AL – Povo Kariri-Xokó aguarda decisão da Justiça Federal sobre ampliação da sua Terra Indígena

UF: AL

Município Atingido: São Brás (AL)

Outros Municípios: Porto Real do Colégio (AL), São Brás (AL)

População: Povos indígenas

Atividades Geradoras do Conflito: Monoculturas

Impactos Socioambientais: Alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território, Falta / irregularidade na demarcação de território tradicional

Danos à Saúde: Piora na qualidade de vida, Violência – ameaça

Síntese

Os índios Kariri-Xokó estão presentes em Porto Real do Colégio e São Brás há mais de 100 anos. Esta denominação resulta de uma fusão ocorrida entre os Kariri de Porto Real de Colégio e parte dos Xokó da ilha fluvial sergipana de São Pedro. Desde 1978 eles enfrentam um longo processo de demarcação de seu território tradicional. O povo Kariri foi alvo de ações indigenistas oficiais desde o período da conquista, no século XVI, passando por políticas de catequese jesuítica e ações continuadas de extermínio até o início do século XX. Ora oprimidos, ora negligenciados, os Kariri-Xocó foram paulatinamente expulsos de suas terras e dispersos pela periferia do município. Em 1978, a situação começou a mudar. Naquele ano, os Kariri-Xokó ocuparam a chamada Fazenda Modelo, então propriedade da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (CODEVASF), e exigiram a demarcação da área como seu território de ?posse imemorial?. Em 1983, um Posto Indígena da Fundação Nacional do Índio (Funai) foi transferido para a área ocupada.

A controvérsia a respeito da posse desta área se desenrolaria até 25 de novembro de 1991, quando a Funai delimitou, pela portaria nº 600, a área para a criação da Terra Indígena Kariri-Xokó. Esta TI, com 700 hectares, seria homologada em 4 de outubro de 1993, por decreto assinado pelo então presidente Itamar Franco. A demarcação foi realizada, contudo, sob os marcos de uma política indigenista superada pelos novos valores e direitos consagrados na Constituição Federal de 1988. Com o advento do decreto 1.775/97, que reformou o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas no Brasil, os índios Kariri-Xokó pediram a revisão do processo demarcatório anterior, tendo em vista a readequação da demarcação à legislação indigenista atual, e o aumento da extensão da sua terra.

No ano 2000, foram divulgados os resultados dos novos estudos de identificação e delimitação promovidos pela Funai. Segundo relatório divulgado na ocasião, a TI Kariri-Xokó deveria ser aumentada para 4.419 hectares.

Esta decisão desagradou a diversos fazendeiros da região que se viram ameaçados de desapropriação das terras que ocupavam. Contestações foram apresentadas à Funai, exigindo a revisão dos resultados do relatório de identificação e a manutenção dos limites iniciais da Terra Indígena. Depois de cinco anos, a Funai decidiu dar prosseguimento ao processo demarcatório e indeferiu as contestações. Em 1º de junho de 2005 o presidente da fundação publicou despacho definindo a nova área a ser demarcada para a TI. A portaria ministerial nº 2.358, de dezembro de 2006 foi assinada pelo então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, autorizando a demarcação e declarando como posse permanente do povo Kariri-Xokó, a terra indígena de 4.419 hectares. Todo este processo transcorreu dentro de prazos muito superiores aos definidos pelo Decreto 1.775/97.

Derrotados no âmbito administrativo e político, os fazendeiros afetados iniciaram um processo judicial contra a Funai, a União e a Comunidade Kariri-Xocó. Este processo ainda tramita na 8ª Vara da Justiça Federal em Arapiraca, e tem por objetivo conseguir a anulação da demarcação.

Contexto Ampliado

Os antigos aldeamentos de Porto Real do Colégio tiveram sua origem em uma missão jesuítica do século XVIII. Com a expulsão dos jesuítas da antiga colônia portuguesa, em 1759, a administração destas aldeias passou para outras ordens missionárias e leigas. Originalmente, viviam nos aldeamentos do atual município, índios Cropotós, Kariris, Aconans, Ceococes e Prakiós. Oficialmente estas aldeias foram extintas em 1873 e seus antigos habitantes foram considerados integrados à sociedade nacional. Consonante à política do Império de negar a identidade étnica dos grupos indígenas do Nordeste, os índios da região passaram a ser identificados genericamente como ?caboclos?. Paralelamente à negação de sua identidade étnica, se implementou uma política de supressão de seus direitos de acesso à terra. Espoliados de seu território e sem reconhecimento étnico, restou aos Kariri e Xokós (a fusão dos dois grupos só ocorreria nas primeiras décadas do século XX) a invisibilidade social e uma integração sempre tensa com a sociedade envolvente na região.

Os Kariri-Xokó romperiam com esta situação por volta de 1978 em um contexto político e social relativamente favorável à sua reorganização política e reafirmação étnica. Naquele período ocuparam as terras da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (CODEVASF) e exigiram a demarcação da área conhecida como Fazenda Modelo como seu território tradicional.

É importante salientar que esta ocupação ocorreria apenas cinco anos após a outorga do Estatuto do Índio (Lei 6.001 de 19 de dezembro de 1973). Apesar de definir como dever da União, dos Estados e dos Municípios a garantia aos índios da ?permanência voluntária no seu habitat, proporcionando-lhes ali recursos para seu desenvolvimento e progressos?, a lei 6001/1973 identificava a população indígena no Brasil como grupos em processo de integração com a sociedade nacional. Para tanto, ao Estado caberia ?respeitar, no processo de integração do índio à comunhão nacional, a coesão das comunidades indígenas, os seus valores culturais, tradições, usos e costumes?.

Percebe-se assim que a questão territorial era entendida como algo transitório. A terra para o índio deveria ser garantida enquanto suporte para a sua lenta transformação em trabalhador nacional. Outro aspecto importante é o fato das comunidades indígenas serem mantidas sob a tutela do Estado, o que significa o não-reconhecimento do direito natural do índio a seu território, e tampouco o tratamento dele como sujeito de direitos. Parte dessas conquistas só se tornaria possível com a promulgação da Constituição Federal de 1988.

É sob esse contexto jurídico e político desfavorável ao exercício pleno de sua cidadania que se deve analisar o primeiro processo de demarcação da TI Kariri-Xocó, em Porto Real do Colégio. Apesar de ter sido concluído em 1993, já sob os auspícios dos direitos conquistados na Constituição de 1988, o processo foi constituído pelos marcos jurídicos da legislação indigenista anterior (especialmente o decreto federal nº 22, de 4 de fevereiro de 1991, que dispõe sobre o processo administrativo de demarcação das terras indígenas, e o Estatuto do Índio). Esta legislação, apesar de prever a participação indígena no processo de demarcação de terras, ainda limitava sua participação no acompanhamento do processo, o que caracterizaria uma condição paternalista do Estado brasileiro e de participação passiva dos índios, e o que terá sido a razão principal da diferença de cerca de 3600 hectares entre a demarcação feita em 1991 e a realizada em 2005.

O processo da nova demarcação da TI Kariri-Xokó transcorreu entre os anos 2000 e 2005, enfrentando a forte oposição de fazendeiros da região, interessados em manter os limites de suas propriedades e em impedir o acesso dos índios ao território que ocupavam. Após a publicação da portaria do Ministério da Justiça, reconhecendo a nova extensão da Terra Indígena, o pedido de liminar pela anulação do novo processo demarcatório, foi contestado pelo Ministério Público Federal. Em novembro de 2007, o juiz federal Rubens Canuto indeferiu liminar que demandava a total paralisação do processo administrativo da demarcação, até que a ação judicial fosse julgada.

Paralelamente ao desgaste da ação judicial e ao longo processo administrativo que têm enfrentado, os Kariri-Xokó permanecem mobilizados em torno da garantia de seus direitos. Eles estão construindo articulações com outras populações tradicionais do Estado e com movimentos sociais, tais como associações quilombolas e ribeirinhas e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Organizados em torno da Associação Thydêwá, os Kariri-Xokó continuam lutando para garantir a posse de seu território tradicional e, com isso, minimizar os impactos negativos da falta de terras sobre seu povo. Estes impactos incluem uma significativa piora na sua qualidade de vida, desestruturação social e cultural, impossibilidade de ampliar sua área de plantio e até mesmo a migração forçada para os centros urbanos. Esta conjuntura vulnerabiliza esta população e atinge diretamente as condições de manutenção da saúde coletiva dela.

Esta não é a única disputa enfrentada pelos Kariri-Xokó na região. A partir de fevereiro de 2007, juntamente com diversas outras etnias do Nordeste, trabalhadores rurais sem terra, quilombolas, ribeirinhos, comunidades tradicionais e movimentos sociais, os Kariri-Xokó passaram a trabalhar ativamente contra o projeto de transposição das águas do rio São Francisco. Em 2 de fevereiro, eles participaram da ocupação da Fazenda Tucutu, como forma de impedir o início das obras do eixo norte da transposição do rio São Francisco. O canal da transposição, neste eixo, seria iniciado nesta fazenda ? área reivindicada pelos índios Truká de Cabrobró (Pernambuco) ?, pelo 2º Batalhão de Engenharia do Exército. A ocupação contou com a participação de outras etnias indígenas, de sem-terras, quilombolas e ribeirinhos.

A transposição do São Francisco é vista pelas comunidades e seus apoiadores como um projeto daninho ao rio e aos povos que dependem de suas águas. Consideram o projeto excludente e desnecessário, na medida em que haveria alternativas mais baratas, menos perigosas para o ecossistema local, e que beneficiariam maior número de pessoas. Ao contrário da propaganda oficial, a transposição não é vista pela sociedade local como a solução para o problema da seca no semiárido. Quando muito, a solução empreendida pelo governo federal atenderá especialmente aos interesses do agronegócio local.

Povos tradicionais e movimentos sociais têm fortalecido suas lutas mutuamente. Ao contrário do período em que eram vistos como caboclos, hoje a cultura indígena alagoana tem sido revalorizada, e isto pode ser verificado pelas diversas homenagens e projetos de que os Kariri-Xokó, os Xukuru-Kariri e outras etnias em Alagoas têm sido protagonistas. Em 2008, os índios foram homenageados na 14ª Feira Internacional de Artesanato no Nordeste (Artnor), em Maceió, e foram o motivo central de uma campanha de valorização da cultura indígena promovida pelo SESC alagoano, junto aos professores e alunos das suas unidades educacionais. Eventos como estes têm contribuído para a afirmação da luta indígena pela realização de direitos e a demarcação de suas terras.

Contudo, ainda é incerto se a justiça federal em Alagoas irá decidir pela manutenção dos novos limites da TI Kariri-Xokó, ou se irá acatar o pedido de nove fazendeiros de Porto Real do Colégio e São Brás, para anular o processo de demarcação realizado pela Funai. Em fevereiro de 2009, a audiência de conciliação no contexto da ação movida pelos fazendeiros, foi encerrada sem acordo e o processo seguiu para 2ª instância. Esta situação tem representado um empecilho à pacificação dos conflitos existentes na região e à finalização do processo de re-demarcação da Terra Indígena, que ainda aguarda pela homologação do presidente da República. Somente a definição jurídica da posse das terras poderá proporcionar aos Kariri-Xokó a segurança necessária para o pleno exercício de seus direitos e de suas tradições.

Última atualização em: 14 de janeiro de 2010

Fontes

AGÊNCIA SEBRAE DE NOTÍCIAS. Feira em Alagoas homenageia as raízes da arte e da cultura indígena. Disponível em: asn.interjornal.com.br/noticia_pdf.kmf?noticia=6837235. Acesso em: 03 mar. 2009.

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________. Índios Kariri-Xocó lutam pela valorização de sua cultura. Disponível em: http://pib.socioambiental.org/caracterizacao.php?id_arp=3724#47672. Acesso em: 03 mar. 2009.

DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO. Portaria n 2.358, de 15 de dezembro de 2006. Disponível em: http://pib.socioambiental.org/caracterizacao.php?id_arp=3724#47672. Acesso em: 03 mar. 2009.

FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO. Planta de Delimitação da TI Kariri-Xocó. Disponível em: http://www.Funai.gov.br/licitacao/2007/Kariri%20Xoco%20-%20Anexo%2011.pdf. Acesso em: 03 mar. 2009.

INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Da Rua dos Índios para a fazenda modelo. Disponível em: http://pib.socioambiental.org/caracterizacao.php?id_arp=3724#47672. Acesso em: 03 mar. 2009.

JUSTIÇA FEDERAL – SEÇÃO JUDICIÁRIA DE ALAGOAS. Consulta de Processos. Disponível em: http://www.jfal.gov.br/. Acesso em: 03 mar. 2009.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. MPF/AL manifesta-se contra anulação de demarcação de terras indígenas. Disponível em: http://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias-do-site/indios-e-minorias/mpf-al-manifesta-se-contra-anulacao-de-demarcacao/. Acesso em: 03 mar. 2009.

________. MPF/AL: mantida demarcação de terras dos índios kariri-xocó. Disponível em: http://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias-do-site/indios-e-minorias/justica-nega-liminar-e-mantem-demarcacao-de-terras-indigenas/. Acesso em: 03 mar. 2009.

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Decreto de 4 de Outubro de 1993: Homologa a demarcação administrativa da Área Indígena Kariri-Xocó, localizada no Estado de Alagoas. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/DNN/Anterior%20a%202000/1993/Dnn1757.htm/. Acesso em: 03 mar. 2009.

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