BA – Areia Branca: oligarquias, cartórios, forças policiais, para-militares e golpes contra o patrimônio público violentam comunidade centenária às margens do lago de Sobradinho, na Caatinga baiana

UF: BA

Município Atingido: Casa Nova (BA)

Outros Municípios: Casa Nova (BA)

População: Agricultores familiares

Atividades Geradoras do Conflito: Atuação de entidades governamentais

Impactos Socioambientais: Alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território

Danos à Saúde: Piora na qualidade de vida, Violência – ameaça, Violência – assassinato, Violência – lesão corporal

Síntese

“As lutas pela terra ainda marcam o solo de sangue das vítimas dos ‘marajás’ que dominam o país, tivemos um dia a esperança que alguém que saísse do povo, desta realidade do sertanejo fosse mudar alguma coisa…”

Boa parte do presente relatório baseia-se nos relatos publicados no site da Comissão Pastoral da Terra na Bahia, que acompanhou de perto o caso da tentativa de usurpação das comunidades de fundo de pasto da Areia Branca.

Presentes na região onde hoje é o município de Casa Nova desde meados do século XIX, as comunidades de fundo de pasto de Salina da Brinca, Jurema, Grande e Melancia, passaram durante sua história por diversas tentativas de expulsão de suas terras. Resistiram à ação estatal, durante a instalação da hidrelétrica de Sobradinho em 1973 e à ação de empresas privadas, como a Camaragibe, que, na década de 1980, tentou instalar no município um projeto de monocultura de mandioca para a produção de álcool. Em março de 2008, essas comunidades foram mais uma vez alvos de injustiça e violência, diante da decisão do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia a favor dos empresários Alberto Martins Matos e Carlos Nizam Lima Silva, acusados de especularem com as terras das comunidades, com base em um entendimento com o Banco do Brasil e os detentores da empresa alcooleira . A operação de remoção dos posseiros, que se seguiu, deu origem a mais um episódio de violência policial contra as populações tradicionais e resultou na destruição de plantações e caixas de criação de abelhas no local.

Contexto Ampliado

O sociólogo e integrante da Comissão Pastoral da Terra na Bahia, Ruben Siqueira, explica o conceito de Fundo de Pasto:

Os ‘fundos de pasto’ são áreas tradicionais no semiárido, de posse coletiva e de uso comum, para pastoreio de caprinos (principalmente), por famílias de uma mesma comunidade ou de comunidades próximas, de maneira complementar à agricultura de subsistência, que é feita em roças cercadas (daí a expressão ‘fundos’). Remontam à época do fracionamento das sesmarias em fazendas e ocorrem em ‘terras devolutas’, aquelas que não foram requeridas por particulares após a Lei de Terras de 1850 e, ‘devolvidas’, passaram à propriedade da União que as repassou aos Estados, logo após a criação da República.

Originalmente presentes em todo o semiárido e também no cerrado (onde recebem o nome de ‘fechos de pasto’ e se destinam ao gado), hoje os ‘fundos de pasto’ estão restritos à Bahia. A partir da Constituição Estadual de 1989, o governo deveria proceder à regularização destas áreas na forma de ‘direito real de concessão de uso’ em favor das comunidades que as utilizam organizadas em ‘associações de fundo de pasto’. Existem no Estado cerca de 300 destas associações, onde vivem 20 mil famílias, mais de 100 mil sertanejos, regularizadas até agora apenas umas 60, pela CDA – Coordenação de Desenvolvimento Agrário, órgão responsável do Estado.

Reconhecidos como ‘comunidade tradicional’, os ‘fundos de pasto’ conseguiram assento na Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável destas comunidades. Para o povo catingueiro, os ‘fundos de pasto’ são ‘nosso jeito de viver no sertão’. E uma Articulação Estadual representa seus interesses frente ao Estado e à sociedade.

Com o recente avanço da grilagem e das empresas agrícolas, muitas estrangeiras, nos cerrados baianos, também aí, as comunidades ‘geraiseiras’ (habitantes dos Gerais, mais ou menos o mesmo que Cerrados) buscam-se valer dos ‘fechos de pasto’ como defesa e proteção de suas áreas comuns de pastoreio e do seu modo de vida tradicional ameaçado.”

Os chamados “fundos de pasto”, como revela o jornalista alemão Norbert Suchanek,

“são áreas tradicionais no Semiárido, de posse coletiva e de uso comum. Como Paulo Magalhães e Pedro Diamantino do MST formularam, ‘Fundo de Pasto é um modo tradicional de criar, viver e fazer em que a gestão da terra e de outros recursos naturais articula terrenos familiares e áreas de uso comum, onde se criam caprinos e ovinos à solta e em pastagem nativa. Desenvolvido ao longo de gerações entre os povos e comunidades tradicionais nas caatingas e cerrados nordestinos, constitui um patrimônio cultural do povo brasileiro’.

“Areia Branca foi o nome dado para a união das áreas de fundo-de-pasto das comunidades [de Riacho Grande, Melancia, Jurema e Salina da Brinca, que…] viviam e desenvolveram-se em associações de produção sustentável: a agricultura, o cultivo e a criação de animais…” [SANTOS].

Assim, as cerca de 13 mil cabeças de cabras e ovelhas, a produção anual de 30 toneladas de mel, além de outros gêneros alimentícios, caracterizam a Areia Branca como “um caso de uso sustentável da caatinga à beira do lago formado pela represa de Sobradinho” – “o maior lago artificial do planeta”. Em torno dele, observa a CPT, as comunidades “são exemplos notáveis de resistência camponesa. (…) suportaram com bravura os impactos da construção da Barragem, mantendo-se firmes nas terras remanescentes, rejeitando proposta de colonização do regime ditatorial [de] migrar para as agrovilas instaladas em Serra do Ramalho/BA.”

É na pós-construção de Sobradinho, e durante a campanha do Proálcool, que a Agroindustrial Camaragibe S/A, com sede no Rio de Janeiro, irá se instalar na região.

O Dossiê Areia Branca, organizado pela CPT-BA, União das Associações de Fundo de Pasto de Casa Nova, Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR) na Bahia e o Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa) contextualiza a entrada da Camaragibe na região:

Em 1979, a Agroindustrial Camaragibe S.A. adquiriu terras ocupadas por comunidades, mediante ‘compra de títulos de posses’, passados à empresa por políticos e membros das oligarquias regionais, que invariavelmente exerciam fortíssima influência sobre os cartórios locais de registros públicos. Foram eles que intermediaram a vinda da empresa.

O estopim dos conflitos deu-se em razão de uma venda ilícita de terras da Fazenda Cacimba do Meio, onde as referidas famílias detinham posses centenárias e pequenas propriedades, como ‘Lajes’ e ‘Baixa do Umbuzeiro’. Ao tempo em que a empresa valia-se de todos os artifícios [inclusive de milícias armadas] para ampliar seus domínios na localidade, empurrando várias famílias e comunidades para fora de seus domínios, a comunidade de Riacho Grande iniciou uma resistência, ‘variantando’ suas terras individuais e de uso comum e se entrincheirando para não permitir a entrada da empresa Camaragibe. As mobilizações locais ganharam a cena nacional e o apoio de setores expressivos da sociedade: sindicatos e outras comunidades na região, movimentos de defesa dos direitos humanos, igrejas e políticos de expressão nacional em atividade no país, sintonizados com o processo de redemocratização, como Ulisses Guimarães, Miguel Arraes, Jarbas Vasconcelos.”

Após modificar, “sem qualquer decisão judicial, os títulos de posse comum sobre terras devolutas do Estado para transformá-los em sua ‘propriedade’ trata-se de mais de 30 mil hectares de terras já secularmente ocupado pelas comunidades de fundos de pastos”, a Agroindustrial Camaragibe S/A foi financiada pelos recursos públicos do Proálcool para instalar uma usina de álcool de mandioca em Riacho Grande.

“Utilizando os falsos títulos de propriedade como garantia, a empresa [como outros empresários ruralistas à época] adquiriu empréstimos junto ao Banco do Brasil e, forjando a ‘perda de colheitas’ que de fato inexistiam”, rolava sua dívida, que alcançou cerca de R$ 40 milhões de reais, em meados da década de 1980, quando a Camaragibe decretou falência. O caso juntou-se ao então conhecido escândalo da mandioca, que emergiu, em 1982, “quando o procurador da República, Pedro Jorge, à frente das investigações, foi assassinado em Olinda”.

A Areia Branca e as 366 famílias das quatro comunidades que a integram, após a construção da usina hidrelétrica de Sobradinho (anos 1970) e a luta contra a empresa Camaragibe (anos 1970-1980), passou a enfrentar dois novos adversários, na década de 2000: o empresário Alberto Martins Matos, que, segundo o Ecodebate, seria “diretor da Sane Engenharia Ltda, envolvida em escândalo no município de Uauá, e condenado, em 2004, pelo Tribunal de Contas da União e Tribunal de Contas dos Municípios da Bahia, por acumular o salário de servidor federal e o de Secretário de Obras do Município de Juazeiro”, e Carlos Nizam Lima Silva, “conhecido especulador imobiliário e o maior intermediário de mamona na região de Jacobina, Mirangaba e Irecê para produção de biodiesel”. Ambos foram acusados pelas comunidades, que há mais de 140 anos fazem uso tradicional das terras devolutas, de especularem e fazerem uso da violência para tirá-los de lá.

Segundo o dossiê Areia Branca,

– Alberto Martins Pires Matos e Carlos Nisan Lima Silva, em 02 de julho de 2004, compareceram ao Cartório do 10º Ofício de Registro de Títulos e Documentos, em Nova Iguaçu/RJ, junto com o Banco do Brasil ali representado pelo Sr. Sergio Luiz Mendes, seu Administrador, quando firmaram Escritura Pública de Cessão de Créditos, Assunção de Obrigações e Outras Responsabilidades (…). Pela transação solene o Banco do Brasil, credor e titular de direitos e obrigações decorrentes das operações decrédito (…) em face das dívidas da velha Camaragibe Agroindustrial S.A., cede aos ditos empresários (cessionários), em caráter ‘irrevogável’ e ‘irretratável’, ignorando a origem pública dos créditos, a função social do contrato e das propriedades dadas em garantia, os créditos e os direitos sobre os mesmos. […De acordo com a] Escritura de Cessão de Créditos, (…) os empresários substituem o Banco do Brasil em crédito [de mais de R$ 30 milhões] pagando, ao referido banco, apenas R$ 639.000,00 (seiscentos e trinta e nove mil reais).” [grifo nosso] Além disso, – os “novos credores” da Camaragibe passaram, também, à condição de substitutos processuais do Banco do Brasil em diversas ações judiciais que maculam os bens da velha empresa”.

Após a celebração da escritura com o Banco do Brasil, os dois empresários procuraram os representantes e herdeiros da massa falida da Camaragibe e com eles acordaram “pôr fim a todas as dívidas [penhoras e hipotecas relacionadas ao caso] dos devedores”. Negociaram também, “para quitar as dívidas e encerrar processos judiciais correlatos”, a transferência para os dois – como forma de pagamento (“dação em pagamento”), de todos os bens móveis que a Camaragibe havia dado em garantia mediante penhor cedular, bem como, os bens imóveis dados em hipoteca ” a saber,

-imóvel rural de 11.753 ha formado pelas propriedades denominadas Lajes e Baixa do Umbuzeiro, encravadas em terra da antiga Fazenda Cacimba do Meio (…), imóvel Rural de 2.074 ha, denominado “Curralinho” (…), Imóvel denominado Fazenda Urecê, com 5.266 ha, (…) e Fração ideal da Fazenda Casa Nova, com 7.401 ha” – todas estas áreas contíguas perfazendo 25 mil hectares.

Segundo a interpretação dos que defendem as comunidades de fundos de pasto de Areia Branca, a “função básica destes atravessadores [seria então] “limpar” a área, desembaraçar o terreno e especular até o definitivo ingresso dos grandes projetos do capital agrícola…” na região. Em outras palavras:

Feita a limpeza dos títulos e contratos de papel, resta aniquilar a presença de pessoas, convertendo posseiros e ribeirinhos em estranhos na sua própria terra. Após o desembaraçamento formal da propriedade, é o momento de realizar a “faxina” para eliminar classes e etnias indesejadas. Não sem resistência.

Instaura-se uma espécie de estado de exceção no qual os poderes constituídos, principalmente o judiciário e a polícia, atuarão como braços pesados de tal “limpeza”, ora agindo ativamente, ora omitindo-se, em nome do progresso e da ordem pública.

É neste contexto que tem início novo período dramático das comunidades da Areia Branca.

Em 07 de março de 2008, o conflito, então restrito à esfera jurídica, descambou para a violência contra essas comunidades.

“Às 5h da manhã daquele fatídico dia, efetivos da Polícia Militar, agentes da Polícia Civil, um agente dizendo-se da Polícia Federal de Pernambuco e a Polícia da Caatinga, sob supervisão de um Oficial de Justiça, entraram numa área tentando expulsar, de modo brutal, quatro comunidades de terras centenárias afetadas e reconhecidas pelos costumes locais como sendo terras de uso comum em regime de fundo de pasto.”

“A ação da polícia, naquele dia, transcorreu de maneira truculenta, intransigente, com abuso de autoridade. Documentos e chaves de carros foram sumariamente confiscados, cidadãos submetidos à espécie de custódia ilegal (cárcere privado), postos ‘de castigo’ na viatura das 7hs da manhã às 6hs da tarde. Danos de dificílima reparação, como derrubada de cercas, casas e destruição de benfeitorias [casas de posseiros, chiqueiros de criação de bodes] caracterizam o cenário de arrasamento das terras e benfeitorias comunitárias. Sequer um centenário juazeiro, ‘refrigério’ de quem labuta nas lavouras próximas, permaneceu: foi decepado, simbolizando o gozo último do atentado contra os direitos das comunidades.”

A ação foi também acompanhada por seguranças armados e tratores cuidaram da derrubada das cercas, cercados e casas da comunidade. Exigiu-se também dos comunitários a retirada das caixas de abelhas (cerca de 3000 colmeias) que mantinham na área, após financiamento obtido pela comunidade junto ao Banco do Nordeste.

Segundo o relato da CPT, os dois supostos proprietários haviam, anteriormente à ação policial violenta, ingressado “com ação de Imissão de Posse contra 11 posseiros, apresentando tão somente os contratos de simulação cessão de créditos e dação em pagamento (sequer registrada)”. Entretanto, a tramitação do processo dera-se “sem a devida intervenção do Ministério Público em razão da natureza da demanda (conflito agrário de grandes proporções)”, o que por si seria suficiente para anular o procedimento. Mas, além disso, verificou-se “flagrante descumprimento dos princípios constitucionais do devido processo legal”, uma vez que o juiz que autorizou a imissão de posse não teria assegurado a ampla defesa e o contraditório, para as 366 famílias locais, surpreendidas com a ação policial.

Seguiu-se à ação policial e para-policial, no dia 12 de março, uma “audiência com o Ouvidor Agrário Nacional, Incra, Tribunal de Justiça, Promotoria de Justiça, Conselho de Operações da Polícia Militar da Bahia, Casa Militar da Bahia, Coordenadoria de Desenvolvimento Agrário da Bahia e advogados” que determinou a necessidade de “investigação dos possíveis abusos e irregularidades cometidas” e o encaminhamento de uma representação à Corregedoria Geral do TJB “para apurar possível ilegalidade cometida pelo juiz de Casa Nova”. Em 17 de março de 2008, cerca de nove jagunços invadiram novamente a área e dispararam vários tiros em direção aos agricultores comunitários, que nada mais faziam do que defender a posse de suas terras. Ameaças e agressões físicas foram feitas a diversas pessoas, principalmente mulheres e crianças, algumas das quais chegaram a ser queimadas com tições de fogo, e usadas como escudo humano para evitar eventual represália da comunidade.

– A violência continuou com espancamentos e quebra da câmera fotográfica de uma cooperante alemã, ligada a uma ong da região. (…) Depois de algumas horas do ocorrido, chegou ao local policias militares para somente “restabelecerem a ordem”, fato que estranhamente não intimidou a ação dos jagunços que continuaram encapuzados e conversando tranquilamente com a polícia, de armas na mão, sentindo-se os donos da lei.”

Em 26 de março, aconteceu audiência pública:

“convocada e coordenada pelo ouvidor Agrário Nacional, desembargador Gercino José da Silva Filho, com objetivo de apurar ‘possível atuação ilegal da Polícia Militar e da Polícia Civil durante o cumprimento de mandado de imissão de posse, destruição de casas, cercas e currais de posseiros, grilagem de terras públicas, regularização fundiária na modalidade denominada Fundo de Pasto, e desapropriação para fins de reforma agrária’.

Logo no início o juiz local [Eduardo Ferreira Padilha] encaminhou nova sentença que foi lida em público. No documento ele voltou atrás na sentença anterior, reconheceu a presença de posseiros na área e deliberou o direito dos trabalhadores retornarem às terras a fim de resguardar as benfeitorias e trabalhos.”

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a Coordenadoria de Desenvolvimento Agrário (CDA) da Bahia começariam então a “vistoriar as terras, fazer estudos e revisão de processos no sentido de regularização das famílias”.

No final de outubro de 2008, nova decisão judicial, desta vez do Tribunal de Justiça da Bahia, reiterou a posse dos especuladores sobre as terras das comunidades.

No mês seguinte, contudo, a União das Associações de Fundo de Pasto de Casa Nova, a Associação dos Advogados de Trabalhadores Rurais e a Comissão Pastoral da Terra commorariam em nota, um fato novo e decisivo:

– O Estado da Bahia, por meio de sua Procuradoria Geral do Estado em Juazeiro, ingressou hoje, dia 21.11.2008, com a Ação Discriminatória de Terras Públicas na Vara da Fazenda Pública em Casa Nova, Bahia, a fim de arrecadar as terras públicas devolutas fraudulentamente griladas pela Agroindustrial Camaragibe S.A. no final da década de setenta e, contemporaneamente, transferidas a dois empresários, Carlos Nisan Lima e Silva, da cidade de Jacobina, e Alberto Martins Pires de Matos, da cidade de Juazeiro, ambas na Bahia.

O ingresso da Ação Discriminatória representa importante vitória, fruto das mobilizações das comunidades de Fundos de Pastos que tradicionalmente ocupam as áreas griladas e vêm sofrendo inúmeros abusos e violências por parte de grileiros e especuladores de terras. Representa também uma vitória para todas as organizações e movimentos sociais que historicamente combatem a grilagem de terras, prática usual, no Estado da Bahia.

[…]

Há um compromisso do Estado da Bahia em, após arrecadar as áreas para o patrimônio público, cedê-las às famílias e, com isso, o patrimônio cultural, ambiental e socioeconômico que elas representam seja definitivamente resguardado de outros atentados.”

A CPT da Bahia contextualizou então o fato:

“Em cumprimento das determinações da Audiência Pública [de 26/03/2008], a Coordenação de Desenvolvimento Agrário realizou procedimento de Discriminação Administrativa das terras devolutas em litígio.

Não foi espantoso o resultado dos levantamentos da Comissão que concluiu que, os imóveis em questão são de natureza pública, tratando-se de terras devolutas do Estado da Bahia, bem como constatou a irregularidade dos títulos de propriedade envolvidos, cuja cadeia sucessória sequer alcança a data de 1960.

Ressalta-se que no caso das Comunidades de Fundos Pastos, a sua posse é largamente comprovada e demonstrada através de linha genealógica que remonta ao ano de 1860 – mais de século antes da ‘confecção’ irregular dos títulos de propriedade.

(…)

Curioso é o que se depreende do relatório em relação ao levantamento cartográfico das supostas propriedades, caracterizado como ‘surreal e esdrúxulo’. Os supostos imóveis não formam polígonos de propriedade, mas sim linhas, que não se encontram em um perímetro, deixando ilimitada a prática da grilagem sobre as terras estaduais.

O relatório produzido pela CDA, em seu laudo, ainda indica a necessidade de uma inspeção no cartório da comarca de Casa Nova em razão das irregularidades encontradas.”

As conclusões e a ação discriminatória do Estado foram significativas mas não o suficiente para arrefecer os ânimos dos adversários das comunidades de Fundos de Pasto.

Na provável data de 30 de janeiro de 2009, José Campos Braga, 56 anos, liderança dos comunitários da Areia Branca, foi assassinado. O corpo dele foi “encontrado por um pescador [em 04/02/2009], uma semana depois do crime, (…) com dois tiros na cabeça, um na nuca e outro perto da orelha, segundo dados da Polícia Técnica”. Segundo retrataria um artigo à época publicado, “não se conhece o assassino, apenas a certeza da pistolagem”. Zé de Antero, como era conhecido, foi enterrado no dia 7 de fevereiro. Conforme relataria a CPT, Zé de Antero, como liderança do Riacho Grande, havia resistido “ao agronegócio do regime militar, resistiu ao agronegócio do governo Lula. No regime militar queriam as terras das comunidades para plantar mandioca e fazer álcool. Agora querem para plantar cana e também fazer álcool”.

Em março de 2009, uma nova audiência pública ocorreria em Casa Nova “para ouvir a comunidade sobre o incidente do dia 04 de fevereiro, fazer ajustes de segurança e para averiguar o andamento da ação discriminatória movida pelo Estado”.

Em março do ano seguinte, organizações locais divulgaram uma monção na qual denunciavam a invasão de Areia Grande por pessoas que ocupavam dois carros. Na ocasião, a porteira foi derrubada e destruída e, pelo menos uma casa, a de José Campos Braga, conhecido como Zé de Antero, lavrador assassinado no ano anterior, também foi derrubada. A ação foi denunciada junto ao judiciário local, na figura do Dr. Eduardo Padilha, juiz de direito de Casa Nova. Porém, ao longo da interlocução com o juiz, ficou claro que o ocorrido, segundo denúncias das organizações locais, tinha sua participação:

O motivo de tal invasão, segundo o Juiz, seria a realização de nova inspeção judicial na área. Frise-se que uma inspeção judicial havia sido realizada no dia 19 de fevereiro de 2010, que contou com a participação de um servidor público da Coordenação de Desenvolvimento Agrário (CDA), da AATR, da CPT, do SINTAGRO, bem como os representantes das Associações de Fundo de Pasto.

Como se não bastasse a invasão e a realização de um ato processual sem comunicação ao Estado da Bahia, autor da ação discriminatória em que a inspeção teve curso, e das associações de fundo de pasto, partes no processo, o Juiz expulsou a CPT, o SINTRAGO e o representante das associações, e permaneceu debatendo com a AATR, apontando o seu ponto de vista sobre a ocupação do território tradicional. Segundo ele, a primeira inspeção foi objeto de um engodo, uma enganação, uma maquiagem, que um circo foi armado. Alegou que o território não possuía ocupação humana e que a quantidade de animais encontrados, segundo ele, menos de 50 bodes, não justificava a extensão da ocupação. O Juiz, ainda, colocou em dúvida o trabalho realizado pela CDA que atestou a ocorrência de grilagem de terras públicas e a ocupação tradicional das famílias, acusando-a de estar em acordo com as associações na suposta enganação.

Em consequência, a monção repudiava: a ocorrência de um ato processual que não respeitou o devido processo legal, por contrariar o contraditório e a ampla defesa, o menosprezo do magistrado em relação aos instrumentos normativos de defesa de direitos sociais e em relação à ocupação centenária das comunidades de fundo de pasto.

Em consequência às denúncias, foi movida uma ação de exceção de suspeição movida pelas associações das comunidades de fundo de pasto de Areia Grande contra o juiz Eduardo Padilha. A ação foi julgada no dia 24 de março pelo Tribunal Pleno do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA).

De acordo com nota da AATR: No julgamento, a Desembargadora Heloísa Graddi, relatora do caso, decidiu pela improcedência do pedido de suspeição do Juiz, pois entendeu que os fatos apontados como causas de parcialidade do magistrado não caracterizariam os pressupostos previstos na legislação processual. Os demais desembargadores acompanharam o voto da relatora e, por unanimidade, foi julgado improcedente o incidente processual.

Apesar das decisões contrárias no judiciário, as comunidades locais conseguiram apoio político a algumas de suas demandas quando o Ouvidor Agrário Nacional e Presidente da Comissão Nacional de Combate à Violência no Campo, Desembargador Gercino José da Silva Filho, enviou para a Secretária-Executiva do MDA, Márcia da Silva Quadrado, a ata da 262ª reunião da Comissão Nacional de Combate à Violência no Campo, realizada no INCRA de Salvador, no dia 29 de setembro daquele ano. Entre os encaminhamentos constantes no documento estava um pedido de informações relativo ao assassinato de José Antero, ocorrido no ano anterior em Casa Nova.

Enquanto as disputas por terra permaneciam sem solução, em 2012 as comunidades locais fortaleceram suas articulações com outras comunidades da região para enfrentamento de um problema comum: os impactos socioambientais da mineração. Em 31 de julho daquele ano, um seminário realizado em Carnaíba do Sertão – com a presença de representantes de comunidades dos municípios baianos de Campo Formoso, Casa Nova, Miguel Calmon, Juazeiro, Jacobina, agentes da Comissão Pastoral da Terra – CPT das Dioceses de Senhor do Bonfim, Ruy Barbosa e Juazeiro, além de membros da rticulação Popular São Francisco Vivo e Irpaa – abordou o assunto.

De acordo com relato da CPT-BA: Durante o Seminário, as três Dioceses apresentaram diagnósticos realizados recentemente, os quais evidenciam o avanço da mineração no Centro-Norte da Bahia protagonizada por empresas como Ferbasa, Vale do Rio Doce, Caraíba Metais, QGN, Galvani, Votorantim, além da Companhia Baiana de Pesquisa Minerária (CBPM), dentre outras.

Os relatos das experiências das comunidades expuseram uma estratégia de cooptação e convencimento dos moradores bastante comum: as empresas chegam e se instalam com promessas de empregos e progresso local e em pouco tempo provocam sérios impactos ambientais, sociais e culturais. Entre estes, se destacam o secamento de corpos dágua, o aterramento de nascentes, a consequente desestruturação da agricultura local e a dependência econômica às empresas, já que, ao não conseguir produzir em suas terras, os trabalhadores rurais passam a depender dos salários pagos pela mineração, além do avanço de quadros de doenças respiratórias e outros agravos associados à contaminação do solo, do ar e das águas.

Enquanto debatiam estratégias de resistência aos impactos da mineração, as comunidades de fundo de pasto do norte da Bahia conquistaram mais um avanço na questão fundiária quando, após anos de luta, o Governo do Estado da Bahia sancionou a Lei Estadual 12.910, que estabeleceu procedimentos para a regularização das ocupações de terras rurais e devolutas estaduais pelos remanescentes quilombolas e por comunidades de fundos e fechos de pasto.

Com esta Lei, a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) passa a ter a atribuição de promover a certificação das comunidades de fundos e fechos de pasto, necessária à celebração dos contratos de concessão de direito real de uso das terras públicas estaduais, rurais e devolutas ocupadas tradicionalmente por essas comunidades. A identificação, demarcação e regularização desses territórios serão efetuadas pela Coordenação de Desenvolvimento Agrário da Secretaria de Agricultura do Estado da Bahia (CDA/ Seagri).

Segundo a coordenadora-executiva de Políticas para as Comunidades Tradicionais da Sepromi, Teresa do Espírito Santo, a certificação das comunidades de fundos e fechos de pasto, a partir do seu autorreconhecimento, contribui para fazer avançar o processo de regularização dos territórios tradicionais, mas, também, deve se tornar uma porta de acesso dessas comunidades às políticas públicas, para melhoria das suas condições de vida e trabalho.

Para a articuladora do Submédio São Francisco, Érica Daiane Costa, a publicação da portaria é uma conquista importante, resultado da pressão feita pelas comunidades organizadas com o apoio de diversas entidades integrantes da Articulação São Francisco Vivo, a exemplo da Comissão Pastoral da Terra e do Instituto da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA). Estas organizações desenvolvem trabalhos de formação e mobilização social pelo desenvolvimento sustentável e solidário. Neste processo, a garantia do direito à terra e ao território é uma prioridade, diante dos casos de violação de direitos, a exemplo do que ocorreu com as comunidades do município de Casa Nova, disse.

Apesar dos avanços legislativos, isto não se traduziu imediatamente em maior celeridade nos processos administrativos necessários à garantia dos territórios tradicionais das comunidades de fundo de pasto baianas. Por esse motivo, as comunidades realizaram um protesto durante o 6º Festival do Umbu realizado em março de 2014 no município de Uauá.

Valdivino Rodrigues, da Articulação de Fundo e Fecho de Pasto, explicou à reportagem do informativo da IRPAA que a Articulação aproveitou a oportunidade de ter representante do governo na região para cobrar a demanda das comunidades, já que o governo não tem garantido agenda com a Articulação para debater e resolver a questão fundiária das comunidades tradicionais.

Cosme acrescentou que a reivindicação é no sentido de cobrar que o governo cumpra seu papel, como o de garantir condições de realizar a busca ativa das comunidades e a certificação das mesmas no prazo estipulado pela lei 12.910/2013, até 2018. Nós sabemos que só temos quatro anos para fazer essa busca ativa, porém o governo não tem dado nenhuma importância e nem tem ido fazer o trabalho que seria dele. E nós estamos ajudando o governo nessa busca ativa e ele não tem se comprometido.

O mesmo informativo afirma que, naquele evento, quem estava representando o Governo era Jairo Carneiro, da Secretaria da Agricultura, Pecuária, Irrigação, Reforma Agrária, Pesca e Aquicultura – Seagri, que passou para Rui Costa, da Casa Civil, o papel de falar em nome do Governo da Bahia. Rui afirmou aos manifestantes que até sexta-feira (28 de março), será realizada uma reunião da Governadoria com representantes da Articulação de Fundo e Fecho de Pasto para tratar da regularização fundiária e publicação do decreto de regulamentação da lei até esta mesma data.

Última atualização em: 22 jun. 2014.

Fontes

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