RS – Indígenas Kaingangs sofrem consequências de processo demarcatório sem continuidade
UF: RS
Município Atingido: Vicente Dutra (RS)
Outros Municípios: Vicente Dutra (RS)
População: Povos indígenas
Atividades Geradoras do Conflito: Atuação de entidades governamentais, Especulação imobiliária, Indústria do turismo
Impactos Socioambientais: Alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território, Falta / irregularidade na demarcação de território tradicional, Invasão / dano a área protegida ou unidade de conservação
Danos à Saúde: Insegurança alimentar, Piora na qualidade de vida, Violência – ameaça, Violência – coação física
Síntese
O conflito que envolve a Terra Indígena Kaingang Rio dos Índios, localizada em Vicente Dutra, no noroeste do estado do Rio Grande do Sul, atinge 48 famílias Kaingang que aguardam a conclusão do processo de demarcação para voltar a viver em seu território tradicional, já delimitado por um decreto presidencial, ao invés de acampados ao lado da área a ser demarcada. Contudo, este conflito envolve também 235 ocupantes não índios divididos em 168 proprietários de cabanas de veraneio do balneário turístico Águas do Prado e o restante de pequenos agricultores descendentes dos colonos alemães levados pela administração da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul a partir da década de 1820.
A instalação do balneário Águas do Prado começou em 1981, quando o então prefeito Osmar José da Silva sancionou e promulgou, através do Decreto Municipal 284, a doação de uma área pública, incluindo parte da área pertencente aos Kaingang, para a instalação do empreendimento. A área, doada e retirada do território que mais tarde foi reconhecido e identificado, corresponde a quase 200 hectares dos 715 que foram posteriormente (2004) demarcados aos Kaingang pela FUNAI.
A Terra Indígena Rio dos Índios foi declarada pela Portaria n° 3895, de 23/12/2004. O Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, assinou, no dia 23 de dezembro de 2004, Portarias Declaratórias reconhecendo a identificação das terras indígenas Palmas e Rios dos Índios, realizada pela Funai (Funai, 2004).
Na sequência dos trâmites, em 13 de abril de 2006, a Funai recomendou que a Terra Indígena Rio dos Índios fosse encaminhada para homologação do Presidente da República. Porém, os encaminhamentos do processo só foram retomados com um despacho de 24 de março de 2009, quando foram enviadas as peças técnicas para a presidência da Funai e, posteriormente, para o Ministério da Justiça e para a Presidência da República.
Com a construção do empreendimento, os Kaingang que viviam na área montaram um acampamento ao lado da terra identificada a ser demarcada. Na época do verão, os Kaingang circulam pelo empreendimento turístico para vender artesanato. Numa destas ocasiões, mulheres e crianças indígenas foram impedidas de passar novamente por ali e ameaçadas de morte e estupro. É comum ainda que mulheres e crianças que procuram lenha, fora do restrito espaço em que se localiza o acampamento, sejam ameaçadas por agricultores que moram na área (Conselho Indigenista Missionário, 25/11/2013).
Em 20 de novembro de 2013, um segurança da estância turística fez seis disparos com arma de fogo contra um carro com indígenas Kaingang após exigir que eles se retirassem da área onde costumam vender artesanato e jogar futebol; o segurança tentou ainda dar uma facada em um dos indígenas. Segundo o vice-cacique Luiz Salvador, o segurança, conhecido como Palmeira, age como um jagunço do empreendimento, com várias passagens pela polícia, e há cerca de quatro anos vem ameaçando os indígenas, muitas vezes, com arma em punho (Conselho Indigenista Missionário, 25/11/2013).
No dia posterior ao início dos conflitos, um grupo de cerca de 500 pessoas, dentre as quais pequenos agricultores, foi até a entrada do acampamento Kaingang ameaçando expulsá-los do município (Conselho Indigenista Missionário, 28/11/2013).
No dia 22 de novembro foi feito um acordo em que os governos estadual e federal se comprometeram a pagar indenização para 20 agricultores até o mês de março de 2014, dando um primeiro passo no processo de desintrusão da área demarcada como tradicionalmente indígena (Combate Racismo Ambiental, 25/11/2013).
Em 10 de dezembro de 2013, o deputado federal Vilson Covatti apresentou um Projeto de Decreto Legislativo sustando os efeitos da Portaria nº 3.895, de 23 de dezembro de 2004, do Ministério de Estado da Justiça, que declarava de posse permanente do grupo indígena Kaingang a terra indígena Rio dos Índios (O Alto Uruguai, 10/12/2013).
Dessa forma, é notável que os Kaingang estão sofrendo pressões dos pequenos agricultores e de políticos locais através, inclusive, de meios legais. A luta dos Kaingang da TI Rio dos Índios está bem longe de terminar; ao contrário, no final de 2013, outro capítulo foi escrito com a tentativa do Ministério da Justiça de simplesmente anular o decreto embasado num procedimento técnico definido por lei.
Contexto Ampliado
A Terra Indígena Rio dos Índios está inserida no território tradicional Kaingang situado no extremo noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, em áreas próximas ao rio Uruguai, sobre as quais os Kaingang exerciam pleno domínio. Situada no município de Vicente Dutra, é morada de 48 famílias indígenas. Apesar de declarada em 2004 e sob a administração da FUNAI de Passo Fundo (RS), é palco de um conflito que se arrasta há mais de 30 anos. Isso porque a área foi ocupada por colonos em projeto de colonização implementado pela administração pública. Além disso, parte da área é ocupada por um balneário turístico que explora as águas termais da região (Piovezana, 2010).
A aldeia da comunidade se encontra próxima ao limite norte da TI Rio dos Índios, à margem direita de Lajeado do Prado. Na margem oposta se encontra o balneário Termas Minerais Águas do Prado Ltda, área de localização da antiga aldeia e de coleta da comunidade. Atualmente, este local – até recentemente usado pela comunidade para coleta de lenha – está interditado à circulação dos índios pelo proprietário. Entretanto, a antiga cobertura natural está reduzida a um ínfimo trecho de mata que ainda não foi transformado em pasto. Tanto as lembranças antigas quanto as práticas mais recentes apontam para esta área como parte integrante do território da comunidade (Pequeno, 2003).
A Terra Indígena Rio dos Índios está envolta pela cidade de Vicente Dutra, e a aldeia hoje ocupada pelos Kaingang está, praticamente, no centro da cidade. Entretanto, a presença da comunidade indígena no lugar precede a existência do Município de Vicente Dutra (Gracio, 2010).
Os Kaingang integram a família linguística Jê, pertencente ao tronco linguístico Macro-Jê. A expansão da colonização ibérica sobre o território Kaingang no sul do Brasil teve como forte característica a condução de indígenas feitos prisioneiros para fora de seu território para tornarem-se escravos, inclusive crianças. Buscavam liberar os territórios ocupados pelos índios e conseguir mão-de-obra a baixos custos no Brasil meridional.
De acordo com Curta (Pp. 16, 2012) a presença de índios Guaianá no planalto meridional, durante o século XVI, foi registrada por pesquisadores como Knivet (1587) e Souza (1578). Nos Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul têm-se nos Guaianá (Jê Meridional), tomados em sentido amplo, os seus ancestrais diretos (Curta, 2012). No século XVII, os Kaingang que viviam nesta porção do território nacional eram designados sob diversos nomes, como Socré ou Shokléng, Kamé, Bugres ou ainda Coroados. Ainda durante o século XVII, foi registrada a presença de agrupamentos Kaingang e Xokleng no curso superior do rio Uruguai. No século XVIII, ocupavam as extensas florestas do alto Uruguai, numa área que vai do rio Piratini (extremo Oeste) até a bacia do rio Caí, a leste. Constituíam ainda territórios Kaingang o oeste de São Paulo e terras do Paraná e Santa Catarina (Instituto Socioambiental).
De acordo com Curta (2012), antes e mesmo durante os primeiros anos de contato, cada grupo local Kaingang possuía um subterritório próprio, com direito a exploração do mesmo, segundo regras determinadas pela cultura. Portanto, a sociedade Kaingang se distribuía em vários grupos locais, formando subterritórios que eram socialmente interligados, e que possuíam sua área de exploração, fato que remete à existência de um conceito específico de propriedade territorial Kaingang distinto do conceito capitalista de propriedade privada. Segundo esta autora, a noção de propriedade comum Kaingang, muito longe de significar uma restrição e um impedimento ao uso do solo pelos indivíduos, oferece, ao contrário, uma garantia de acesso a esse recurso; e, mais ainda, garante às gerações futuras a herança desse mesmo recurso (Curta 2012).
Em princípios do século XIX, foram assinados acordos entre o governo brasileiro e os estados alemães, os quais garantiriam a instalação dos imigrantes em lotes já demarcados na região nordeste da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul; mais precisamente, na encosta superior da serra do nordeste, parte do território Kaingang. Esta região compreende atualmente os municípios de São Leopoldo, São Sebastião do Caí, Montenegro, Taquara e São Francisco de Paula, polos iniciais da colonização alemã no estado.
No ano de 1829 foi registrado o primeiro ataque com vítimas fatais nas denominadas correrias praticadas pelos Kaingang às áreas de colonização, no qual foram mortos três colonos. A literatura específica divide os assaltos aos lotes coloniais em dois períodos distintos: anterior e posterior aos aldeamentos indígenas. De acordo com as fontes bibliográficas e documentais, a maioria dos ataques aconteceu no primeiro período, entre os anos de 1829 e 1832, quando os colonos passam a adentrar as áreas mais isoladas do Planalto, que pertenciam até então aos Kaingang (Bringmann, 2009).
Nesse sentido, estabeleceu-se uma situação bastante tensa, pois, na medida em que o colono tentava se estabelecer nas terras que lhes haviam sido concedidas por determinação imperial, os Kaingang viam a expropriação das terras que lhes pertenciam desde tempos imemoriais (Curta, 2012).
A política de aldeamentos foi implementada pelo governo provincial para liberar as terras para a colonização. O aldeamento de Nonoai surgiu como o principal núcleo Kaingang, seguido de Guarita e Campo do Meio. Esses aldeamentos foram construídos no momento em que o governo abria uma estrada para ligação entre as Províncias do Rio Grande e de São Paulo.
A concentração dos indígenas nos aldeamentos acarretou diversos problemas, principalmente a penúria que atingiu praticamente todos os conglomerados, em decorrência da inadaptabilidade aos trabalhos agrícolas e da imposição de rações controladas. Como resultado da concentração forçada, ocorreram muitos casos de evasão indígena, cujos dissidentes passaram a unir-se aos grupos hostis às políticas do governo (Bringmann, 2009).
A Lei de Terras de 1850 coincidiu com o momento em que ocorreu o avanço dos colonizadores em direção ao planalto gaúcho, marginalizando os grupos indígenas que habitavam esse território. Esta lei redirecionou a ocupação territorial brasileira, estabelecendo parâmetros para o registro das posses que excluíam os indígenas da possibilidade de acesso legítimo à terra (Curta, 2012).
Esta conjuntura somada ao processo de atração de colonos alemães e italianos pelo governo da província provocou o crescimento de cidades no território Kaingang (Tomasino, 1995). Na atualidade, os Kaingang representam a maior população indígena do Brasil Meridional, somando aproximadamente trinta mil indivíduos. No Rio Grande do Sul, muitas dessas terras indígenas encontram-se em áreas urbanas (Lappe Laroque, 2013).
Os índios afirmam, quando retratam o histórico de sua presença na região, que a TI Rio dos Índios é um espaço historicamente ocupado pelas famílias oriundas principalmente da TI Kaingang de Iraí e, em menor escala, de outras terras Kaingang próximas. Segundo Pequeno (2003), nas distintas entrevistas realizadas junto às comunidades das Terras Indígenas Rio dos Índios e Kaingang de Iraí, são comuns as referências em que seus membros percorriam em poucas horas a distância que separa as duas áreas, o que ressalta, não só os estreitos laços entre as famílias, como também uma clara noção de continuidade entre as populações das duas áreas.
O Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Rio dos Índios apresenta um relato concedido pelo indígena Júlio Domingos (63 anos) da presença indígena na área, segundo o qual sua família morou por um período em Rio dos Índios quando ele estava com nove anos, ou seja, por volta de 1946 (Grácio e Pequeno, 2003).
Ainda de acordo com Relatório Circunstanciado, as primeiras famílias a ocuparem, em caráter permanente, a área em que hoje se encontra a Terra Indígena Rio dos Índios, na década de 1960, foram as de Dona Rosa Jacinto e Dona Erondina Vicente. Por este motivo, e po serem de alguma forma repositórios da memória do grupo, além do cacique e do capitão, há um grande respeito por essas figuras não só na comunidade de Rio dos Índios como também nas demais comunidades Kaingang que mantém com Rio dos Índios permanente contato (Grácio e Pequeno, 2003).
Diante da presença de índios Kaingang em locais não autorizados pelos órgãos públicos na cidade de Vicente Dutra, em 1969, o então interventor federal, Cel. Apio Pereira Vasconcelos, determinou a mudança dos Kaingang do sítio conhecido como Água Fria para o local próximo a um balneário da Prefeitura, onde os índios permaneceram por 13 anos.
O norte do Rio Grande do Sul historicamente se caracterizou como um cenário de conflitos agrários. O processo intenso de modernização da agricultura, pós-anos 1960, fruto de políticas públicas que favoreceram a apropriação privada da terra, através de colonizações privadas e públicas, produziu extinção e/ou redução de territórios indígenas. Como resultado desse processo modernizador, produziram-se históricos conflitos sociais de luta e defesa da propriedade da terra entre colonos e indígenas.
Posteriormente, os Kaingang de Rio dos Índios foram levados para o lugar onde hoje fica a Empresa Águas do Prado, Turismo e Empreendimentos LTDA, vivendo ali até 1981, quando o então prefeito convenceu a comunidade a se retirar do lugar garantindo que lhes daria, em troca, casas já prontas. Neste ano, o então prefeito Osmar José da Silva sancionou e promulgou, através do Decreto Municipal 284, a doação de uma área pública, incluindo parte da área pertencente aos Kaingang, para a instalação do empreendimento denominado Águas do Prado. Ainda em 1981, o prefeito, através de outra lei municipal (310/81), alegando falhas no levantamento anterior, ampliou a mesma área doada. Esta terra correspondia a quase 200 hectares dos 715 que foram posteriormente (2004) demarcados aos Kaingang pela Funai (Conselho Indigenista Missionário, 2013), como veremos adiante.
Após o fim do mandato do prefeito, veio a público que a área do empreendimento pertencia ao próprio, que desde então explorava de maneira privada as termas e águas minerais da cidade. Desta forma, o ex-prefeito de Vicente Dutra, na época em pleno exercício, utilizou-se da máquina pública para benefício próprio. Os documentos que comprovavam o esquema se encontravam nos arquivos do gabinete da prefeitura municipal, que pegou fogo duas vezes durante a gestão de Osmar José da Silva, destruindo estes e outros registros (Conselho Indigenista Missionário, 2013).
Quando foram removidos da área em que se instalaria o empreendimento, os índios foram levados para uma construção paralisada em virtude de irregularidades. Em vista do interesse da Prefeitura na construção de um hospital municipal naquela área, novamente os índios foram deslocados, sendo levados para onde vivem atualmente (Grácio e Pequeno, 2003).
Desta forma, os critérios de localização da aldeia atualmente em prática na TI Rio dos Índios são ditados por forças externas e não pela dinâmica interna ao grupo. No entanto, por mais que a localização da aldeia se efetive por motivos que vão além dos interesses da comunidade, e que as construções se deem de forma aparentemente precária, a comunidade tem muita clareza dos limites do seu território tradicional, e não aceita qualquer deslocamento para longe desta área, sobrevivendo nela apesar da condição de penúria que as pequenas extensões acessíveis lhes impõem (Grácio e Pequeno, 2003).
De acordo com o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Rio dos Índios (2004):
As moradias estão localizadas ao longo do Lajeado do Prado, sendo que existem as casas de madeira e as barracas feitas com lona preta sobre o chão batido. Há ainda uma igreja e uma escola, que, apesar de precárias, são construídas de madeira e cobertas com telhas. O aspecto geral da aldeia reflete, em grande medida, todo o processo de espoliação e ingerência vivido pela comunidade. O caráter aparentemente transitório reflete em muito a história da comunidade após o advento da chegada dos regionais. É como se não houvesse a certeza de que aquele é o último lugar para onde serão deslocados. Todavia, é importante destacar que, ao longo da história, suas moradias concentravam-se em grande parte e por um longo período, no que é hoje empreendimento Águas do Prado. Neste local, muitos dos atuais membros da comunidade nasceram, e outros moraram por longos períodos. Os ali nascidos mostram com bastante orgulho as árvores onde estão enterrados seus umbigos, e são frequentes os relatos de fatos da infância ali passada. Os índios mais velhos mencionam com precisão a localização das casas dos antigos moradores, quem eram exatamente os seus habitantes e onde se encontram hoje em dia. O local da atual moradia fica a algumas poucas centenas de metros do local da antiga aldeia (Grácio e Pequeno, 2003).
Os estudos de identificação e delimitação da Terra Indígena Rio dos Índios foram iniciados em 2000. Através da Portaria 583/PRES/02, foi determinado o deslocamento de técnicos da FUNAI à TI Rio dos Índios, para proceder os levantamentos fundiários e cadastrais da área. Nesta ocasião, foram cadastrados os ocupantes não índios incidentes na referida TI, assim como as principais benfeitorias de cada propriedade. O Grupo de Trabalho cadastrou 235 ocupantes não índios. O empreendimento de turismo instalou no interior dos limites da TI Rio dos Índios um conflito que envolve os ocupantes da área de 25,39 ha da Empresa Termas Minerais Águas do Prado Ltda, nas quais foram cadastrados cerca de 168 proprietários de cabanas de veraneio e demais ocupantes moradores da área rural, que totalizam 67 ocupantes (Grácio e Pequeno, 2003).
Em 2003, o presidente da FUNAI aprovou o referido relatório. As contestações apresentadas frente à proposta de identificação e delimitação foram consideradas impertinentes, e a Terra Indígena Rio dos Índios foi declarada pela Portaria n° 3895, de 23/12/2004. O Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, assinou, no dia 23 de dezembro de 2004, Portarias Declaratórias reconhecendo a identificação das terras indígenas Palmas e Rios dos Índios, feita pela FUNAI (Funai, 2004).
Na sequência dos trâmites, em 13 de abril de 2006, a FUNAI recomendou que a Terra Indígena Rio dos Índios fosse encaminhada para homologação do Presidente da República. Porém, os encaminhamentos do processo só foram retomados com um despacho de 24 de março de 2009, quando foram enviadas as peças técnicas para a presidência da FUNAI e, posteriormente, para o Ministério da Justiça e para a Presidência da República.
Após sua chegada ao Ministério da Justiça, o processo, ao invés de seguir para a presidência, voltou para a FUNAI. A última peça entregue foi questionada pela FUNAI com relação aos resultados dos procedimentos de identificação e delimitação. De acordo com a Coordenadora Geral de Identificação e Delimitação da FUNAI, haveria um erro antropológico no procedimento, que consiste no fato de que um empreendimento turístico foi incluído na delimitação da terra, o que fez com que ela fosse descaracterizada como terra de ocupação tradicional indígena.
No entanto, o coordenador do GT de Identificação e Delimitação da Terra Indígena afirma que o que dificulta a conclusão do processo de demarcação é a própria existência de fato da sobreposição com o empreendimento turístico:
Se nós tivéssemos tomado a decisão de incluir ou não incluir o dito balneário nos limites da Terra Indígena Rio dos Índios estaríamos subvertendo o preceito constitucional que rege o tema. Em termos técnicos e conceituais, nós somente constatamos que o balneário estava sobreposto a uma terra de ocupação tradicional indígena, e, em nome de nossa postura ética, em respeito aos ditames constitucionais e, principalmente, em respeito ao povo Kaingang informamos ao Estado brasileiro o real caráter daquelas terras (Grácio, 2004).
Em 2009, ainda na etapa de demarcação e coloação de placas, um grupo de pequenos agricultores armados arrancou placas e impediu técnicos ligados à Funai de realizarem seu trabalho de visitas à área, tendo a Polícia Federal sido chamada para finalizar a confusão (Grácio e Pequeno, 2003).
Ainda em 2009, o Ministério Público Federal de Passo Fundo, buscando fazer avançar o procedimento demarcatório da Terra Indígena Rio dos Índios, oficiou ao INCRA que prestasse informações acerca do parecer da sua Procuradoria Federal quanto à possibilidade de indenização da terra aos agricultores ocupantes da Terra Indígena Rio dos Índios, no município de Vicente Dutra/RS. No entanto, não foram tomadas providências neste sentido (Conselho Indigenista Missionário, 2013).
Com a construção do empreendimento, os Kaingang que viviam na área montaram um acampamento ao lado da terra a ser demarcada, localizada a 32 quilômetros de Iraí, numa estrada de chão. Na época do verão, os Kaingang circulam pelo empreendimento turístico para vender artesanato. Numa destas ocasiões, mulheres e crianças indígenas foram impedidas de passar novamente por ali e ameaçadas de morte e estupro. É comum ainda que mulheres e crianças que procuram lenha, fora do restrito espaço em que se localiza o acampamento, sejam ameaçadas por agricultores que moram na área (Conselho Indigenista Missionário, 25/11/2013).
As estratégias de reação da comunidade indígena frente a tais ameaças é a tentativa de estabelecer um diálogo com as famílias agricultoras para garantir a continuidade do processo demarcatório. Na busca por seus direitos, as famílias agricultoras solicitaram o pagamento da terra junto com o das benfeitorias, mas o estado do Rio Grande do Sul não se comprometeu – tampouco o INCRA – com o reassentamento ou com a indenização das terras às famílias agricultoras ocupantes da área declarada. Isto porque o diferencial dessa ocupação é que ela é constituída atualmente por pequenos agricultores possivelmente enquadrados no que se chama ocupação de boa fé. Muitos dos militantes da demarcação defendem e cobram a indenização a esses agricultores, assentados na área há mais de 200 anos pela administração pública colonial (Conselho Indigenista Missionário, 25/11/2013).
Em 20 de novembro de 2013, um segurança da estância turística fez seis disparos com arma de fogo contra um carro com indígenas Kaingang após exigir que eles se retirassem da área onde costumam vender artesanato e jogar futebol; o segurança tentou ainda dar uma facada em um dos indígenas. Segundo o vice-cacique Luiz Salvador, o segurança, conhecido como Palmeira, age como um jagunço do empreendimento, tem várias passagens pela polícia e há cerca de quatro anos vem ameaçando os indígenas, muitas vezes com arma em punho: Nós estávamos sendo proibidos de buscar nossa lenha, nosso cipó, de ir e vir, dentro da nossa própria terra. Já tínhamos registrado queixas sobre isso na delegacia de polícia, afirmou Luiz Salvador (Conselho Indigenista Missionário, 25/11/2013).
Após este atentado, os indígenas renderam o segurança, que foi encaminhado ao hospital com ferimentos, e ocuparam a estância térmico-turística. Segundo os indígenas, a estância dificulta a homologação e desintrusão da TI Rio dos Índios, já que os pequenos agricultores que ocupam a área afirmaram que aceitam imediatamente a indenização das terras e das benfeitorias para deixarem as terras indígenas (Combate Racismo Ambiental, 2013).
No dia posterior ao início dos conflitos, um grupo de cerca de 500 pessoas, dentre as quais uma minoria composta por agricultores, dirigiu-se até a entrada do acampamento Kaingang ameaçando expulsá-los do município. Nas fotografias registradas pelos indígenas, podem facilmente ser reconhecidos o ex-prefeito e dono do empreendimento, Osmar José da Silva, seus filhos, e vereadores de Vicente Dutra que estimularam agricultores da região, comerciantes da cidade e região, parte da comunidade de Vicente Dutra e pessoas de municípios vizinhos (Conselho Indigenista Missionário, 28/11/2013).
Estes mesmos membros da política local, que têm no empreendimento Águas do Prado uma importante fonte de renda, têm, segundo o Conselho Indigenista Missionário (28/11/2013), levado informações distorcidas quanto à veracidade do processo demarcatório e das consequências da demarcação até os agricultores. Enquanto os indígenas defendem publicamente a demarcação da Terra Indígena Rio dos Índios mediante indenização plena (reassentamento e benfeitorias) dos agricultores, os políticos advertem os trabalhadores rurais de que estes sairão sem nenhum tipo de compensação, o que pode ser considerado apenas uma meia-verdade, já que a legislação atual garante aos proprietários de áreas demarcadas como terras indígenas indenizações pelas benfeitorias de boa-fé, mas não sobre as terras.
No dia 22 de novembro, para tentar acalmar os ânimos, foi convocada uma reunião em que estiveram presentes os indígenas, a FUNAI e o Ministério Público Federal (MPF). Foi feito um acordo em que os governos estadual e federal se comprometeram a pagar a indenização sobre as benfeitorias de boa fé para 20 agricultores até o mês de março de 2014, dando um primeiro passo no processo de desintrusão da área demarcada como tradicionalmente indígena (Combate Racismo Ambiental, 25/11/2013).
Ainda assim, de acordo com o vice-cacique Luiz Salvador, o clima continuou tenso e os Kaingang de Rio dos Índios, mesmo recebendo ameaças, garantiram que iriam permanecer na área até o fim do processo (Combate Racismo Ambiental, 25/11/2013).
Em 10 de dezembro de 2013, o deputado federal Vilson Covatti apresentou um Projeto de Decreto Legislativo sustando os efeitos da Portaria nº 3.895, de 23 de dezembro de 2004, do Ministério de Estado da Justiça, que declarava de posse permanente do grupo indígena Kaingang a terra indígena Rio dos Índios. Segundo o parlamentar, a medida pretendia anular a portaria com base em supostas irregularidades constatadas no processo administrativo de demarcação; especialmente, sobre a desobediência do marco temporal estabelecido no artigo 231 da Constituição Federal:
É flagrante o descumprimento do marco temporal estabelecido na Constituição para determinar a ocupação tradicional indígena, uma vez que não restou comprovada nos autos administrativos de demarcação, a ocupação da área pela comunidade indígena Kaigang antes de 5 de outubro de 1988, data da publicação da Constituição Federal (O Alto Uruguai, 10/12/2013).
Os interesses políticos e econômicos das elites locais, com o apoio da mídia hegemônica, acabaram por criar um conflito entre pequenos, enquanto ganham tempo adiando a indenização aos colonos e a demarcação definitiva da terra indígena. Em reunião, o superintendente do INCRA chegou a afirmar que os agricultores das áreas indígenas em processo de demarcação não foram reassentados em terras destinadas à reforma agrária por que não estavam cadastrados. No entanto, em áreas como a de Rio dos Índios, o levantamento fundiário já foi realizado, mas não foram tomadas providências para dar continuidade ao já iniciado processo demarcatório até a presente data (Conselho Indigenista Missionário, 18/05/2013).
O povo Kaingang segue resistindo no acampamento Rio dos Índios, ocupando o território que é seu por direito garantido pela Constituição e por decreto presidencial demarcatório ainda válido.
Cronologia
Século XVIII – Política de aldeamentos é implementada pelo governo provincial para liberar as terras para a colonização. O aldeamento de Nonoai surge como o principal núcleo Kaingang, seguido de Guarita e Campo do Meio.
Início do século XIX – Assinados acordos entre o governo brasileiro e os estados alemães para a instalação de núcleos de moradia em lotes já demarcados na região nordeste da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul para acolher os imigrantes.
1850 – Lei de Terras é decretada e coincide com o momento em que ocorre o avanço dos colonizadores em direção ao planalto gaúcho, marginalizando os grupos indígena que habitam esse território. Esta lei redireciona a ocupação territorial brasileira estabelecendo parâmetros para o registro das posses que excluem os indígenas da possibilidade de acesso legítimo à terra.
1946 Ano em que Júlio Domingos e sua família, indígenas Kaingang,moraram por um período em Rio dos Índios, quando ele estava com nove anos.
1969 – Diante da presença de índios Kaingang em locais não autorizados pelos órgãos públicos na cidade de Vicente Dutra, o então interventor federal, Cel. Apio Pereira Vasconcelos, determina a mudança dos Kaingang do sítio conhecido como Água Fria para o local próximo a um balneário da Prefeitura, onde os índios permanecem por 13 anos.
1981 – O então prefeito Osmar José da Silva sanciona e promulga, através do Decreto Municipal 284, a doação de uma área pública, incluindo parte da área pertencente aos Kaingang, para a instalação do empreendimento denominado Águas do Prado. Ainda em 1981, o prefeito, através de outra lei municipal (310/81), alegando falhas no levantamento anterior, amplia a mesma área doada. Esta terra corresponde a quase 200 hectares dos 715 que foram posteriormente (2004) demarcados aos Kaingang pela Funai (Conselho Indigenista Missionário, 2013).
2000 – Iniciados os estudos de identificação e delimitação da Terra Indígena Rio dos Índios.
2002 Sai a portaria através da qual foi determinado o deslocamento de técnicos da Funai à TI Rio dos Índios, para proceder os levantamentos fundiários e cadastrais da área.
2004 – As contestações apresentadas frente à proposta de identificação e delimitação são consideradas impertinentes e a Terra Indígena Rio dos Índios é declarada pela Portaria n° 3895.
2006 – Na sequência dos trâmites, a Funai recomenda que a Terra Indígena Rio dos Índios seja encaminhada para homologação do Presidente da República.
2009 – Os encaminhamentos do processo finalmente são retomados com um despacho de 24 de março, quando são enviadas as peças técnicas para a presidência da Funai e, posteriormente, para o Ministério da Justiça e presidência da república.
20 de novembro de 2013 – Um segurança da estância turística fez seis disparos com arma de fogo contra um carro com indígenas Kaingang após exigir que eles se retirassem da área onde costumam vender artesanato e jogar futebol, o segurança tentou ainda dar uma facada em um dos indígenas.
21 de novembro de 2013 – Os índios ocupam as dependências do empreendimento Águas do Prado, onde colocam fogo em cabanas e em dois escritórios de advocacia pertencentes aos filhos do ex-prefeito de Vicente Dutra, Osmar José da Silva.
22 de novembro de 2013 – Cerca de 500 pessoas, dentre as quais pequenos agricultores, dirigem-se até a entrada do acampamento Kaingang ameaçando expulsá-los do município. Nas fotografias registradas pelos indígenas, são facilmente reconhecidos o ex-prefeito e dono do empreendimento e vereadores de Vicente Dutra.
22 de novembro – Para tentar acalmar os ânimos, é convocada uma reunião com os indígenas, a Funai e o Ministério Público Federal (MPF). Os governos estadual e federal se comprometem a pagar a indenização para 20 agricultores até o mês de março de 2014, dando um primeiro passo no processo de desintrusão da área demarcada como tradicional indígena.
10 de dezembro de 2013 – Deputado federal Vilson Covatti apresenta Projeto de Decreto Legislativo que susta os efeitos da Portaria nº 3.895, de 23 de dezembro de 2004, do Ministério de Estado da Justiça, que declara de posse permanente do grupo indígena Kaingang a terra indígena Rio dos Índios. Segundo o parlamentar, a medida pretende anular a portaria com base em irregularidades constatadas no processo administrativo de demarcação, especialmente sobre a desobediência do marco temporal estabelecido no artigo 231 da Constituição Federal.
Fontes
BRINGMANN, Sandor Fernando. Fronteiras da inclusão e da exclusão: reflexos do contato entre os kaingangues e as frentes de expansão (SÉC. XIX). IN: KERN, Arno A.; SANTOS, Maria Cristina dos; GOLIN, Tau (org.). Povos indígenas. Passo Fundo: Méritos v.5 (Coleção História Geral do Rio Grande do Sul), 2009.
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