais e estrangeiras são: Fundo de investimento da Harvard University; Fundo Teachers Insurance and Annuity Association of America-College Retirement Equities (TIAA); Fundo Valiance Capital; SLC Agrícola; Land Co; Damha Agronegócio; Norte Sul Serviços Privados (NSSP); JAP Grupo Pompeu de Matos; João Augusto Philippsen; Adauto Gomes; Darci Pompeu de Matos; Antônio Luiz Avelino; Moyses Avelino (Aguiar et al., 2022); e a trading company estadunidense Bunge Limited (Pitta et al., 2022).

Entre instituições e agentes públicos envolvidos estão: União Federal; Ministério da Justiça (MJ); Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai); Governo do Estado do Piauí; Tribunal de Justiça do Estado do Piauí (TJPI); Assembleia Legislativa do Estado do Piauí (Alepi); Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado do Piauí (Semar/PI); Coordenadoria de Direitos Humanos do Estado do Piauí; Secretaria de Meio Ambiente do Município de Baixa Grande do Ribeiro; e Secretaria de Meio Ambiente do Município de Santa Filomena(Aguiar et al., 2022).

De modo geral, o conflito tem sido marcado pela invasão dos territórios de comunidades tradicionais, impulsionada por ações de grilagem organizadas por fazendeiros e empresas do agronegócio, nacionais e internacionais, ligadas à Matopiba (área de fronteira do bioma Cerrado nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia). A ação desses agentes violadores de direitos é favorecida e incentivada por projetos de investimento público, nos níveis federal, estadual e municipal, que visam à expansão da fronteira agrícola brasileira, além do subsídio ao pacote tecnológico que inclui o uso de transgênicos e agrotóxicos (Aguiar et al., 2022).

A Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, a Comissão Pastoral da Terra do estado do Piauí (CPT-PI) e o Coletivo de Povos e Comunidades Tradicionais do Sul do Piauí, em vários momentos, emitiram notas alertando sobre as violências sofridas pelas comunidades, bem como vêm pautando junto a elas a regularização fundiária para a minização dos conflitos locais. As comunidades também têm sido assessoradas pela Associação dos Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais (AATR) .

A Kajubar, no município de Santa Filomena, é uma das fazendas que estão no centro de disputas e é reivindicada por comunidades tradicionais. Em 2021, a fazenda desmatou uma área de 1,8 mil hectares. Por meio da Lei Estadual nº 6.132/2011 (art. 14), foi proibido qualquer tipo de exploração, empreendimento e licenciamento ambiental enquanto houver sobreposição de territórios, como o de comunidades tradicionais, fato que acontece neste caso (Bond, 2023).

Os esquemas que foram denunciados pelas comunidades locais e seus apoiadores em relação às terras até então sob posse dos pretensos proprietários da fazenda Kajubar envolvem tanto empresas do agronegócio quanto imobiliárias agrícolas e trading companies (empresas que atuam na intermediação de negócios, especialmente no comércio internacional). O processo consiste em adquirir vastas extensões por preços muito baixos e revendê-las por valores muito altos. Simultaneamente, as empresas envolvidas incentivam a expansão da monocultura de commodities como a soja, reforçando o ciclo de especulação e degradação ambiental (Bond, 2023).

Assim, o caso aqui abordado retrata a luta de comunidades tradicionais contra a grilagem e o desmatamento promovidos por interesses do agronegócio na região do Cerrado piauiense, evidenciando a necessidade de reconhecimento e proteção dos direitos territoriais dessas populações.

 

 

Contexto Ampliado

O conflito envolve a luta entre comunidades rurais tradicionais e a Fazenda Kajubar, situada na Chapada Fortaleza, município de Santa Filomena, a 800km da capital, Teresina. Esta desmatou cerca de dois mil hectares entre 2021 e 2023, e não é um caso único na região (Pitta et al., 2022). A situação com a fazenda Kajubar revela a ação de grileiros e empresas do agronegócio, muitas vezes ligadas a fundos internacionais, que estimulam o desmatamento e a violência contra comunidades rurais e tradicionais (Pitta et al., 2022).

O embate na região é complexo porque envolve atuação de agentes diversos ligados aos interesses do agronegócio, bem como agentes públicos do Estado. O tensionamento engloba grilagem, desmatamento ilegal, ameaças, violências físicas e psicológicas, insegurança alimentar, assoreamento e contaminação dos recursos hídricos e do solo, contaminação por agrotóxicos, omissão do Estado, falta de regularização fundiária etc.

A Kajubar é uma das fazendas que estão no centro de disputas com povos e comunidades tradicionais (Bond, 2023). O conflito em torno dessa propriedade rural envolve uma variedade de comunidades no sul do estado do Piauí, comunidades ribeirinho-brejeiras e o grupo indígena Akroá Gamela, do Vão do Vico.

Além das aldeias indígenas, as principais comunidades referenciadas nesse processo com a fazenda Kajubar têm sido as comunidades Chupé 1 e Chupé 2, no Território do Chupé, e a comunidade de Barra da Lagoa, todas inseridas no município de Santa Filomena. Em conflitos subjacentes, aparecem as comunidades de Brejo do Miguel, Cabeceiras do Rio e Melancias, no município de Gilbués; Estação Ecológica de Uruçuí-Una e Morro D’Água de Cima, em Baixa Grande do Ribeiro. Todos esses municípios estão situados no sul do estado do Piauí.

Os esquemas que foram denunciados pelas comunidades locais e seus apoiadores em relação às terras até então sob posse dos pretensos proprietários da fazenda Kajubar, envolvem tanto empresas do agronegócio quanto imobiliárias agrícolas e trading companies. O processo consiste em adquirir vastas extensões por preços muito baixos e revendê-las por valores muito altos. Simultaneamente, as empresas envolvidas incentivam a expansão da monocultura de commodities como a soja, reforçando o ciclo de especulação e degradação ambiental (Bond, 2023).

Na cidade de Santa Filomena, outras terras, totalizando 124 mil hectares, tiveram seus registros bloqueados pela Vara Agrária da Comarca de Bom Jesus, município vizinho, devido a suspeitas de grilagem e outras ilegalidades. Em 2022, conforme aponta Letycia Bond, réporter da Agência Brasil, o grupo empresarial relacionado à empresa Bunge, que disputa a posse dessas terras, violando os direitos das comunidades rurais da região, obteve na justiça o desbloqueio. Isso resultou em um aumento da violência e das ameaças contra a população local (Bond, 2023).

De modo geral, o conflito tem sido marcado pela invasão dos territórios de comunidades tradicionais, impulsionada por ações de grilagem organizadas por fazendeiros e empresas do agronegócio, nacionais e internacionais. Conforme publicação da série Eco-genocídio no Cerrado, do Tribunal Permanente dos Povos, a ação desses agentes que violam direitos é favorecida e incentivada por projetos de investimento público, nos níveis federal, estadual e municipal, que visam à expansão da fronteira agrícola brasileira, além dos subsídios ao pacote tecnológico que inclui o uso de sementes transgênicas e agrotóxicos (Aguiar et al., 2022).

O caso em questão ocorre na região do Cerrado piauiense, no sul do estado. Apesar de sua enorme importância socioambiental, o bioma Cerrado é amplamente desconhecido e subvalorizado. Ele não é reconhecido como uma referência na reflexão sobre a sociobiodiversidade brasileira, sendo visto até mesmo como uma área despovoada.

Essa visão contribui para a criação de um imaginário que justifica sua destruição, intensificando as disputas territoriais. Nesse cenário, identidades invisibilizadas e territórios negados continuam sendo moeda de troca na política ambiental brasileira. A falta de compreensão sobre a interdependência entre os biomas marginaliza o Cerrado nos discursos, reforçando sua desvalorização e promovendo seu desaparecimento (Pita; Vega, 2017).

O Cerrado é o segundo maior bioma brasileiro (atrás apenas da Amazônia, em termos de extensão), ocupando uma área aproximada de 2,036 milhões de km² (24% do território nacional), e contemplando 5% da biodiversidade do planeta (Pita; Vega, 2017). O Cerrado é reconhecido como a savana mais rica do mundo em biodiversidade.

Além disso, em sua área de abrangência estão localizados três grandes aquíferos, fundamentais tanto para o Brasil quanto para a América do Sul. São eles: o Bambuí, o Guarani, e o Urucuia, que contribuem com a formação de 2/3 das regiões hidrográficas brasileiras: Amazônica (4%), Araguaia-Tocantins (71%), Atlântico Ocidental e Atlântico Nordeste (11%), São Francisco (94%), Atlântico Leste (7%) e Paraná e Paraguai (71%) (Pitta e Vega, 2017).

Pela sua extensão e complexidade, a preservação da Amazônia é essencial, e embora à primeira vista o Cerrado e a Amazônia pareçam distintos, eles constituem uma unidade dinâmica. As interações entre esses biomas são frequentemente negligenciadas. Isso também se aplica a outros biomas brasileiros, já que o Cerrado, localizado nos planaltos centrais do país, tem uma relação íntima com o Pantanal, a Caatinga e a Mata Atlântica. O Cerrado funciona como um ponto de equilíbrio, conectando e integrando todos esses ecossistemas (Barbosa, 2008 apud Pita; Vega, 2017).

Nos últimos 40 anos, a expansão da agricultura e da pecuária no Cerrado brasileiro resultou na perda total ou na degradação de 52% do bioma, gerando sérias ameaças para seu futuro e para as populações tradicionais e comunidades que nele habitam. Desde a década de 1970, atividades intensivas e extensivas, como a pecuária e as monoculturas de soja, cana-de-açúcar e eucalipto, têm provocado um desmatamento significativo, transformando drasticamente a paisagem e as interações ecológicas tanto dentro quanto fora do bioma. Essas mudanças têm impactado de maneira abrupta a vida das comunidades locais (Pita; Vega, 2017).

A expansão da agricultura e da pecuária comerciais intensifica a concentração de terras, agravando a situação dos povos tradicionais, cujos direitos territoriais, baseados em costumes e na ocupação contínua ao longo de gerações, são frequentemente desrespeitados. Em uma região marcada pela irregularidade fundiária, esses direitos são ignorados em favor de documentos legais emitidos pelo Estado, acentuando os conflitos e a vulnerabilidade dessas comunidades (Pita; Vega, 2017).

A ampliação das agroindústrias, atualmente impulsionadas pelo capital financeiro, promove o uso intensivo de recursos como a água, além de poluir aquíferos e alterar significativamente a paisagem. Essa transformação ocorre pela introdução de grandes lavouras e pela construção de diversas infraestruturas fundamentais para a produção e o escoamento, como estradas e hidrovias, necessárias para viabilizar essas atividades (Pita; Vega, 2017).

A principal política de incentivo a essa expansão abarca a referida delimitação geográfica Matopiba, tida como a última área de fronteira agrícola do país. Ela envolve territórios do estado do Maranhão, Tocantins, Piauí e da Bahia, e foi formalizada em 2015 pelo Decreto Federal 8.447, estabelecida com base em estudos do Grupo de Inteligência Territorial e Estratégica (Gite) da Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias (Embrapa).

O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), por meio da Portaria nº 244, instituiu o Plano de Desenvolvimento Agropecuário (PDA) do Matopiba (Observatório, 2024). O Decreto 8.447 foi revogado em 2020, com a edição do Decreto 10.473 – a mudança visou a reorganizar as diretrizes para o desenvolvimento agropecuário, refletindo novas políticas e prioridades do governo (Brasil, 2020).

Delimitado dentro desse convênio, a Matopiba compreende 73 milhões de hectares de Cerrado que abarcam 337 municípios, 35 terras indígenas, 745 assentamentos de reforma agrária e muitas comunidades tradicionais, como quilombolas, geraizeiros, quebradeiras de coco, além de 46 unidades de conservação (conforme o Painel de Dados do Instituto Socioambiental, as unidades de conservação na região são tanto estaduais quanto federais) (Barros, 2018).

Além disso, tem 90% de sua área localizada no Cerrado, com extensas áreas planas. Os platôs situados no topo das chapadas são ideais para o cultivo de soja e outras commodities. Esse é o principal motivo do conflito que afeta a população local, pressionada tanto pela valorização das terras quanto pelas políticas governamentais de incentivo ao agronegócio (Barros, 2018).

A dinâmica da delimitação tem continuado com o aumento da demanda por commodities no mercado global, provocando alterações no uso do solo, desmatamento e conflitos pela posse da terra (Observatório, 2024). Com a expansão, aumentam os relatos de arbitrariedades e violência contra as comunidades locais, que se tornam as principais vítimas dos retrocessos no campo brasileiro (Pita; Vega, 2017).

A região sul do Piauí tem sido alvo da expansão do monocultivo de soja, com queimadas e desmatamentos. As empresas do agronegócio expandem suas plantações como mecanismo para rolar endividamentos e para especular com a terra como ativo financeiro (Pitta et al., 2022).

De acordo com o relatório “Desmatamento, grilagem de terra e financeirização: impactos da expansão do monocultivo da soja no Brasil”, publicado em 2022, a formação de uma fazenda de soja envolve grilagem em terras devolutas, principalmente em áreas planas e altas de chapadas, que possibilitam a mecanização da plantação e da colheita. Conforme o documento, essas são terras sem titulação fundiária, sob responsabilidade do Estado e que, por direito, deveriam ter sido regularizadas para comunidades camponesas, quilombolas e indígenas que as ocupam tradicionalmente (Pitta et al., 2022).

Os autores e autoras do referido relatório abordam que a recente alta dos preços das commodities tem promovido o aumento das queimadas, desmatamento e grilagem de terras nessa região, com incentivos de empresas financeiras internacionais, trading companies e agentes do Estado. A constituição ilegal de uma fazenda é um processo aprimorado, que envolve a participação de elites locais e suas conexões com cartórios.

Esse processo geralmente começa com a falsificação de um título de terra. Em seguida, os supostos “proprietários” começam a expulsar as comunidades rurais de seus territórios, muitas vezes de forma violenta. No entanto, essas comunidades possuem direitos garantidos à terra, de acordo com a Constituição Federal de 1988 e a Lei de Terras do Piauí de 2019 (Pitta et al., 2022).

A lei nº 7.294/2019, de 10 de dezembro de 2019, estabelece, no seu art. 11º, que poderão ser regularizadas as ocupações incidentes em terras discriminadas, arrecadadas e registradas em nome do estado do Piauí. A lei determina que sejam destinadas às comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais as terras públicas e devolutas estaduais por elas ocupadas coletivamente.

Elas deverão ser regularizadas de acordo com as normas específicas segundo a lei aprovada pela Assembleia Legislativa do Piauí (Alepi), estabelecendo a Política Estadual de Regularização Fundiária, a ser executada pelo governo do estado, por meio do Instituto de Terras do Piauí (Interpi) (Gonzaga, 2019).

A partir da referida lei, cinco comunidades quilombolas foram tituladas (Marinheiro e Vaquejador, situadas no município de Piripiri; Queimada Grande, Riacho Fundo e Sabonete, situadas em Isaías Coelho); três indígenas (Kariri de Serra Grande, em Queimada Nova; Comunidade Indígena Povo Tabajara de Piripiri, em Piriri; Comunidade Indígena Nazaré do Povo Tabajara Itamaraty, em Lagoa de São Francisco); uma comunidade ribeirinha-brejeira (Comunidade Salto, em Bom Jesus); e uma comunidade de quebradeiras de coco babaçu (Vila Esperança, situada em Esperantina-PI) (Torsiano, 2022). Entretanto, muitas outras comunidades no estado continuam em situação de insegurança quanto a sua titulação.

Voltando à questão dos conflitos. As queimadas e desmatamentos constituem o segundo passo para a grilagem de terras. A custos muito baixos, o desmatamento na área do Cerrado, em geral, é feito por apenas dois tratores e um correntão, embora o uso dessa técnica seja considerado crime mabiental. Assim, a área grilada pode ser revendida para a expansão do agronegócio. No caso do Piauí, a empresa Bunge controla a maior parte do comércio, processamento e escoamento da soja (Pitta et al., 2022).

As pesquisadoras Maria Luisa Mendonça, Daniela Stefano e o pesquisador Fábio Pitta (2022) alertam que empresas de soja promovem políticas de “desmatamento zero”. Entretanto, na prática, se beneficiam da destruição ambiental e da grilagem de terras, muitas vezes realizadas de forma violenta (Pitta et al., 2022).

A empresa Bunge detém a maior parte da venda de insumos e de financiamento aos produtores de soja no Piauí, e tem se configurado na maior compradora de soja local, a partir da propriedade de muitos silos e de seu arrendamento para armazenamento dos grãos. Essa produção abastece sua fábrica no município de Uruçuí, no sul do Piauí. A Bunge processa a soja nessa fábrica e a exporta na forma de farelo e óleo pelo Porto de Itaqui, no Maranhão (Pitta et al., 2022).

Como exemplo, Caio Freitas, a partir dos dados da Plataforma Trase, destaca a concentração de mercado na comercialização da soja em municípios como Santa Filomena. Segundo essa plataforma de monitoramento do agronegócio, a colheita de aproximadamente 175 mil toneladas de soja, registrada em 2018, foi quase totalmente adquirida pela referida multinacional (Freitas, 2022).

Recente relatório de AidEnvironement sobre os negócios da Bunge no Piauí demonstra seu controle de aproximadamente 80% da produção de soja no estado. O estudo revela que a Bunge domina a comercialização e o armazenamento da soja, com capacidade para armazenar 694,158 toneladas, e com planos de expansão dessa estrutura em uma região que inclui os municípios de Baixa Grande do Ribeiro, Bom Jesus, Currais, Santa Filomena e Uruçuí (Pitta et al., 2022).

Conforme agência de notícias do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em termos de capacidade útil armazenável, os silos predominam no País, tendo alcançado 99,2 milhões de toneladas no segundo semestre de 2022, ou 51,6% da capacidade útil total (Agência IBGE, 2023).

A expansão da Bunge inclui um novo silo de armazenamento de soja em Santa Filomena, localizado nas proximidades de uma área de desmatamento, documentado em imagens de satélite e em visitas a campo em outubro de 2021 realizada pelos autores/as do relatório sobre desmatamento na região.

Esse desmatamento teve início em setembro de 2021 na escarpa leste da Chapada da Fortaleza, acima dos baixões de diversas comunidades que reivindicam a titulação coletiva de suas terras. Conforme relatório da AidEnvironement, toda a soja produzida no município de Santa Filomena abastece os silos da Bunge. Isso significa que a empresa se beneficia com o desmatamento (Pitta et al., 2022).

É dentro desse contexto que está situado o conflito das comunidades ribeirinho-brejeiras e do grupo indígena Akroá Gamela do Vão do Vico com a Fazenda Kajubar. Em setembro de 2021 se iniciou um desmatamento de aproximadamente dois mil hectares na área da Serra da Fortaleza, na Fazenda Kajubar (Pitta et al., 2022). Esse imóvel foi reivindicado por diferentes requerentes, um deles o espólio de Euclides de Carli, falecido em 2019, denunciado por grilagem de grandes extensões de terras (Pitta et al., 2022). Ele possui mais de 120 mil hectares bloqueados pelo Tribunal de Justiça do Piauí (TJPI) desde 2016 (Barros, 2018). Carli era defendido na Justiça pelo governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), e seu escritório de advocacia (Combate Racismo Ambiental, 2024).

A área do conflito com a fazenda Kajubar é banhada pelas águas do rio Parnaíba que, junto à sua rede hídrica de afluentes e lagoas, configura uma área repleta de rios, riachos, lagoas e brejos. Nesse entorno vivem as comunidades ribeirinhas/brejeiras de Chupé 1, Chupé 2, Barra da Lagoa e famílias indígenas do povo Akroá Gamela (Aguiar et al., 2022). Essas comunidades denunciam a expropriação ilegal de seus territórios tradicionais e diversos tipos de violências geradas pela instalação da fazenda Kajubar (Aguiar et al., 2022).

O Território Chupé, no município de Santa Filomena (PI), é constituído pelas comunidades Barra da Lagoa e Chupé 1 e 2. Dezessete famílias de ribeirinhos e ribeirinhas ocupam tradicionalmente, desde os seus antepassados, as margens do Riozinho, e vivem da coleta dos frutos do Cerrado, da pesca, da agricultura camponesa, da criação de animais, da cultura e da espiritualidade (CPT, 2020).

Eles se autoidentificam como ribeirinhos/brejeiros, traçando sua origem aos povos que historicamente ocupam as margens daquele rio há pelo menos 150 anos. No decorrer desse período, desenvolveram um modo de vida profundamente integrado ao Riozinho e aos brejos da região. As áreas de brejo são fundamentais tanto para a alimentação do rio quanto para as famílias locais, que pescam em suas águas e cultivam roças tradicionais e agroecológicas em suas proximidades (Aguiar et al., p. 09, 2022).

Por meio de bancos familiares de sementes, essas comunidades cultivam variedades tradicionais de mandioca brava, macaxeira, milho, feijão, fava e arroz nos brejos. Eles praticam o extrativismo do buriti, da bacaba, do pequi e de outras frutas do Cerrado, utilizando esses recursos tanto para consumo in natura quanto para beneficiamento. Além disso, produzem artesanatos, destacando-se itens como redes, tapetes, óleo e doce de buriti, óleo de pequi e doce de caju, entre outros (Aguiar et al., p. 09, 2022).

Em relato, o morador do Território Chupé, Jovecino Pereira da Silva, fala sobre o modo de vida tradicional das comunidades e como ele tem sido afetado pelo agronegócio (Aguiar et al., p. 09, 2022):

“Temos um pouco de produto que nós produzimos aqui, o feijão, o arroz. (…) Já colhi feijão, e mandioca pra fazer farinha, mas nós devíamos ter muito mais, se nós tivéssemos a liberdade de trabalhar, tivéssemos nossos territórios titularizados, né? Então, nós devíamos ter muito mais espaço, mas as pessoas estão chegando e querendo diminuir as comunidades, passar por cima, né? Então, é motivo de tristeza, mas estamos aqui na luta” (Aguiar et al., p. 09, 2022).

Já no Território Vão do Vico, por sua vez, vivem 17 famílias do povo indígena Akroá Gamela, que têm pautado o reconhecimento de sua etnia e realizado um processo de autodeclaração identitária. Para isso, vêm resgatando seus costumes por meio de trocas com indígenas Gamela do Maranhão. Assim, relata Ermínio Ribeiro de Souza Júnior, indígena Akroá Gamella do Vão do Vico (Aguiar et al., p. 10, 2022):

“Eu sou lá da comunidade indígena Akroá Gamela, tenho 24 anos e desde nascença lá que a gente não se reconhecia indígena, porque tinha medo de se declarar indígena, porque antes lá os antepassados, assim meus avós contavam, que teve um confronto lá de fazendeiros com os indígenas, e os indígenas foram para o Maranhão” (Aguiar et al., p. 10, 2022).

Considerado extinto pelo Estado brasileiro, esse povo atualmente luta pelo reconhecimento junto à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). A ocupação indígena no Vão do Vico remonta há 300 anos, período em que o povo Gamela foi fragmentado e expulso das áreas de serra. Os antepassados das famílias do Vão do Vico se estabeleceram na região há pelo menos quatro gerações (Aguiar et al., 2022).

Recentemente, diante de todas as violências enfrentadas, apenas oito famílias resistem de forma permanente no território. O modo de vida tradicional dos Akroá Gamela do Vão do Vico, a respeito do Cerrado, abrange o relacionamento com a terra, as águas, os brejos e as chapadas, que são considerados bens comuns e, ao mesmo tempo, moradas espirituais dos Encantados. Esse modo de vida também inclui práticas espitituais e de cura (Aguiar et al., 2022).

Costumeiramente realizam o trabalho com a agricultura. Praticam roças de coivara/toco, em sistema de pousio para recuperação da floresta e fertilidade do solo, e cultivam mandioca, arroz, feijão, milho, fava, batata, cana, banana, abacaxi, melancia, abóbora, maxixe, quiabo, entre outros. Realizam o extrativismo de frutas como coco, pequi, buriti, buritirana, bacaba, mangaba e caju. Pesca e caça para alimentação também estão presentes na rotina desse povo (Aguiar et al., 2022).

Conforme públicação da série Eco-Genocídio no Cerrado, do Tribunal Permanente dos Povos (TPP), fascículo referente aos ribeirinhos/brejeiros do Chupé e indígenas Akroá Gamela do Vão do Vico, esses grupos não viveram apenas tensionamentos por conta da situação referente à fazenda Kajubar. A invasão dos territórios Chupé e Vão do Vico pelo agronegócio tem influência principalmente para produção de soja.

As famílias ribeirinhas/brejeiras e indígenas denunciam violações de direitos e violências geradas pela expropriação de terras tradicionais e apropriação dos bens comuns por grileiros, fazendas e empresas nacionais e internacionais do agronegócio. A apropriação das terras e águas nos territórios ribeirinhos/brejeiros e dos Akroá Gamela se estrutura sobre a grilagem de terras tradicionalmente ocupadas (Aguiar et al., 2022).

A partir de 1988, o território de Chupé foi invadido por pessoas do Sul do Brasil, principalmente paranaenses e catarinenses, que afirmavam serem donas das terras dos ribeirinhos e brejeiros. Utilizando documentos duvidosos e em conluio com cartórios, essas pessoas violaram a posse tradicional, ocuparam as terras e desmataram várias áreas de vegetação nativa.

No território do Vão do Vico, a grilagem de terras começou em meados de 1940 pela família Avelino, sendo Antônio Luiz Avelino denunciado como o principal grileiro (Aguiar et al., 2022). Por muito tempo, essa família ocupou cargos públicos e exerceu poder político no município, com Moyses Avelino sendo eleito deputado federal por dois mandatos pelo estado do Tocantins.

A família Avelino é denunciada pelas comunidades locais por praticar a tortura e outras violências, sendo um caso emblemático o desaparecimento do senhor Saú Pereira, do povo indígena Akroá Gamela. Ele foi amarrado e levado para a cidade de Santa Filomena, e desde então nunca mais foi visto (Aguiar et al., 2022).

O Ministério Público Federal em Corrente (MPF/PI) instaurou em 2016 um Inquérito Civil (IC-MPF 1.27.000.002013/2016-90) para apurar a omissão do estado do Piauí na demarcação e titulação dos territórios de Chupé, Vão do Vico e outros vizinhos; porém, cinco anos após o procedimento, ele tampouco foi concluído no que se refere a esses dois territórios (Aguiar et al., 2022).

A publicação do TPP alerta que as comunidades locais citadas estão, cada vez mais, pressionadas por um amplo processo de especulação e supervalorização do preço das terras na região, aliado a políticas públicas e legislações estaduais e federais de incentivo ao agronegócio (Aguiar et al., 2022). Assim, vivenciam uma situação de insegurança provocada não só pela situação com a fazenda Kajubar.

As comunidades denunciam a aquisição de terras griladas por fundos de pensão internacionais na região – fundo patrimonial da Harvard University; fundo estadunidense Teachers Insurance and Annuity Association of America-College Retirement Equities (TIAA); e fundo britânico Valiance Capital.

No território Vão do Vico, há investimentos estrangeiros ilegais, a partir de operações com indícios de fraude e simulação, envolvendo as empresas SLC Agrícola e Land Co. Em Chupé, as famílias identificam como grileiros de terras o fazendeiro Adauto Gomes, do estado do Mato Grosso, e João Augusto Philippsen, sendo o deputado federal Pompeu de Mattos (PDT-RS) sócio deste último na Fazenda JAP (Aguiar et al., 2022).

A empresa paulista Damha Agronegócios Ltda. é denunciada como violadora dos direitos do povo Akroá Gamela, tendo adquirido em 2010 terras no Vão do Vico que foram griladas pela família Avelino. De acordo com denúncias dos indígenas, a empresa adota uma postura abusiva e agressiva no território, empregando violências físicas, patrimoniais e psicológicas contra as famílias indígenas. Também se destaca a atuação coercitiva da empresa de segurança privada Norte Sul Serviços Privados, contratada pela Damha, que realiza escoltas armadas e tem ameaçado as famílias da comunidade (Aguiar et al., 2022).

Em 2015, a empresa mencionada entrou com uma ação de reintegração de posse contra pessoas da comunidade, mas não obteve a medida liminar, e o processo foi encaminhado à Justiça Federal devido à condição de comunidade indígena, permanecendo sem desfecho. Ermínio Ribeiro de Souza Júnior relata graves situações de violência perpetradas pela empresa Damha no território Akroá Gamela do Vão do Vico (Aguiar et al., 2022).

Além das empresas, os fazendeiros também recorrem à coerção e a diversos tipos de violência na tentativa de expulsar os ribeirinhos, brejeiros e indígenas de suas terras. Em Chupé, foram relatados tiroteios com o intuito de aterrorizar a comunidade, resultando na instalação de um sistema de pistolagem.

Em ambos os territórios, fazendeiros realizam invasões e cercamentos ilegais de terras tradicionais, violando o direito à moradia por meio de demolições criminosas de casas da comunidade. Além disso, praticam crimes ambientais, como o desmatamento de vegetação nativa utilizando o “correntão” (Aguiar et al., 2022), como no caso da Fazenda Kajubar.

Os indígenas Akroá Gamela relatam que, atualmente, não têm mais acesso às terras planas no alto das chapadas, que tradicionalmente eram utilizadas para caça, coleta de mel e frutos nativos, pastagem dos animais e como morada dos Encantados. Essas áreas foram invadidas e apropriadas por fazendeiros e empresas para a produção de soja transgênica.

Dessa maneira, a soberania e a segurança alimentar das comunidades tradicionais, bem como seu direito à água, são gravemente violados por fazendeiros e empresas, que promovem a destruição de roças, sistemas alimentares e vegetação dos brejos, além de reduzir a quantidade e a qualidade da água na região. Os indígenas Akroá Gamela relatam o grave assoreamento da Lagoa Feia, de suas nascentes e brejos no Território Vão do Vico, resultante do intenso desmatamento na região (Aguiar et al., 2022).

Há um uso intensivo de agrotóxicos por fazendeiros e empresas, incluindo a pulverização aérea, que contamina o solo, o ar, a flora, a fauna e as pessoas. Essa prática resulta em intensa degradação e contaminação, inviabilizando o uso das águas das nascentes, dos brejos e do Riozinho, fontes de extrema importância sociocultural e alimentar (Aguiar et al., 2022).

As pesquisadoras Diana Aguiar, Joice Bonfim e Larissa Packer (2022) também denunciam o uso de agrotóxicos como o Furadan, D3 e 2,4-D, proibidos em outros países e dos quais o Brasil é o principal consumidor. Esses produtos impactam diretamente a saúde das famílias. Moradores das comunidades tradicionais associam os agrotóxicos a dores de cabeça crônicas em crianças e adultos, à morte de duas crianças por intoxicação aguda, a reações alérgicas diversas, além da morte de abelhas, peixes e animais de criação que consomem água contaminada dos mananciais (Aguiar et al., 2022).

Ao longo dos anos são muitos os relatos de ameaças nestes territórios por estes grupos. Em maio de 2022 a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos denunciou desmatamentos sem licença ambiental na fazenda Kajubar, com a publicação do “Relatório Desmatamento, Grilagem de Terras e Financeirização” (Combate Racismo Ambiental, 2023).

A área desta fazenda se sobrepõe à área das referidas comunidades rurais. O desmatamento causa assoreamento dos rios que nascem nas chapadas e descem para os baixões, impedindo o uso comum da água por comunidades locais e causando morte de peixes. A contaminação dos rios e da produção de alimentos das comunidades é causada por produtos químicos usados pelas empresas de soja, que despejam agrotóxicos com aviões.

Em dezembro de 2022 a Rede Social, em conjunto com o Coletivo de Povos e Comunidades Tradicionais do Sul do Piauí e a Comissão Pastoral da Terra do Piauí (CPT-PI), emitiram nota denunciando desmatamento causado por grileiros nas áreas das comunidades, e alertando que a morosidade do Estado na fiscalização poderia causar danos ainda maiores às comunidades e ao meio ambiente (Combate Racismo Ambiental, 2023).

A nota em questão alerta que os desmatamentos e a destruição ambiental promovidos pelos grileiros nos territórios das comunidades se intensificaram no segundo semestre de 2022, com a intenção de forçar a apropriação das terras. Foram registrados desmatamentos nos territórios de Brejo do Miguel, Cabeceiras do Rio e Melancias (Gilbués); Barra da Lagoa e Chupé II (Santa Filomena) e Morro D’Água de Cima, em Baixa Grande do Ribeiro.

As lideranças comunitárias suspeitam que as ações dos grileiros visam a expulsá-los de seus territórios (CPT-PI, 2022). A publicação também sinaliza as denúncias realizadas pelas lideranças comunitárias: a falta de agilidade dos órgãos de fiscalização ambiental para retirar os invasores das terras e a exigência de rapidez para o processo de titulação (CPT-PI, 2022).

O desmatamento ilegal realizado dentro da fazenda Kajubar na área da Chapada Fortaleza foi feito sem autorização do órgão ambiental estadual. Ocorreu de modo relativamente simples, com apenas dois tratores e um correntão, sobre mais de dois mil hectares de terra.

Ainda que a autorização para tal feito fosse solicitada, isso não seria possível, pois a área está em processo judicial no âmbito da Ação Anulatória nº 0000759-98.2018.8.18.0042, movida pelo Ministério Público do Estado do Piauí (MPPI) e que tramita na Vara Agrária da Comarca de Bom Jesus, em razão de seu histórico de grilagem e irregularidades (Pitta et al., 2022).

Além disso, a Lei Estadual nº 6.132/2011 (art. 14) determina que, havendo sobreposição de áreas, a regularização ambiental será suspensa para ambos os imóveis sobrepostos até que seja definido quem de fato tem sua posse. Ademais, não é permitido nenhum tipo de exploração, empreendimento e licenciamento ambiental em áreas sobrepostas que estiverem em conflito judicial, como é o referido caso (Pitta et al., 2022).

Com base em imagens de satélite, visíveis nos mapas produzidos pela AidEnvironment, foram desmatados 2.590 hectares. Fonte: Paulino, 2023.

Segundo o relatório “Desmatamento, grilagem de terras e financeirização: impactos da expansão do monocultivo da soja no Brasil” (2023), da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, o desmatamento é realizado com o objetivo de apresentar a área como legítima para venda, fator que complica a reversão da ocupação ilegal de terras. O documento apresentado pela Rede mostra que o novo silo da Bunge em Santa Filomena está no entorno do desmatamento da fazenda Kajubar, o que aponta, segundo a referida Rede, para uma possível influência da empresa.

O relatório sinaliza também a presença de outras empresas de soja, como SLC, Radar/Tellus e Insolo, alguns dos principais fornecedores de soja para a Bunge. Ainda de acordo com a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, a área desmatada beneficia empresas que dominam esse setor na região (Pitta et al., 2022).

O relatório, enriquecido com imagens, demonstra que a chamada Fazenda Kajubar se sobrepõe à área de comunidades tradicionais. Conforme apontam, o desmatamento causado pela fazenda provocou a migração em massa de porcos selvagens para as comunidades, e, além disso, a destruição promovida tem gerado uma perda enorme da biodiversidade.

A análise da Rede denuncia que esse caso demonstra os impactos do agronegócio da soja (que inclui empresas financeiras, de comercialização, processamento e distribuição), tanto sobre o meio ambiente quanto sobre comunidades camponesas, indígenas e quilombolas (Pitta et al., 2022).

A terra desmatada é pública e de posse, ou seja, de uso das comunidades. Conforme citado no relatório, a ação da fazenda Kajubar afetou as comunidades do Território do Chupé (Incluindo as comunidades Chupé 1 e 2, e os indígenas Akroá de Gamela) e Brejo das Meninas, todas no município de Santa Filomena (Pitta et al., 2022).

A ação foi denunciada quando uma liderança local percebeu o trânsito de maquinário com correntão, trator e caminhão, com homens se comportando como seguranças do processo. Assim, relata a liderança:

“Eu comecei a ver um trânsito de carros muito intenso na estrada próxima à minha casa. Tentei me informar, mas ninguém queria me dizer o que estava ocorrendo… era tudo sigiloso. Então, quando finalmente alguém me disse, perguntei onde exatamente era a derrubada. Fui até lá, vi a área sendo desmatada e a minha primeira reação foi denunciar” (Pitta et al., 2022, p. 13).

As comunidades foram assessoradas pela CPT-PI, Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e AATR. A busca de informações que comprovasse o processo de desmatamento era arriscada devido à presença de homens armados. De acordo com a liderança:

“Íamos de carro da comunidade até o local do desmate nas primeiras horas do dia e tomávamos cuidado. Enquanto o pesquisador descia do carro para tirar fotografias e marcar os pontos GPS, eu ficava de olho. Se algum dos jagunços nos visse, corríamos perigo. Os criminosos atuam com um aparato de segurança privada, muitas vezes com o apoio das forças de segurança pública de forma ilegal, policiais fardados ou que prestam serviços particulares para grileiros” (Pitta et al., 2022, p. 13).

Em dezembro de 2022, o Coletivo de Povos e Comunidades Tradicionais do Sul do Piauí, a Comissão Pastoral da Terra (CPT-PI) e a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos emitiram nota denunciando o desmatamento causado por grileiros em áreas de oito comunidades, e alertando que a morosidade do Estado na fiscalização poderia causar danos ainda maiores às comunidades e ao meio ambiente.

Embora a Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Piauí (Semar/PI) tivesse multado duas pessoas em R$ 2 milhões por desmatamentos em áreas indígenas e ribeirinhas em fevereiro de 2023, os Akroá Gamela e comunidades ribeirinho-brejeiras continuaram ameaçadas pela violência do agronegócio (Paulino, 2023) .

O Coletivo de Povos e Comunidades Tradicionais do Sul do Piauí exigiu o fim da violação aos seus direitos e a titulação coletiva de seus territórios o mais rápido possível, para garantir a preservação do meio ambiente e de seus modos de vida.

“As comunidades estão quase sem conseguir respirar. São muitas ameaças, grilagem e desmatamento de terras. O Estado, que deveria garantir nossos direitos, é o primeiro a se esquecer de nós. Seguimos lutando por nossa titulação coletiva porque a área de nossos territórios é justa”, afirma Mara Alves Pessoa, uma das lideranças do Coletivo de Povos e Comunidades Tradicionais do Sul do Piauí.

O contexto de tensão tem mobilizado movimentos sociais, como o referido Coletivo, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. Esses têm solicitado às autoridades uma definição sobre a regularização fundiária para pacificar a área, pois, tanto o governo de Rafael Fonteles (PT) quanto a Defensoria Pública Estadual (DPE/PI), estão cientes do aumento dos conflitos na região. Moradores de Barra da Lagoa, Brejo das Meninas e Chupé, que habitam a região há mais de 100 anos, temem por sua segurança após se verem envolvidos no esquema de grilagem (Freitas, 2024).

Em 2016, o Ministério Público do Piauí (MPPI) denunciou “uma imensa grilagem” de 124 mil hectares de terras nas imediações da fazenda Kajubar. O Tribunal de Justiça do Piauí (TJPI) aceitou a denúncia no mesmo ano, por meio de sua Vara Agrária, mas até o momento não chegou a um veredito. A falta de resposta definitiva sobre o caso tem se transformado em ameaça à população local (Freitas, 2024).

Por um lado, faltam respostas do TJPI em relação à denúncia de 2016 do Ministério Público, com impacto direto na segurança de povos tradicionais. Por sua vez, a Justiça estadual tem dado decisões liminares a favor de supostos donos de terras na mesma área do esquema denunciado (Freitas, 2024).

Conforme Caio Freitas, o TJPI autorizou o registro de fazendas, mesmo diante de indícios de ligação com a grilagem de 124 mil hectares. O desembargador José James Gomes Pereira, da 2ª Câmara Especializada Cível do TJPI, é um dos que têm concedido decisões a favor de supostos proprietários de terras na região. Em julho de 2023, por exemplo, Pereira emitiu uma liminar desbloqueando os registros de duas fazendas na área suspeita. Documentos obtidos pela reportagem do portal Agência Pública revelam a conexão de um dos imóveis liberados com um dos acusados de coordenar a suposta grilagem (Freitas, 2024).

Conforme denuncia Freitas (2024), não foi a primeira vez que o desembargador decidiu em favor de acusados. Em 2021, Pereira liberou, de uma só vez, os 124 mil hectares de terras sob suspeita do MPPI, por meio de liminar em resposta ao pedido de desbloqueio parcial de apenas uma das fazendas da região. O autor da solicitação foi um advogado que havia sido preso, anos antes, por suspeita de envolvimento em esquema de grilagem (Freitas, 2024).

Na sentença, os réus denunciados foram favorecidos, incluindo Euclides de Carli, que foi defendido na ação que tramitou no TJPI pelo escritório de advocacia do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB, 2019-2026, dois mandatos consecutivos) (Freitas, 2024). Em todo esse processo as comunidades envolvidas nem sequer haviam sido citadas ou intimadas, desconhecendo oficialmente a existência da ação. Atualmente, a DPE/PI pede, em nome das comunidades, a anulação do caso por conta de erro processual (Freitas, 2024).

Dentro desse contexto, além das problemáticas nos trâmites judiciais, a publicação do Tribunal Permanente dos Povos chama a atenção para o papel do Estado nas violações de direitos das comunidades, citando que toda a destruição ambiental e violências provocadas pelas grilagens é também de responsabilidade do Estado e dos poderes públicos (Aguiar et al., 2022).

Elencam assim inúmeras fragilidades, como o registro de abuso de poder por parte da polícia, que atua de maneira desproporcional e parcial em favor das empresas do agronegócio. Citam que a Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado do Piauí (Semar/PI) e a Secretaria de Meio Ambiente dos Municípios de Baixa Grande do Ribeiro e Santa Filomena não realizam a fiscalização adequada e falham em tomar providências contra o desmatamento ilegal e a degradação dos recursos hídricos.

Destacam ainda que essas secretarias concedem autorizações para a supressão de vegetação sem verificar a regularidade dos títulos de domínio apresentados pelas empresas, desconsiderando a ocupação tradicional das comunidades. Além disso, sinalizam que o Instituto de Terras do Piauí (Iterpi) infringe os direitos dos povos ao priorizar a regularização das terras para o agronegócio, em detrimento dos direitos das comunidades tradicionais (Aguiar et al., 2022).

Denunciam ainda que o Banco Mundial (BM) é o principal financiador do governo do estado do Piauí para a regularização de terras griladas, sendo, portanto, responsável por induzir o desmatamento, além de negligenciar a existência de conflitos fundiários e as violências contra os povos no estado. Além do mais, vem financiando a implementação do Cadastro Ambiental Rural (CAR) na modalidade individual, o que na região significa mais um instrumento de legitimação da grilagem de terras por fazendeiros (Aguiar et al., 2022).

A publicação do TPP denuncia que o Poder Legislativo estadual, apesar de ter aprovado legislação que avança no reconhecimento de direitos e obrigações do Estado quanto aos povos indígenas e tradicionais (Lei Estadual nº 7.294/2019), promulgou também, em paralelo, a Lei Complementar nº 244/2019 e a Emenda Constitucional nº 53/2019. Conforme a publicação, elas legitimam, de forma inconstitucional, títulos de terras ilegais registrados até 01/10/2014, promovendo a grilagem de terras em territórios tradicionais (Aguiar et al., 2022).

Por fim, analisam que o Poder Judiciário estadual, apesar da criação do Núcleo de Regularização Fundiária, tem desempenhado um papel ativo em situações de reintegração de posse contra comunidades, além de mostrar omissão nos casos em que essas comunidades recorrem ao judiciário. No âmbito federal, o Ministério da Justiça (MJ, até 2023 responsável pela Funai e pelo processo administrativo de demarcação) estava negligenciando os direitos dos povos indígenas ao não designar unidades da agência para o estado do Piauí, o que impede o avanço nos processos de reconhecimento e demarcação de terras indígenas (Aguiar et al., 2022).

 

Atualizada em Outubro de 2024.

 

Cronologia

1940 – Início da grilagem de terras no território do Vão do Vico pela família Avelino.

1970 – Início de atividades intensivas e extensivas, como a pecuária e as monoculturas de soja, cana-de-açúcar e eucalipto na região sul do Piauí.

1988 – O território de Chupé é invadido por pessoas do Sul do Brasil, principalmente paranaenses e catarinenses, que afirmam serem donas das terras dos ribeirinhos e brejeiros. Utilizando documentos duvidosos e em conluio com cartórios, violam a posse tradicional, ocupam as terras e desmatam várias áreas de vegetação nativa.

2010 – Damha Agronegócios Ltda. compra terras em Vão do Vico griladas pela família Avelino.

2015 – Criação pelo Decreto Federal 8.447 da delimitação geográfica Matopiba (área de fronteira do bioma Cerrado nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia).

2015 – Registra-se a atuação coercitiva da empresa de segurança privada Norte Sul Serviços Privados, escolta armada contratada pela Damha, contra as comunidades indígenas no Vão do Vico.

2016 – O Ministério Público Federal em Corrente (MPF/PI) instaura Inquérito Civil (IC-MPF 1.27.000.002013/2016-90) para apurar a omissão do estado do Piauí na demarcação e titulação dos territórios de Chupé, Vão do Vico e outros vizinhos.

10 de dezembro de 2019 – Criação da lei nº 7.294/2019, que determina que sejam destinadas às comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais as terras públicas e devolutas estaduais por elas ocupadas coletivamente.

2020 – Revogação do Decreto Federal 8.447, com a edição do Decreto 10.473.

2021 – Fazenda Kajubar, situada na Chapada Fortaleza, município de Santa Filomena, inicia desmatamento de cerca de dois mil hectares em áreas sobrepostas às comunidades ribeirinho-brejeiras e ao povo Akroá Gamela.

2021 – Desembargador José James Gomes Pereira decide em favor de acusados e libera, de uma só vez, os 124 mil hectares de terras sob suspeita do MPPI, por meio de liminar em resposta ao pedido de desbloqueio parcial de apenas uma das fazendas da região.

2022 – 124 mil hectares de terra são bloqueados na cidade de Santa Filomena pela Vara Agrária da Comarca de Bom Jesus, devido a suspeitas de grilagem e outras ilegalidades.

2022 – Grupo empresarial relacionado à empresa Bunge disputa a posse dessas terras.

2022 – A Rede Social de Justiça e Direitos Humanos denuncia desmatamentos sem licença ambiental na fazenda Kajubar, com a publicação do Relatório Desmatamento, Grilagem de Terras e Financeirização.

Julho de 2023 – O TJPI, por meio do desembargador José James Gomes Pereira, da 2ª Câmara Especializada Cível, autoriza o registro de fazendas, mesmo diante de indícios de ligação com a grilagem de 124 mil hectares.

2023 – A Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Piauí (Semar/PI) multa duas pessoas em R$ 2 milhões por desmatamentos nas áreas indígenas dos Akroá Gamela e das comunidades ribeirinho-brejeiras.

 

Fontes

AGUIAR, Diana; BONFIM, Joice; PACKER, Larissa. Ribeirinhos/brejeiros do Chupé e indígenas Akroá Gamella do Vão do Vico. Tribunal Permanente dos Povos. Série Eco-Genocídio no Cerrado, Fascículo 10. Disponível em: https://shre.ink/ginl. Acesso em: 13 set. 2024.

BARROS, Ciro. Nos baixões do Piauí, paga-se o preço do progresso do Matopiba. Agência Pública, 17 maio 2018. Disponível em: https://shre.ink/gi9G. Acesso em: 18 set. 2024.

BOND, Letycia. Relatório denuncia relação entre mercado e grilagem no Cerrado. Agência Brasil, São Paulo, 12 jul. 2023. Disponível em: https://shre.ink/gi90. Acesso em: 15 set. 2024.

BRASIL. Presidência da República. Secretaria-Geral. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto Nº 10.473, de 24 de agosto de 2020. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 ago. 2020. Disponível em: https://shre.ink/gxrM. Acesso em: 09 nov. 2024.

CAPACIDADE de armazenagem agrícola cresce 1,8% e chega a 192,2 milhões de toneladas no 2º semestre de 2022. Agência IBGE, 13 jun. 2023. Disponível em: https://shre.ink/gx8f. Acesso em: 07 nov. 2024.

COMUNIDADES denunciam violências e desmatamento no Cerrado piauiense. Combate Racismo Ambiental, 29 mar. 2023. Disponível em: https://shre.ink/gi9t. Acesso em: 20 set. 2023.

FREITAS, Caio. Demora da Justiça em caso de grilagem ameaça famílias no Cerrado do Piauí. Combate Racismo Ambiental. 04 set. 2024. Disponível em: https://shre.ink/ginU. Acesso em: 13 set. 2024.

GONZAGA, Gorete. Nova Lei de regularização fundiária é sancionada e entra em vigor. Interpi, Piauí, 13 dez. 2019. Disponível em: https://shre.ink/gi9j. Acesso em: 24 set. 2024.

MURER, Beatriz Moraes; FUTADA, Silvia de Melo. Painel de Dados. Unidades de conservação no Brasil. Instituto Socioambiental. 12 nov. 2024. Disponível em: https://shre.ink/gx80. Acesso em: 12 nov. 2024.

OBSERVATÓRIO de Conflitos Socioambientais do Matopiba. UNB, 2024. Disponível em: https://shre.ink/gi9K. Acesso em: 18 set. 2024.

PAULINO, Mariella. Comunidades denunciam violências e desmatamento no Cerrado piauiense. Comissão Pastoral da Terra no Piauí – CPT/PI, 28 mar. 2023. Disponível em: https://shre.ink/gi9L. Acesso em: 24 set. 2024.

PITTA, Fábio Teixeira; VEGA, Gerardo Cerdas. Impactos da expansão do agronegócio no Matopiba: Comunidades e meio ambiente. ActionAid, Rio de Janeiro, 2017. Disponível em: https://shre.ink/gi9N. Acesso em: 15 set. 2024.

PITTA, Fábio; MENDONÇA, Maria Luisa; STEFANO, Daniela. Desmatamento, grilagem de terras e financeirização: Impactos da expansão do monocultivo da soja no Brasil. Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. Maio 2022. Disponível em: https://shre.ink/gink.  Acesso em: 13 set. 2024.

TORSIANO, Richard. A governança de terras no estado do Piauí: experiência do Núcleo de Regularização Fundiária da Corregedoria Geral de Justiça do Estado. Brasília, 2022. Disponível em: https://shre.ink/gi9L. Acesso em: 24 set. 2024.

 

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