SC – Comunidade Areais da Ribanceira aguarda próxima etapa do processo de regularização

UF: SC

Município Atingido: Imbituba (SC)

População: Agricultores familiares, Pescadores artesanais

Atividades Geradoras do Conflito: Atuação de entidades governamentais, Atuação do Judiciário e/ou do Ministério Público, Especulação imobiliária, Hidrovias, rodovias, ferrovias, complexos/terminais portuários e aeroportos, Indústria química e petroquímica

Impactos Socioambientais: Alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território, Contaminação ou intoxicação por substâncias nocivas, Falta / irregularidade na demarcação de território tradicional, Poluição atmosférica

Danos à Saúde: Insegurança alimentar, Piora na qualidade de vida, Violência – ameaça

Síntese

A comunidade tradicional dos Areais da Ribanceira está localizada no município de Imbituba, litoral centro-sul do Estado de Santa Catarina, a aproximadamente 85km ao sul de Florianópolis. Como está numa área litorânea, uma zona de confluência entre lagoa e o mar, a região dos Areais sempre foi ameaçada por uma série de atividades econômicas, como atividades industriais, portuárias e especulação imobiliária, que marcam, desde a década de 1970, os conflitos em torno da comunidade, que luta pela regularização fundiária para se manter em seu território tradicional. Hoje, a associação que está apoiando aos moradores dos Areais da Ribanceira nos enfrentamentos é a Associação Comunitária Rural de Imbituba (Acordi).

Os Areais da Ribanceira constituem uma área de 240 hectares, onde reside um grupo de cerca de 100 famílias de agricultores e pescadores com origem açoriana e indígena, cuja presença no local remonta há aproximadamente 200 anos. As atividades praticadas pelo grupo, que tem fortes laços de parentesco, perpassam o cultivo da terra, a extração de plantas medicinais e a pesca artesanal. Dentre os produtos mais comuns produzidos e/ou extraídos nos Areais estão os aipins, as mandiocas e o butiá, um fruto oriundo do butiazeiro, uma palmeira muito comum na região. Apesar de terem sido pouco a pouco impactados pelo processo de urbanização e industrialização da área, persistem sendo, essencialmente, uma comunidade agrícola.

Um dos últimos movimentos em relação ao processo de regularização foi a contratação, por parte do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), de uma empresa de consultoria para elaborar um relatório antropológico de caracterização histórica, econômica, sociocultural e ambiental para a comunidade. Enquanto isso, o povo dos Areais da Ribanceira segue na luta pela manutenção da sua tradicionalidade e de suas práticas, que abrangem suas formas de produzir e de subsistir, mas também de ver, estar e pensar o mundo.

Em 2019, o Incra aprovou um relatório antropológico que reconhece a comunidade como tradicional de agricultores e pescadores artesanais. Esse relatório compõe o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) a ser elaborado e publicado pelo Incra como próxima etapa no processo de regularização da comunidade.

 

Contexto Ampliado

A comunidade tradicional dos Areais da Ribanceira está localizada no município de Imbituba, litoral centro-sul do Estado de Santa Catarina, a aproximadamente 85km ao sul de Florianópolis. O fato de estar localizada numa área costeira fez com que, historicamente, ela fosse alvo de diferentes grupos econômicos que, com interesse nas potencialidades do local, acabaram acirrando conflitos em torno do acesso às suas terras tradicionalmente ocupadas.

Estes conflitos têm origem, principalmente, em propostas de desenvolvimento relacionadas aos interesses industriais, portuários e à especulação imobiliária. Por isso, desde a década de 1970, a comunidade enfrenta dificuldades no seu reconhecimento enquanto comunidade tradicional, e busca, neste sentido, a regularização fundiária para garantia dos direitos sobre seu território.

Na década de 1970 foram feitas as primeiras desapropriações pela Companhia do Desenvolvimento Industrial de Santa Catarina (Codisc), que tinha como objetivo criar um complexo industrial carboquímico em Imbituba, que se tornaria logisticamente viável pela existência do Porto Henrique Lage e da Estrada de Ferro Donna Thereza Christina (EFDTC).

A área dos Areais da Ribanceira está localizada numa planície litorânea do município de Imbituba, num local caracterizado pela presença de muitas dunas fixas e vegetadas, as quais os moradores denominam de “lomba pelada”, que se formam em decorrência do frequente transporte e depósito de sedimentos por conta da ação de ondas, correntes, marés e ventos. A região abrange também uma diversidade biológica especial, tendo áreas de restinga e de brejos. A restinga, por sua vez, é caracterizada por intenso manejo humano e é alternada por mosaicos de roças e cultivos tradicionais.

O município de Imbituba conta com três Unidades de Conservação (UCs), sendo uma já criada e duas em processo de criação: a Área de Proteção Ambiental (APA) da Baleia Franca; a Reserva Extrativista (RESEX) da Pesca Artesanal de Imbituba e Garopaba; e a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Areais da Ribanceira. A APA foi criada no ano de 2000 e abrange 156.100 hectares da costa centro-sul de Santa Catarina, sendo que parte coincide com o território dos Areais da Ribanceira. A função desta APA é proteger as enseadas de maior concentração de baleias francas com filhotes, bem como importantes áreas terrestres com costões rochosos, dunas, banhados e lagoas.

A criação da RESEX da Pesca Artesanal de Imbituba e Garopaba foi solicitada ao Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) em 2005 e já cumpriu com todas as etapas, faltando apenas que o Ministério do Meio Ambiente (MMA) encaminhe o processo à Casa Civil e, por fim, à Presidência da República. Porém, a disputa de interesses políticos e econômicos na região é um dos fatores que vêm atrasando a conclusão do processo. Por fim, desde 2005, está sendo analisada a criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Areais da Ribanceira, cujos detalhes encontram-se adiante.

Conforme aponta Barbosa (2011), os limites propostos para a RESEX inserem-se parcialmente nos limites da APA Baleia Franca, envolvendo as lagoas de Ibiraquera, Doce, Encantada e pequenas lagoas de Garopaba. Para Adriano (2011), citado por Barbosa (2011), os limites não incidem sobre propriedade privada, apenas sobre terrenos da União, da Marinha, banhados e nascentes que são partes da lagoa, além da lâmina d`água.

A RESEX, se criada, faria vizinhança ao território tradicional dos Areais da Ribanceira. Tanto a RESEX quanto a RDS se configuram como importantes instrumentos de garantia dos direitos de povos e comunidades tradicionais do município de Imbituba. Mesmo com a grande proximidade geográfica entre as duas UCs, e, mesmo que ambas estejam envolvidas em processos históricos, culturais e contextos semelhantes, elas carregam um diferencial quanto ao que se destinam: a RESEX está direcionada à comunidade tradicional extrativista de pescadores artesanais, que tem nos espelhos d`água o seu território; a RDS, por sua vez, seria direcionada especialmente à comunidade tradicional dos Areais da Ribanceira, composta de agricultores e pescadores que conjugam estas duas atividades, mas têm na agricultura a sua principal forma de viver. (Barbosa, 2011)

Segundo aponta Aline Barbosa (2011) – cujo trabalho de pesquisa bem detalhado é uma das principais fontes desse relato -, os Areais da Ribanceira são constituídos por um grupo de famílias de agricultores e pescadores de origem açoriana e indígena que reside no mesmo local há aproximadamente 200 anos. O grupo, composto de unidades familiares com fortes relações de parentesco entre si, pratica o cultivo da terra e a extração de plantas medicinais em interação com a pesca artesanal. A maior parte dos moradores está hoje distribuída no entorno dos Areais: no Arroio, na Ribanceira de Baixo (Vila Esperança), na Divinéia (Vila Nova Alvorada), na Ribanceira ou Barranceira, na Aguada (Vila Alvorada), na Nova Brasília e no Morro do Mirim. Apesar do intenso processo de urbanização ocorrido a partir da década de 1970, que transformou os locais de moradia da comunidade em áreas urbanas, os Areais da Ribanceira são essencialmente uma comunidade de produção agrícola.

Conforme o Ministério Público Federal (MPF) afirma, as terras da comunidade dos Areais da Ribanceira abrangem 240 hectares e são ocupadas por cerca de 100 famílias. A forma de uso comum dos recursos naturais constitui um modo específico de produzir, trabalhar e viver. Nas roças, os principais produtos são a mandioca, o aipim, o milho, o amendoim, a batata-doce, a abóbora, a melancia, o melão, o pepino e outros. Tais cultivos são realizados muitas vezes de forma simultânea entre diferentes culturas. A principal espécie cultivada, no entanto, é a mandioca, que nos areais é classificada em dois grupos: o da mandioca e o dos aipins.

Estudos realizados por Zank (2012), mencionados por Mombelli (2013), apontam que existem, na comunidade, aproximadamente 30 variedades de mandioca, 15 de aipim e 218 identificações de nomes populares dos tubérculos, demonstrando a diversidade da produção. De acordo com Mombelli (2013), a diferença entre a mandioca e o aipim depende do saber local com relação às partes da planta, como cor, forma de rama, folha, raiz, germinação de sementes, arquitetura, espalhamento etc. Além disso, é resultado também de fatores culturais, como, por exemplo, a importância histórica da espécie no modo de vida e na alimentação local (a mandioca é comumente utilizada na fabricação de farinha e o aipim pode ser consumido in natura, sem processamento prévio por conter baixo teor de ácido cianídrico, uma substância venenosa presente na mandioca), mas também decorre de aspectos sociais, como as redes de troca entre agricultores.

Além disso, a coleta do butiá e da palha do butiazeiro representam outras importantes práticas extrativistas que ocorrem na área. A comunidade denomina de butiazeiro o pé da palmeira que é abundante nesta região e de butiá o fruto desta palmeira. O fruto é utilizado tanto para o consumo in natura quanto para o preparo de doces, geleias, sucos, cachaça, sorvetes e outros, que também são comercializados pela comunidade. A palha do butiazeiro também é aproveitada para a fabricação de chapéus e outros adereços, além de ser utilizada em cerimônias religiosas. (Barbosa, 2011)

Além da intensa relação com a terra, a localização dos Areais da Ribanceira permite que a comunidade tenha também uma estreita relação com as águas, conforme aponta Barbosa (2011). A comunidade está localizada na confluência daquilo que os moradores denominam como três mares: Mar Grosso (Oceano Atlântico, a leste), Mar Manso (Lagoa do Mirim, a sudoeste) e Lagoa de Ibiraquera (a norte). Nestes locais, os agricultores e pescadores também tiram parte do seu sustento. Na Lagoa de Ibiraquera e na Lagoa do Mirim, a comunidade costuma tarrafear camarão e pegar siri. Já no lado voltado para o oceano, as espécies de peixes mais pescadas sempre foram a tainha, a anchova e a garoupa. Dos costões rochosos no mar, também são extraídos mariscos.

De acordo com Mombelli (2013), o trabalho familiar, combinado com a prática itinerante do cultivo da mandioca, aipim e outros, da coleta de plantas medicinais, da prática da pesca artesanal e do extrativismo da palmeira butiá não representam meramente atividades produtivas, mas uma modalidade de apropriação da terra que expressa um princípio-valor fundante da comunidade, que é referência na forma destes sujeitos de ver, estar e se pensar o mundo.

Conforme aponta Sampaio (2011), mencionado por Barbosa (2011), dessa forma, o contínuo processo de expropriação da comunidade tradicional dos Areais da Ribanceira implica numa grande perda da agrobiodiversidade local e, por sua vez, na perda das áreas naturais de butiá; de restinga; na perda da barreira natural contra o vento e contra marés que as dunas proporcionam; além da perda de práticas e conhecimentos próprios dessa comunidade, que estão associados ao uso tradicional das terras.

A partir de informações coletadas por Barbosa (2011), durante as oficinas do Projeto Nova Cartografia Social – do qual participou a comunidade com a publicação de um fascículo contendo um mapeamento das práticas e modos de vida, em 2011 -, a princípio, as terras dos Areais da Ribanceira eram terras públicas, pertencentes ao Estado; a fonte, entretanto, não especifica a qual nível de governo pertenciam (federal, estadual, municipal). A família Martins foi a primeira a receber terras doadas pelo Estado e, depois dela, outras famílias foram adquirindo áreas para plantio nos Areais por meio de herança (repartição de terras) ou troca.

Como conta um agricultor durante as oficinas, trocava-se o que se produzia por uma determinada porção de terra, ou seja, os terrenos não eram vendidos por dinheiro, mas sim, trocados pela produção de alimentos. De acordo com Barbosa (2011), a comunidade não se recorda com precisão as datas destes fatos, mas associa os acontecimentos à época de Henrique Lage, grande empresário que exerceu forte poder político e econômico em Imbituba, tendo recebido a concessão para construção do Porto em 1917 e criado a Companhia Docas de Imbituba, em 1922. Lage faleceu em 1941. Portanto, tais fatos teriam acontecido entre os anos 1920 e 1940.

No entanto, segundo relatos obtidos por Barbosa (2011), ainda na primeira metade do século XX, a empresa Emacobrás Imóveis Comércio e Serviços Ltda. passou a ser a principal proprietária das terras de Imbituba, se apropriando de cerca de 70% das terras nos Areais da Ribanceira. Assim, passou a arrendar terras para os agricultores locais, cobrando um terço da produção de cada agricultor pelo arrendamento. Cabe salientar que a Emacobrás pertence ao Grupo Catão, grupo de forte poderio político e econômico na região que, além desta empresa de imóveis, também foi responsável pela administração do Porto de Imbituba (Porto Henrique Lage), que é público, mas foi administrado pelo Grupo de 1941, quando Lage faleceu, até o ano de 2012, por meio da Companhia Docas de Imbituba.

De acordo com Adriano (2011), mencionado por Barbosa (2011), o então prefeito de Imbituba era Álvaro Catão, ligado ao Grupo Catão e à Emacobrás, além de ser gerente da Estrada de Ferro Dona Teresa e diretor do Porto. Isto explica o fato de as terras terem sido compradas irregularmente pela empresa, que era da família do próprio prefeito da cidade.

A década de 1970 foi marcada por inúmeras desapropriações em Imbituba, realizadas pela Companhia do Desenvolvimento Industrial de Santa Catarina (Codisc) com o intuito de se criar um complexo industrial carboquímico no município. De acordo com Mombelli (2013), tratava-se de um projeto de ampliação do complexo carbonífero de Santa Catarina que, por meio da instalação de indústrias, se propunha a aproveitar os resíduos provenientes do beneficiamento do carvão. O projeto integrava o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado de Imbituba (PPDDI) e a cidade de Imbituba foi escolhida pela existência do Porto Henrique Lage e de uma estrada de ferro (Dona Tereza Cristina) que interliga a cidade à região carbonífera. Para sua implementação, por sua vez, era necessário disponibilizar áreas (para mais informações sobre outros conflitos envolvendo o setor carbonífero e seus impactos na região sul de Santa Catarina, veja a ficha aqui).

Nos Areais, tanto a Emacobrás quanto as famílias que possuíam títulos de terras – além daquelas situadas próximas ao porto, algumas delas sem o título – foram desapropriadas. Em contrapartida, algumas receberam indenizações irrisórias, o que dificultou a compra de outras residências ou terrenos. Muitos moradores foram transferidos para o bairro da Divinéia, o qual, além de ser desconhecido pelos mesmos na época, não apresentava infraestrutura suficiente. Foram cerca de 2.000 famílias removidas, que ficaram mais distantes do mar e das suas áreas de produção de mandioca. Como aponta Souza (2007), a primeira consequência da desapropriação da área próxima ao porto foi a queda das exportações de farinha de mandioca de 24.292 toneladas para 8.290, entre 1970 e 1971. Mesmo com limitações, a prática da agricultura itinerante continuou sendo desenvolvida na área dos Areais, mesmo com a distância imposta entre o novo bairro e as áreas de cultivo.

Todavia, como aponta Barbosa (2011), do conjunto das indústrias previstas pelo PPDDI para compor o complexo industrial carboquímico, apenas uma foi instalada: a Indústria Carboquímica Catarinense (ICC). A partir deste processo de aquisição e desapropriação de terras, boa parte dos terrenos dos Areais da Ribanceira voltou a pertencer ao Estado de Santa Catarina e ao governo federal, que administrava a ICC.

A ICC entrou em atividade em 1979. O funcionamento da ICC, no entanto, trouxe inúmeros prejuízos para a população, como danos à saúde e impactos ambientais, sendo marcado por uma série de irregularidades. Souza (1997) indica que a cidade passou a ser marcada pela poluição da fumaça vermelha porque, no início do seu funcionamento, a indústria não possuía chaminés com dispositivos para filtrar os gases emitidos, fazendo com que a cidade acordasse encoberta por uma fuligem grossa de pó vermelho, que eram os resíduos de óxido de ferro gerados na produção industrial. Além da fumaça, o pó do óxido de ferro era transportado por caminhões até uma área próxima da indústria, ocasionando diversos incômodos para a população.

Outro problema era referente à produção diária de gesso branco, que era depositado ao lado da empresa, formando uma grande montanha. Ambos os produtos seriam utilizados para alimentar o setor siderúrgico local e as empresas de cimento que, no entanto, não vieram a se concretizar. Após o encerramento das atividades da indústria no ano de 1992, a estrutura da ICC ficou abandonada, tendo sido comprada pela Prefeitura de Imbituba apenas por questões burocráticas a serem resolvidas com a União. A indústria foi declarada como antieconômica pelo governo do presidente Fernando Collor de Mello, mesmo após algumas tentativas de reativação por parte de trabalhadores e políticos da região (para mais informações, ver ficha correspondente aqui).

Porém, em 1998, a empresa Cimento Rio Branco, do Grupo Votorantim, ofereceu o valor de R$ 2,3 milhões numa licitação promovida pela ICC, mas acabou renunciando à compra dos bens da indústria. Mais de dez anos depois do encerramento de suas atividades, em fevereiro de 2000, segundo relata Barbosa (2011), a ICC, com uma dívida milionária acumulada, acabou doando todos os seus bens à empresa Petrobras Gás S/A (Gaspetro). Meses depois, em maio de 2000, a Gaspetro resolveu vender todos os bens recebidos da ICC à empresa Engessul Indústria e Comércio Ltda., por um valor total de R$1,4 milhão, sem ter havido licitação ou avaliação dos bens.

A partir daí, a Engessul passou a cercar a área e fazer a segurança privativa do local, restringindo o acesso da comunidade. Mesmo com a liberdade de acesso cerceada, os moradores se organizaram e voltaram a ocupar a região. Neste mesmo ano, a empresa entrou com uma ação de reintegração de posse na Vara Civil de Imbituba, individualizando o processo contra cinco moradores da comunidade, consistindo numa ação contra pessoas físicas como forma de desestabilizar a organização coletiva.

Devido a estas ofensivas, a comunidade dos Areais da Ribanceira se organizou e fundou, em 24 de junho de 2002, a Associação Comunitária Rural de Imbituba (Acordi), entidade que passou a representar e defender institucionalmente os agricultores e pescadores da comunidade. Já neste mesmo ano, Barbosa (2011) aponta que a associação começou a realizar manifestações e passeatas no centro de Imbituba para repudiar a venda das terras sem licitação pública à Engessul, dando visibilidade ao conflito instalado na área. Apesar de ter tido a sua sede destruída inicialmente por uma ação clandestina, a comunidade reconstruiu um novo galpão para abrigar a Acordi.

Ressalta-se que é na sede da associação que ocorre também, anualmente, a Feira da Mandioca, evento de grande visibilidade para a comunidade e que conta com o apoio do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), de movimentos ambientalistas, associações, conselhos comunitários e sindicatos da região. A Igreja Católica, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a Companhia Integrada de Desenvolvimento de Santa Catarina (Cidasc) também passaram a fazer parte da feira.

No ano de 2004, a Engessul, segundo Barbosa (2011), em mais uma tentativa de enfraquecimento da comunidade, passou a fazer contratos de comodato (uso temporário de bens) com os moradores. De acordo com a autora, foram assinados cerca de dez contratos. Os moradores, atualmente, reconhecem que não tinham conhecimento do que estavam fazendo e que foram persuadidos a assinar algo que não os beneficiava.

Como se não bastasse, no dia 18 de fevereiro de 2005, a Engessul protagonizou uma ação ilegal e violenta. De acordo com Barbosa (2011) e Mombelli (2013), foi destruída a casa de uma família que residia na área em que a empresa buscava a reintegração de posse. A ação se deu durante a noite, enquanto a família, composta por um casal e três crianças, foi abordada com a presença de homens que os retiraram à força de sua casa e a demoliram com o uso de uma retroescavadeira.

Após o incidente, ainda em fevereiro, o Ministério Público Federal (MPF) abriu uma Ação Civil Pública (ACP) n° 2006.72.16.000828-9 contra a Engessul, o titular da empresa, Manoel Duarte Ferreira, a Gaspetro e a União. A ação questionava a legalidade da venda dos bens da ICC à Engessul, realizada sem licitação pública, e tinha o intuito de declarar a nulidade da venda dos imóveis à empresa, realizando a manutenção da posse de agricultores e pescadores, há décadas na área. A ACP foi julgada improcedente pela Justiça Federal da Subseção Judiciária de Laguna (SC), mas dois Agravos de Instrumento ficaram ainda pendentes contra a decisão da Justiça. (Barbosa, 2011)

Neste mesmo ano, Barbosa (2011) aponta que outro caminho vislumbrado pela Acordi para proteger o território dos Areais da Ribanceira foi a entrada no processo de criação de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) no local. Após discutir junto à comunidade, em 2006, a associação recorreu ao Ministério do Meio Ambiente (MMA) solicitando estudos para criação da Unidade de Conservação.

Em junho de 2006, foi aberto no MMA o processo nº 02001.002582/2006-88. Entre 2006 e 2008 realizaram-se estudos parciais, vistorias técnicas, atividades e reuniões, importantes para a elaboração de relatórios. Até a conclusão do trabalho de Barbosa, a informação que se tinha era de que o processo se encontrava na Coordenação de Criação de Unidades de Conservação -CCUC/Direp, do MMA. Mombelli (2013) aponta que, desde então, a criação da UC depende da complementação do Relatório Técnico Socioeconômico e Fundiário e do Relatório Socioeconômico.

Em 2008, pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) foram convidados pela Acordi para participar de uma palestra durante a realização da 5ª Feira da Mandioca na comunidade. Desde então, passaram a ser desenvolvidos estudos dentro dos Areais da Ribanceira referentes aos usos, manejos e conhecimentos relacionados às atividades produtivas, tanto a partir de projetos de pesquisa quanto de extensão universitária. Os principais núcleos parceiros da comunidade foram: o Laboratório de Ecologia Humana e Etnobotânica, vinculado ao Departamento de Ecologia e Zoologia (Centro de Ciências Biológicas); o Laboratório de Estudos do Espaço Rural, vinculado ao Departamento de Geociências (Centro de Filosofia e Ciências Humanas) e o Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações Interétnicas (NUER), vinculado ao Departamento de Antropologia (Centro de Filosofia e Ciências Humanas). Além da parceria com a universidade, a Acordi também conta com o apoio do Ponto de Cultura Engenhos da Farinha, desenvolvido pelo Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupos (Cepagro), da Cáritas Brasileira, do MST, da Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina (Cidasc) e da Rede Puxirão dos Povos e Comunidades Tradicionais.

Em 2008, foi aberto o primeiro de três processos administrativos no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), relativos aos Areais. O processo n° 54210.001457/2008-51 tinha como objetivo identificar um imóvel rural para ser desapropriado para fins de Reforma Agrária, conforme solicitado pela Acordi. Para avaliar esta solicitação, foi realizado o levantamento da cadeia dominial de diversas matrículas de imóveis da região dos Areais da Ribanceira. A proposta de identificação condizia com as diretivas e metas estabelecidas no II Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), de 2003. O II PNRA, ao contrário do primeiro, de 1985, reconheceu a diversidade social e cultural da população rural e as especificidades vinculadas às relações de gênero, geração, raça e etnia; ou seja, reconhecendo os direitos territoriais das comunidades rurais tradicionais, suas características econômicas e culturais.

Em setembro de 2009, a Engessul foi comprada pela empresa Sulfacal Indústria e Comércio de Gesso Ltda. No entanto, como as duas empresas estão localizadas no mesmo endereço e possuem o mesmo sócio-administrador, infere-se que se tratou de uma estratégia de mudança de razão social para que a Sulfacal assumisse a propriedade e a titularidade das terras nos Areais, tergiversando as irregularidades cometidas pela empresa antiga que foram herdadas pela atual, como apontou Barbosa. (2011)

Outro processo (n° 54210.001190/2009-82), de 2009, tramitava no Incra e tinha o objetivo de desapropriar um imóvel rural correspondente a uma área de 240,68 hectares que estaria omisso no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR). Com isso, buscava-se avaliar a criação de um projeto de assentamento no local. Para tal, seria necessário elaborar um Laudo Agronômico de Fiscalização (LAF) e peças técnicas (plantas e memoriais descritivos) da área. No entanto, em 2010, o LAF concluiu que a área apresentava limitações para o uso agrícola e, portanto, era inviável para fins de Reforma Agrária. Barbosa (2011) menciona que, neste processo, a interação entre a comunidade e o ambiente foi desprezada, e os pescadores e agricultores foram tratados como meros posseiros ou comodatários.

Segundo noticiado pelo MPF (2010), a Comissão de Direitos e Garantias Fundamentais de Amparo à Família e à Mulher, da Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina (Alesc), visitou a população dos Areais da Ribanceira e constatou que os membros da comunidade vinham sofrendo com diversos atentados aos direitos humanos, como perseguições, cárcere privado, tortura, destruição de benfeitorias e impedimento de trabalhar na região.

No contexto de diversas pressões e intimidações, entre os dias 28 e 29 de janeiro de 2010, mais uma injustiça foi cometida. Uma ação da Polícia Militar do Estado de Santa Catarina (PMSC) resultou na prisão de três pessoas em Imbituba; dentre elas, a presidente da Acordi, Marlene Borges. Grávida de três meses e com uma gestação de risco, Marlene, mesmo nesta condição, não recebeu nenhum tratamento especial. As prisões foram feitas preventivamente sob autorização do Poder Judiciário de Santa Catarina no município de Imbituba. Os presos eram acusados pelo judiciário de esbulho possessório (tomada violenta de um bem), formação de quadrilha e incitação à violência. Graças a um pedido de habeas corpus, os acusados foram libertados no dia 30 de janeiro.

Após este fato, protestos contra a criminalização dos movimentos sociais foram realizados em Imbituba com a participação de membros da comunidade, em parceria com o MST. Ainda no início do ano, um abaixo-assinado criado pelos moradores buscou afirmar a autoidentificação dos mesmos enquanto Comunidade Tradicional de Agricultores e Pescadores dos Areais da Ribanceira. (Barbosa, 2011)

Em março de 2010, foi concluído um processo de reintegração de posse movido pela Engessul, com decisão desfavorável à comunidade. A decisão judicial ordenou que os “ocupantes irregulares” deixassem a área em até 30 dias, sob pena de despejo com ação da Polícia Federal (PF). Mesmo assim, a comunidade permaneceu ocupando o local e mantendo suas práticas. A Acordi buscou outros instrumentos jurídicos para reverter a decisão e entrou com uma Ação Rescisória com pedido de tutela antecipada para sustação do cumprimento junto ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4). O prazo de desocupação da área foi prorrogado por mais alguns dias. No entanto, não evitou a ação de despejo.

Em abril de 2010, a Acordi entregou ao MPF em Tubarão (SC) uma carta e vários documentos relatando o histórico do conflito da comunidade, bem como as práticas tradicionais dos Areais da Ribanceira. A associação solicitou amparo por parte do MPF em virtude da iminente ação de despejo. O MPF encaminhou ao Incra, no mesmo mês, um ofício requisitando a instauração de um processo administrativo para reconhecer e regularizar a área dos Areais, segundo indicou Barbosa (2011). Trata-se do terceiro e último processo aberto em 2010. Fruto deste pedido foi a determinação da realização de um laudo antropológico pelo Incra visando demonstrar que se tratava efetivamente de uma comunidade tradicional. Para isso, deveriam ser consideradas as peculiaridades da comunidade num possível processo de destinação para a Reforma Agrária.

No dia 12 de julho de 2010, a Acordi (Associação Comunitária Rural de Imbituba) promoveu um ato público com dezenas de pessoas, representando movimentos sociais, sindicatos, membros de universidades, agricultores e populares da região, em defesa dos agricultores ameaçados de despejo por uma ordem judicial.

De acordo com o blog Imbituba Urgente, o ato atravessou a cidade e teve como principal objetivo mostrar à comunidade local, estadual e nacional o que vinha ocorrendo com os agricultores dos Areais da Ribanceira. A manifestação parou em frente aos principais órgãos públicos da cidade de Imbituba, Prefeitura, Câmara dos Vereadores e Fórum da comarca, e os manifestantes distribuíram um jornal editado pela Acordi. Os representantes das diversas entidades presentes ao ato discursaram, esclarecendo os fatos e pedindo o apoio da população e das autoridades constituídas, buscando reverter a ameaça de despejo.

Antes do final da manifestação foi decidido por todos que a vigília e a resistência continuariam. Um momento que emocionou a todos os presentes foi quando Altair Lavratti, membro da direção estadual do MST, saudou com palavras de ordem o nascimento do pequeno Davi, filho de Marlene Borges, presidente da Acordi, presa no início do ano já grávida enquanto organizava os agricultores da associação.

Apesar dos esforços, em 28 de julho de 2010, contrariando a determinação judicial que atribuía a responsabilidade da operação à PF, cerca de 50 policiais militares, juntamente com a cavalaria e a Polícia de Patrulhamento Tático (PPT), chegaram aos Areais da Ribanceira e destruíram quatro casas. Barbosa (2011) conta que o Caminho dos Martins, uma das passagens mais antigas utilizadas pela comunidade e por moradores da região, foi obstruída.

Depois desta ação, os moradores ficaram encurralados num espaço de apenas 24,3 hectares e sofreram diversas formas de pressões e ameaças, o que causou imenso abalo emocional, psicológico, material e econômico às famílias. A sede da Acordi e o engenho de farinha comunitário também ficaram sob ameaça de destruição. Porém, posteriormente, foi identificado que as áreas acima citadas (de 24,3 hectares no total) não pertenciam a Sulfacal.

No dia 02 de agosto de 2010, o Procurador da República Celso Antonio Tres moveu a segunda ACP contra a Engessul e a Sulfacal na Justiça Federal, subseção de Laguna (SC). A ACP nº 5000356-89.2010.404.7216, com pedido de tutela liminar, visava assegurar a posse de terra ocupada e cultivada pela comunidade tradicional enquanto tramitam no Incra e no Instituto Chico Mendes da Biodiversidade (ICMBio) os respectivos processos de desapropriação/indenização da área, um envidando a tradicionalidade e outro a instituição de unidade de conservação.

De acordo com a ACP (2010), o MPF requereu a garantia do patrimônio cultural, dos direitos fundamentais da pessoa humana e da função social da propriedade. Celso Tres deu à causa o valor de R$ 100 mil, como valor de alçada, visto que o patrimônio cultural é uma questão de valor inestimável. Conforme divulgado pelo MPF (2010), a Justiça Federal indeferiu, em 1º grau, o pedido do procurador Celso Tres para que fosse determinada a suspensão da reintegração de posse e o retorno dos agricultores e pescadores tradicionais aos imóveis; assim, o MPF passou a recorrer da decisão junto ao TRF4, pois entendia que o processo de venda, sem licitação, havia sido feito de maneira irregular.

Cabe ressaltar que, além do conflito instaurado na comunidade, especialmente em decorrência dos problemas gerados pela Engessul/Sulfacal, a própria atuação da Prefeitura Municipal de Imbituba colocava em risco a continuidade das práticas tradicionais nos Areais da Ribanceira, segundo menciona Barbosa (2011). Este risco se devia especialmente pela instituição do Plano Diretor de Desenvolvimento Sustentável de Imbituba (PDDSI), a partir da Lei Complementar n° 2.623/2005.

A autora aponta que as projeções e estratégias de planejamento formuladas para o município de Imbituba, que constam no texto final do PDDSI, trazem pontos incompatíveis com a presença da comunidade nos Areais da Ribanceira. Uma das questões mais problemáticas era o fato de Imbituba ser considerada no plano como um município urbano, ou seja, a área urbana do município abrange todo o seu território, atribuindo aos Areais uma caracterização que não é fiel às práticas da comunidade e que põe em xeque a permanência das atividades agrícolas e pesqueiras na região.

Em 24 de agosto de 2010, o blog Combate Racismo Ambiental publicou notícia informando que uma petição em apoio à luta da Acordi pelo reconhecimento e legitimação da Comunidade Tradicional dos Areais da Ribanceira havia sido lançada. A petição se fundamentou no direito desta comunidade, reconhecido pelo Decreto 6040, de 07 de fevereiro de 2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT). Em seu artigo 3º, a PNPCT define Povos e Comunidades Tradicionais como grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição; direito que também está em concordância com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Em julho de 2013, o Fundo Brasil de Direitos Humanos, em seu edital anual, selecionou o projeto intitulado “Comunidades tradicionais dos Areais da Ribanceira (SC): luta pelo reconhecimento, acesso à justiça e construção de direitos”, que teve como objetivo promover a assessoria antropológica e jurídica ao grupo social auto-identificado como Areais da Ribanceira. As principais atividades que seriam desenvolvidas pelo projeto eram: o monitoramento dos procedimentos jurídicos e administrativos em trâmite perante o MPF, o Incra/SC, o ICMbio e a Secretaria do Patrimônio da União (SPU); a análise das ações judiciais em curso, visando propor novas demandas judiciais necessárias para assegurar os direitos da comunidade; e a produção de estudos cartográficos e topográficos das áreas tradicionalmente ocupadas pelo sistema de uso comum.

No dia 16 de janeiro de 2015, o Diário Oficial da União (DOU) publicou o Extrato de Contrato nº 7.000/2014. O extrato firmou contrato entre o Incra (contratante) e a empresa S.A Consultoria em Gestão de Processos e Qualidade Ltda, com o intuito de elaborar um relatório antropológico de caracterização histórica, econômica, sociocultural e ambiental para a comunidade. O período de vigência do contrato era de um ano (de janeiro de 2014 a janeiro de 2016), no valor total de R$ 79.998,52. O site do Incra noticiou, em 11 de fevereiro de 2015, que, em princípio, ocorreriam preparações realizadas pela equipe de profissionais do instituto junto à comunidade. Durante as reuniões, seriam repassadas as instruções do trabalho de elaboração do relatório.

Em março de 2015, iniciou-se a elaboração do relatório antropológico da comunidade tradicional de agricultores e pescadores artesanais dos Areais da Ribanceira. De acordo com o Incra, as lembranças dos agricultores foram os principiais subsídios para compor o relatório.

“Quando era criança, plantávamos oito, dez roças de mandioca, comia tudo à base de farinha e pagava com farinha o armazém. Dava trabalho viver, mas o gosto do meu velho era ver aquele engenho funcionando e hoje eu tento manter isso. Mas fiquei sem um lugarzinho para plantar um pé de capim”, declarou o agricultor Aurino de Souza em notícia do próprio Incra.

Primeiro passo para o reconhecimento do território, os estudos foram contratados pela Superintendência Regional do Incra em Santa Catarina a fim de obter dados históricos, antropológicos, ambientais e produtivos para avaliar a possibilidade de regularização da área pleiteada pelas famílias.

Marlene Borges, presidente da Acordi, explica que grande parte da área foi repassada do patrimônio público ao privado em negociações suspeitas que não levaram em consideração os ocupantes tradicionais: “Apesar disso, quem continuou na posse da terra foi a população tradicional e não o governo e as empresas”. Mas em 2010, a instalação de uma grande empresa reduziu muito a área cultivável, afetando a sobrevivência da comunidade. “Criei seis filhos nessa roça, mas agora não tem mais terra. É pouca”, disse José João Farias.

Para contemplar toda a história e as necessidades da comunidade, a proposta, segundo Wladimyr Sena Araújo – antropólogo responsável pelo relatório -, é que o trabalho fosse uma construção coletiva, “que tenha o olhar comunitário e a avaliação técnica”.

A primeira etapa consistiu na realização de entrevistas e reuniões a fim de fazer a elaboração de mapas de uso, ocupação, cultura, entre outros. Neste primeiro período também foram realizadas pesquisas históricas com base em documentos pessoais e oficiais. O prazo previsto para conclusão desses trabalhos era de nove meses.

“O Incra estará sempre presente acompanhando os trabalhos da equipe e a expectativa é de que o resultado abra um leque de ações em benefício da comunidade”, conclui Sessuana Paese, chefe da Divisão de Ordenamento do Incra/SC.

Em julho de 2016, durante mais uma edição da Feira de Mandioca, foi lançado o documentário “A Luta pela terra nos Areais da Ribanceira”, produzido com o apoio da Comissão Facilitadora do EREB-Sul 2016 (Encontro Regional de Estudantes de Biologia da Região Sul). O documentário retrata a luta pelo reconhecimento do território como comunidade tradicional e pela manutenção de 200 anos de resistência cultural.

Em fevereiro de 2018, um curso sobre manejo de butiazais foi promovido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em parceria com a Acordi. Uma das propostas do projeto, que acontece desde 2016, é valorizar a comunidade dos Areais da Ribanceira, onde agricultores e pescadores construíram um modo específico de criar, trabalhar e viver que garante a sua reprodução física, social e cultural, combinando a pesca artesanal com o cultivo itinerante da mandioca e a extração de plantas nativas, como o butiá.

Foi graças a esse patrimônio imaterial e genético que centenas de famílias de Imbituba conseguiram se manter também na atividade extrativa ao longo das gerações, colocando o município como uma das principais produtoras de butiá da região da Associação de Municípios da Região de Laguna (Amurel). A importância da extração deste fruto ultrapassa os índices estatísticos, pois na sua extração estão incutidos valores culturais, sociais e ambientais, conforme veicula a Rede Souza de Comunicação (RSC Portal de Notícias).

No mesmo ano, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) concedeu o 4º lugar no Prêmio BNDES de Boas Práticas para Sistemas Agrícolas Tradicionais (SAT) para a Feira da Mandioca de Imbituba. Segundo o próprio BNDES, os SATs podem ser definidos como um conjunto de saberes, formas de organização social, práticas, produtos, técnicas/artefatos e outras manifestações que compõem sistemas culturais manejados por povos e comunidades tradicionais. As dinâmicas de produção e reprodução dos vários domínios da vida social que ocorrem nesses sistemas, por meio das vivências e experiências históricas, orientam também processos de construção de identidades e contribuem para a conservação da biodiversidade.

Esta premiação é uma parceria entre o BNDES, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), e visa mapear os SATs existentes no País e dar visibilidade à importância das boas práticas atreladas a esses sistemas para a sustentabilidade ambiental e para a sobrevivência social e econômica dos grupos que delas se utilizam.

A iniciativa busca ainda gerar subsídios para a implantação no País dos Globally Important Agricultural Heritage Systems (GIAHS), que pode ser traduzido para o português como: Sistema Agrícola Tradicional Globalmente Importante. A Associação Comunitária Rural de Imbituba (Acordi), organizadora da feira, recebeu R$ 70 mil. De acordo com a repórter Lauriena Cagnini, ao longo desses 15 anos, a Feira da Mandioca atraiu milhares de visitantes pela programação cultural, religiosa, educacional e gastronômica dos engenhos de farinha, e promoveu debates sobre desenvolvimento sustentável, bem como atividades relacionadas à culinária, artesanato, música e dança.

De acordo com depoimentos do livro da Nova Cartografia Social, essa feira “sintetiza a força, a luta dos trabalhadores pela permanência nos Areais da Ribanceira”, relata Ademir da Rosa.

Ayres Francusci Cardoso complementa:

“Tudo que nós produzimos, vendemos na feira. A gente produz broa, biju, bijajica e farinha. A feira é tradição, sempre se fazia as festas nos engenhos junto com as festas juninas, fazíamos a nossa farinhada.”

No dia 27 de junho de 2019, o Incra finalmente aprovou o relatório antropológico para caracterização histórica, econômica, ambiental e sociocultural da comunidade tradicional de agricultores e pescadores artesanais dos Areais da Ribanceira. O material, composto de três volumes, é resultado de contrato entre o Incra e a empresa S.A. Consultoria em Gestão de Processos de Qualidade Ltda., e visa dar subsídios para a identificação e delimitação da comunidade.

A versão final do estudo foi acatada pela Comissão de Acompanhamento e Fiscalização instituída para este fim, após ser aprimorada por quatro vezes pela equipe de antropólogos, historiador e engenheira florestal responsáveis pelo trabalho. O relatório antropológico é uma das peças que compõem o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) a ser elaborado e publicado pelo Incra como próxima etapa no processo de regularização da comunidade.

Última atualização: 03 jun. 2019.

Cronologia

1970 – Urbanização na região dos Areais da Ribanceira resulta em inúmeras desapropriações em Imbituba em decorrência de projeto de complexo industrial carboquímico.

1970 – Empresa Emacobrás Imóveis Comércio e Serviços Ltda. passa a ser a principal proprietária das terras de Imbituba, se apropriando de cerca de 70% das terras nos Areais da Ribanceira.

1979 – Entra em atividade a Indústria Carboquímica Catarinense (ICC).

1992 – ICC encerra suas atividades.

1998 – Empresa Cimento Rio Branco, do Grupo Votorantim, oferece o valor de R$ 2,3 milhões numa licitação para a compra da ICC.

Fevereiro de 2000 – ICC doa todos os seus bens à empresa Petrobras Gás S/A (Gaspetro) como forma de pagamento por dívidas.

Maio de 2000 – Gaspetro resolve vender todos os bens recebidos da ICC à empresa Engessul Indústria e Comércio LTDA.

2002 – Após a Engessul não pagar os valores à estatal, a Gaspetro aceita vender a empresa por um valor menor, de R$ 1,1 milhão.

2002 – Engessul entra com ação de reintegração de posse na Vara Civil de Imbituba, individualizando o processo contra cinco moradores da comunidade.

24 de junho de 2002 – Criação da Associação Comunitária Rural de Imbituba (Acordi).

2004 – Engessul passa a fazer contratos de comodato (uso temporário de bens) com os moradores.

18 de fevereiro de 2005 – Engessul protagoniza ação ilegal e violenta, ordenando a destruição da casa de uma família que residia na área em que a empresa buscava a reintegração de posse.

Fevereiro de 2005 – Ministério Público Federal (MPF) abre a ACP contra a Engessul, o titular da empresa, Manoel Duarte Ferreira, a Gaspetro e a União.

2006 – Acordi recorre ao Ministério do Meio Ambiente (MMA) solicitando estudos para criação de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) nos Areais da Ribanceira.

Junho de 2006 – É aberto no MMA o processo nº 02001.002582/2006-88.

2006 a 2008 – Realizam-se estudos parciais, vistorias técnicas, atividades e reuniões importantes para a elaboração de relatórios referentes à entrada no processo de criação da RDS dos Areais na Ribanceira.

2008 – Pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) são convidados pela Acordi para participar de palestra na 5ª Feira da Mandioca e passam a realizar pesquisas na comunidade.

2008 – Processo n° 54210.001457/2008-51 é aberto no Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra), com o objetivo de identificar imóvel rural para ser desapropriado para fins de Reforma Agrária.

2009 – Outro processo (n°54210.001190/2009-82) é aberto no Incra com o objetivo de desapropriar imóvel rural com área de 240,68 hectares que estaria omisso no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR).

Setembro de 2009 – Engessul é comprada pela empresa Sulfacal Indústria e Comércio de Gesso LTDA.

2010 – Segundo processo no Incra conclui que área apresenta limitações para uso agrícola, sendo inviável sua obtenção para fins de Reforma Agrária.

28 e 29 de janeiro de 2010 – Ação da Polícia Militar (PM) resulta na prisão de três pessoas em Imbituba; dentre elas, a presidente da Acordi, Marlene Borges.

30 de janeiro de 2010 – Graças a um pedido de habeas corpus, os acusados são libertados.

Março de 2010 – Concluído processo de reintegração de posse movido pela Engessul com decisão judicial que ordena que os ocupantes irregulares deixem a área em até 30 dias.

Abril de 2010 – Acordi entrega ao MPF de Tubarão (SC) uma carta e vários documentos relatando o histórico do conflito da comunidade.

Abril de 2010 – Terceiro processo é aberto no Incra, por pressão do MPF, que solicita a agilização dos trâmites para a regularização fundiária da comunidade.

12 de julho de 2010 –  Acordi promove ato público em Imbituba.

28 de julho de 2010 – No cumprimento da reintegração de posse, cerca de 50 policiais militares, juntamente com a cavalaria e a Polícia de Patrulhamento Tático (PPT), chegam aos Areais da Ribanceira e destroem quatro casas violentamente.

02 de agosto de 2010 – Procurador da República Celso Antonio Tres move outra ACP contra a Engessul e a Sulfacal na Justiça Federal.

24 de agosto de 2010 – Lança-se uma petição em apoio à luta da Acordi pelo reconhecimento e legitimação da Comunidade Tradicional dos Areais da Ribanceira.

Julho de 2013 – Fundo Brasil de Direitos Humanos seleciona o projeto intitulado “Comunidades tradicionais dos Areais da Ribanceira (SC): luta pelo reconhecimento, acesso à justiça e construção de direitos” para ser implantado na comunidade.

16 de janeiro de 2015 – Diário Oficial da União publica contrato para elaboração de relatório antropológico dos Areais.

11 de fevereiro de 2015 – Incra anuncia que está realizando as preparações do relatório pela equipe de profissionais do instituto junto à comunidade.

Março de 2015 – Início da elaboração do relatório antropológico.

Julho de 2016 – Lançamento do documentário “Luta pela terra nos Areais da Ribanceira”.

2018 – Feira da Mandioca é premiada pelo BNDES de Boas Práticas para Sistemas Agrícolas Tradicionais (SAT).

27 de junho de 2019 – Incra aprova relatório antropológico para caracterização histórica, econômica, ambiental e sociocultural da comunidade tradicional de agricultores e pescadores artesanais dos Areais da Ribanceira.

 

Fontes

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