GO – Quilombo da Família Magalhães aguarda ansiosamente pela titulação definitiva de suas terras
UF: GO
Município Atingido: Nova Roma (GO)
Outros Municípios: Nova Roma (GO)
População: Quilombolas
Atividades Geradoras do Conflito: Atividades pesqueiras, aquicultura, carcinicultura e maricultura, Atuação de entidades governamentais, Mineração, garimpo e siderurgia, Monoculturas
Impactos Socioambientais: Alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território, Desmatamento e/ou queimada, Falta / irregularidade na demarcação de território tradicional, Pesca ou caça predatória
Danos à Saúde: Insegurança alimentar, Piora na qualidade de vida, Violência – ameaça
Síntese
A Comunidade Quilombola Família Magalhães está localizada no extremo norte do município de Nova Roma, à margem esquerda do rio Paranã, nordeste de Goiás. Nova Roma pertence à microrregião 05 do estado, nomeada de Chapada dos Veadeiros. De acordo com a Comissão Pró Índio de São Paulo (CPISP), dados de 2012 indicam que existem 22 famílias (aproximadamente 100 pessoas) vivendo na comunidade, que tem uma dimensão territorial de 5.492,1421 hectares.
O Quilombo da Família Magalhães já deu importantes passos rumo à sua titulação. Em 2004, a Fundação Cultural Palmares (FCP) registrou e certificou que a comunidade era remanescente de quilombos. Em 2007, o laudo antropológico e o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) foram publicados no Diário Oficial da União. Depois disso, em 2011, foi a vez da Portaria nº 237, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), que definiu a área e o perímetro do quilombo, a partir da divulgação do seu memorial descritivo. Em 2012, a presidente Dilma Rousseff também assinou um decreto de desapropriação de imóveis que estavam sobrepostos ao território do quilombo. Por esta razão, a titulação deste território não é considerada complexa. Apesar disso, o Quilombo da Família Magalhães ainda não obteve o documento definitivo, visto que, após o decreto da presidente, o processo ficou paralisado, o que tem causado consequências irreversíveis.
Os Magalhães, um dos quilombos derivados do povo Kalunga, se queixam de vários problemas na comunidade ao longo deste tempo. A matriarca Alvina Pereira dos Santos, ainda viva, e seus descendentes, que ainda resistem no território, vêm passando por privações no acesso ao território e no desenvolvimento de atividades de subsistência desde a chegada dos primeiros vizinhos, os fazendeiros “paulistas”. De lá pra cá, os Magalhães já sofreram ameaças de pistoleiros que trabalhavam para os supostos proprietários daquelas terras, os quais realizaram intimidações e tentativas de expulsar a comunidade de suas terras.
Hoje, vivem encurralados numa área de 450 hectares, com poucas terras férteis para o plantio. Isto vem gerando o uso intensificado do solo, chegando quase ao esgotamento do mesmo, o que se distancia da tradição quilombola de uma relação mais equilibrada com a natureza. Nos últimos tempos, os quilombolas também têm presenciado a intensificação de atividades irregulares no seu território, que contribuem ainda mais para a degradação da área, como a extração de areia e a pesca predatória. A espera é longa para Dona Alvina e para todo o Quilombo da Família Magalhães, que aguarda ansiosamente pela titulação definitiva de suas terras.
Contexto Ampliado
A comunidade Família Magalhães é uma comunidade quilombola localizada no extremo norte do município de Nova Roma, à margem esquerda do rio Paranã, nordeste de Goiás. Nova Roma pertence à microrregião 05 do estado, nomeada de Chapada dos Veadeiros. De acordo com a Comissão Pró Índio de São Paulo (CPISP), dados de 2012 indicam que existem 22 famílias (aproximadamente 100 pessoas) vivendo na comunidade, que tem uma dimensão territorial de 5.492,1421 hectares no total.
A comunidade teve seu laudo antropológico e seu Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) elaborados em 2007, sob a coordenação de Roberto Alves de Almeida, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Desde então, o INCRA também já publicou uma Portaria no Diário Oficial da União, em 2011, reconhecendo a área como remanescente de quilombo. Apesar de ser considerado como um território simples de ser titulado, tanto por parte dos técnicos do INCRA quanto da própria comunidade, o processo de titulação do Quilombo da Família Magalhães encontra-se emperrado, produzindo consequências irreparáveis para os moradores.
Conforme indicam Silva e Falcão (2012), os Magalhães consideram-se kalungueiros, ou seja, se identificam como parte dos Kalunga, uma das maiores comunidades quilombolas do Brasil, que se estende pelo território de três municípios próximos: Teresina de Goiás, Cavalcante e Monte Alegre de Goiás. Localizado no norte goiano, o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga possui 272 mil hectares. Ali vivem mais de duas mil famílias, chegando a quase oito mil pessoas, distribuídas em 42 localidades segundo dados do Projeto Kalunga Sustentável (2015). Além de estarem num local privilegiado, que compreende uma área de cerrado preservado entre serras, rios, cânions e cachoeiras na Chapada dos Veadeiros, a cultura kalunga é mantida através da valorização do artesanato, das danças e outras manifestações culturais, como as Ladainhas em latim, romarias, folias (de Reis, São Sebastião, Divino Espírito Santo e outras) e a curraleira (Sussa/dança).
Segundo o site do Projeto Kalunga Sustentável (2015), a formação deste povo tem origem há quase quatro séculos, quando o interior do Brasil começou a ser colonizado, especialmente devido à descoberta de minas de ouro nos estados de Minas Gerais e Goiás. Naquela época, tanto índios nativos de terras não exploradas quanto escravos negros trazidos da África eram capturados. Neste sentido, Pedroza (2011) indica que o surgimento de quilombos em Goiás, de acordo com Karasch (1996), ocorreu por volta do século XVII, com a fuga de escravos dos centros de extração do ouro localizados no norte do estado. Silva (1998), também mencionado por Pedroza (2011), relata que neste período se deslocaram para a região africanos fugidos do Maranhão, Bahia e Pernambuco, os quais percorreram a rota do sertão com destino às regiões norte e nordeste do estado.
Silva e Falcão (2012) relatam que esta região apresentava abundante riqueza natural; sendo atravessada por extensos rios, como o Araguaia, o Paranã, o Tocantins e o Parnaíba. Por esta razão, foi alvo de interesse de muitos fazendeiros, mineradores e donos de engenho. Nesta época, a população negra na região chegava a mais de 70%. Os autores indicam que o trabalho desgastante dos negros, a má alimentação, os castigos, maus-tratos e punições que recebiam dos proprietários fizeram com que eles se revoltassem e fugissem das senzalas dos engenhos, formando diversos quilombos.
Os escravos, então, se organizavam e fugiam em busca de liberdade e, nesta fuga, passaram a ir mais longe e desbravar a mata ao redor das jazidas na região dos vales da Chapada dos Veadeiros. Assim, os quilombos kalungas foram surgindo em terras de difícil acesso, entre serras e vales que circundavam o Rio Paranã, locais de difícil captura. Nestes lugares, Silva e Falcão (2012), citando Karasch (1996), relatam que os negros encontravam florestas densas, montanhas inexploradas, cerrados espinhosos, manguezais infestados de mosquitos, ilhas escondidas, inúmeros rios e muita distância dos brancos.
Pedroza (2011) aponta que os quilombos que iam se formando se autossustentavam por meio da mineração de ouro e do cultivo de alimentos. O fato de realizarem atividades de mineração é um dos diferenciais que marcam o surgimento dos quilombos no estado de Goiás. Lá eles realizavam garimpo em montanhas remotas e trocavam o ouro por mercadorias que careciam dentro do quilombo, tais como tecidos, cachaça, armas e munição. A relação dos quilombolas goianos com a natureza se diferenciava pela percepção da mesma como uma parceira, provedora e aliada, ao contrário dos europeus, que sempre tiveram uma relação de exploração intensiva, tratando a natureza como algo a se vencer. Era dela que retiravam o alimento e o abrigo, mesmo sob condições adversas em alguns momentos.
O Projeto Kalunga Sustentável (2015) destaca que a prática de plantio de roças, de criação de gado nos pastos e de galinhas, além da caça, sempre foram comuns na comunidade, desde a sua origem. Não havia separação nem proprietários das terras, e todo o sustento era retirado dali. Atualmente, os Kalungas vivem da agricultura familiar, realizando roça de toco, uma forma de manejo agrícola específica que concilia produção com preservação do meio ambiente. Existem mais de 60 comunidades espalhadas nos três municípios mencionados, sendo as principais: Contenda, Kalunga, Vão das Almas, Vão do Moleque, Ribeirão dos Bois e Engenho II, que são subdivididas em outros grupamentos. Cabe ressaltar que outros conflitos envolvendo os Kalungas, seja no processo de busca de titulação plena, reconquista de suas terras, reconhecimento ou até mesmo aqueles referentes aos impactos decorrentes da instalação de barragens, estão relatados no Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil.
Em se tratando especificamente da comunidade quilombola Magalhães, originada neste contexto, Almeida (2008) relata que a história dos Magalhães se inicia na década de 1930, quando ocorre a migração de três irmãos oriundos da região dos Kalungas. Estes irmãos resolveram subir o rio Paranã em busca de melhores condições de vida. O irmão mais velho se chamava Pedro Magalhães da Cunha. Segundo Perutti (2014), Pedro foi trabalhar como vaqueiro na Fazenda Santa Rita. Lá encontrou Alvina Pereira dos Santos, filha de mãe kalungueira com pai baiano; Alvina cresceu nesta mesma fazenda, próxima ao território kalunga, onde o pai também trabalhava como vaqueiro. Ali, Pedro e Alvina se conheceram. Em 1944, Seu Pedro se casou com dona Alvina. Depois de casados, em 1946, se mudaram para a fazenda Gameleira. Na beira do grande rio Paranã, o casal teve 11 filhos, e conquistou, juntamente com seus descendentes, seu território, formando a Comunidade Quilombo Família Magalhães.
Almeida (2008) indica que, em 2008, a comunidade era formada por 79 membros vivos, sendo apenas três membros falecidos: Pedro Magalhães, seu filho Antônio e Carmina, esposa de Antônio. Dona Alvina, viúva de Seu Pedro, ainda é viva, sendo a matriarca dos Magalhães. Porém, deste grupo, apenas 36 pessoas ainda residiam no território. Os outros se mudaram para cidades vizinhas em Goiás, como Alto Paraíso, Monte Alegre e também em Nova Roma; outros residem na periferia de Brasília (DF) e nas cidades de Uberaba e Campina Verde, em Minas Gerais. Pedroza (2011) indica que, de acordo com a genealogia realizada na comunidade, a família possui cerca de 100 membros vivos.
Em 1954, o casal fundador da comunidade, naquele momento com apenas quatro filhos, ocupou uma pequena área livre de domínio, numa região de terra devoluta ou de terra da nação. Ainda não existia nenhum morador próximo, o local era isolado; os mais próximos estavam do outro lado do rio, 12 km abaixo, segundo aponta Almeida (2008).
Segundo Almeida (2008), o espaço inicialmente habitado e utilizado pela Família Magalhães situava-se na área do córrego Cajueiro. Eles ocupavam a baixada do Rio Paranã, desde sua beira até o p da serra situada na bocãina (grande vale escavado por um córrego que entra serra adentro, semelhante a uma grande boca) do Cajueiro. Como criavam pequenos animais (cabra, porco, galinha) à solta, os Magalhães colocaram as roças bem distantes, protegendo o local de moradia da ação de outros animais. Assim, os locais de criação escolhidos foram as férteis matas ciliares do córrego Lavado, a cerca de 4 km a sudeste, e as terras próximas ao Córrego Cozinha e ao rio Areia, a 3 km a oeste da área que habitavam. Estes espaços compreendiam a área total ocupada, representada por um polígono que compreendia tanto os locais de criação quanto de habitação.
Mesmo com dificuldades de locomoção, os Magalhães realizavam comércio com as comunidades e povoados vizinhos, e iam até mesmo até a sede do município de Nova Roma, distante 35 km. Naquela época de isolamento, a família não possuía criação de porte, vivendo apenas da roça e da pesca. Para adquirir mercadorias como sal, café e ferramentas, era necessário se deslocar a pé até Nova Roma ou até o povoado de Ourominas, viagem que, muitas vezes, levava mais do que um dia. Quando chovia, a duração era ainda mais longa devido ao transbordamento de rios e córregos (ALMEIDA, 2008).
Dez anos mais tarde, em 1964, conforme relata Almeida (2008), quatro grandes garimpos de cassiterita foram abertos a meio caminho entre os Magalhães e Ourominas. Nos garimpos, em especial no de Pedra Branca, os quilombolas vendiam excedentes da produção agrícola e peixe salgado, pescado no rio Paranã. Os Magalhães conseguiram, assim, garantir a sua subsistência através de três atividades principais: roça, pesca e pequena criação. Estas atividades eram complementadas pela venda do pescado e pelo assalariamento temporário, em alguns casos. Desta maneira, a Família Magalhães conseguiu sobreviver e garantir a reprodução social no seu território (ALMEIDA, 2008).
Porém, a partir de 1974, chegaram os primeiros vizinhos próximos: os paulistas. Provenientes de São José do Rio Preto (SP), chegaram na área alegando serem proprietários e portavam o título da terra referente à Fazenda Areia, Lavado ou Ilha. A área titulada correspondia a diversas matrículas que foram supostamente transmitidas pelos donos originais, até a terra ser vendida para estes novos proprietários. A Família Magalhães se defronta, pela primeira vez, com uma disputa territorial. De acordo com Almeida (2008), no título constava que esta grande fazenda tinha cerca de 12.000 hectares, abrangendo uma área bem maior do que a ocupada pelos Magalhães. O levantamento da cadeia dominial realizado pela equipe técnica do INCRA, mais recentemente, descobriu que o título não recuava historicamente até a origem do território e que diversas matrículas do imóvel declarado haviam sido anuladas por uma Ação Discriminatória, desenvolvida pela Justiça de Goiás.
Segundo Almeida (2008), em 1976, os paulistas Chiquito e Sérgio, considerados os segundos proprietários, entraram na região como sendo donos da fazenda e instalaram sua sede bem próxima à área dos Magalhães. A partir daquele momento, a comunidade passou a sofrer constrangimentos: o primeiro deles foi a privação do acesso ao plantio que era realizado nas áreas do córrego Cozinha e do rio Areia, as melhores e mais férteis da região; o segundo foi a proibição da criação à solta de pequenos animais, visto que esta atividade começou a gerar conflito com os vizinhos. Com a inviabilização da criação de animais, importante forma de produção, os roçados, que eram realizados distantes, acabaram retomando para o mesmo lado do rio, mais perto do local de moradia, já que não fazia mais sentido plantar tão longe.
Foi somente na década de 1980 que foram abertas estradas de terra ligando a região em que moravam à Nova Roma e ao povoado de Ourominas. Apesar da relação com a vizinhança ser marcada pelo comércio, ela não se restringia a isso. Almeida (2008) relata que os Magalhães percorriam a região para participar de festejos dos santos locais das comunidades, eventos para os quais eram sempre convidados. Igualmente, os Magalhães recebiam vizinhos para participar dos seus festejos. Ressalta-se que na região a população católica é predominante. Em Nova Roma existe uma Igreja cujo padroeiro é São Sebastião; alguns povoados também possuem pequenas igrejas, como Ourominas, Canabrava, Abrobeira e Chapada.
Além das folias e das danças já mencionadas no início do relato, comuns em toda a região, os quilombolas e o município também comemoram o Reinado nas festas de Nossa Senhora do Rosário, as festas juninas de Santo Antônio, São João e São Pedro e, especialmente, no quilombo da Família Magalhães ocorre a festa de Nossa Senhora da Conceição. De acordo com Almeida (2007), mencionado por Pedroza (2011), a Comunidade Quilombola Magalhães pratica um catolicismo camponês tradicional, herdado da tradição religiosa Kalunga, no qual fica perceptível um processo de miscigenação dos cultos católicos com tradições religiosas de origem africanas.
Ainda na década de 1980, a comunidade sofreu com a chegada do terceiro paulista, cujo nome era Rael. Rael conseguiu expropriar de vez os Magalhães, cortando definitivamente o acesso às áreas de plantio nas matas de beira do córrego Lavado. Posteriormente, promoveu também a perda da própria área de habitação dos quilombolas, que foram reduzidos à condição de moradores e, juntamente com outros, deslocados para a área do córrego do Lavado e para a sede da fazenda, na beira do Paranã.
Rael, por sua vez, iniciou os preparativos para a implantação de uma enorme plantação de arroz em toda a extensão da fazenda. Em menos de uma década, Almeida (2008) aponta que as perdas foram significativas. Os quilombolas ficaram encurralados numa área de cerca de 450 hectares, formada por terras pouco férteis, com escassas áreas de mata de beira próprias para o plantio. Esta é a área que passou a ser ocupada por eles até os dias de hoje.
Apesar desta transformação ocorrida com a chegada do fazendeiro, o projeto de Rael fracassou, e ele se retirou da região com dívidas e desmoralizado. Almeida (2008) registra que Rael contraiu um empréstimo bancário para financiar uma grande plantação mecanizada de grãos, mas não alcançou seu objetivo. Assim, ele vendeu todo o seu gado e seu maquinário antes de fugir dali. Através de uma manobra jurídica, a fazenda retornou para o proprietário anterior, que a vendeu para a família Rodrigues, a qual consta até hoje como proprietária. Após a saída de Rael, os Magalhães conseguiram recuperar parcialmente sua área. Os moradores que foram deixados por Rael para cuidar da terra acabaram tornando-se posseiros e passaram a ter uma convivência pacífica com os Magalhães e demais pessoas da vizinhança.
A perda de áreas importantes para a comunidade coincide, exatamente, com a época em que os filhos de Dona Alvina atingem a idade para se casar, constituindo novas famílias e aumentando a população do grupo. Isto causa um impasse, visto que, ao mesmo tempo em que aumenta a população, poucas terras ficaram disponíveis, elevando a pressão sobre as terras restantes. Isto resultou na intensificação do uso deste recurso, exaurindo as terras na beira do Paranã, elemento que se distanciava das tradições quilombolas de trato com a natureza. Desta forma, em 1990, o grupo passou a plantar nas fazendas vizinhas e voltou a fazer roças coletivas (ALMEIDA, 2008). A redução territorial e a perda de recursos tiveram como consequência o fim da pequena criação de animais. A área restante propiciava mais a criação de gado do que a agricultura e, por esta razão, a comunidade passou a investir mais nesta atividade.
Também na década de 1990 chegaram os atuais supostos proprietários, que eram a viúva de Rodrigues e seus filhos. Esta família contratou um advogado chamado Osmani Barreto dos Santos, que passou ostensivamente a tentar expulsar os Magalhães da área. Em 1992, Perutti (2014) aponta que os Magalhães receberam a visita intimidadora de Osmani e se surpreenderam, visto que ele se dizia representate do suposto último comprador da propriedade, que nunca havia sido visto naquelas terras, muito menos seus herdeiros. Osmani passou a intimidar os quilombolas com armas de fogo, roubo de alimentos das roças, derrubadas de cercas e apeamento do gado (quando se amarram as patas dos animais). Também passou a expulsar outros posseiros não quilombolas da região. Devido a isso, os quilombolas sofreram duas ações de despejo movidas por Osmani, sendo quase expulsos definitivamente de suas terras.
Utilizando-se de violência, Almeida (2008) conta que Osmani limpou completamente a área localizada nas imediações do rio Areia, desde a estrada de Ourominas até a beira do Paranã. A Família Magalhães e os posseiros vizinhos sofreram por quase uma década as violências acometidas por Osmani. Diante deste cenário, posseiros e quilombolas acabaram se fortalecendo no intuito de resistir, na Justiça, às ações de despejo, procurando apoio na sociedade local e acionando órgãos estaduais e federais responsáveis por políticas voltadas para os quilombolas. Assim, conseguiram se manter na terra.
Na madrugada do dia 18 para o dia 19 de março de 2004, Osmani foi assassinado na sede da Fazenda dos Rodrigues por um pistoleiro que se aproximou numa moto. Sabe-se que Osmani colecionou uma imensa quantidade de inimigos após uma década de crimes praticados na região, e Almeida (2008), a partir de relatos coletados na comunidade, infere que seu assassinato deva ter relação com estas ações. No entanto, Almeida (2008) aponta que a polícia jamais encontrou o mandante e o executor do crime. Perutti (2014) relata que após a morte do advogado, e ao final das ações de despejo, os supostos herdeiros ficaram com parte das terras que disputavam com a Família Magalhães, das quais o falecido advogado já havia conseguido expulsar algumas famílias não quilombolas.
De acordo com Perutti (2014), a partir deste mesmo ano, com o apoio de políticos, vizinhos e de um procurador da república, a comunidade passou a tomar conhecimento dos seus direitos enquanto quilombolas. Por isso, encaminhou uma carta à Fundação Cultural Palmares (FCP) solicitando uma certidão de autorreconhecimento. A Portaria nº 19, de 14 de maio de 2004, foi publicada no Diário Oficial da União em junho de 2004, registrando e certificando que a Comunidade da Família Magalhães era remanescente de quilombos.
Ainda em 2004, o INCRA foi acionado e abriu o processo de regularização do território da Família Magalhães. Na mesma época, a autora relata que os quilombolas foram ao encontro do então presidente Lula, que esteve em evento no território Kalunga. A ele foi entregue um ofício assinado pelo então prefeito, vice-prefeito e vereadores novarromanos, explicitando a situação que o grupo quilombola sofria. O presidente afirmou que iria tomar providências sobre o caso.
Em outubro de 2006, Almeida (2008) destaca que, no âmbito da Superintendência Regional do INCRA no Distrito Federal e Entorno (SR 28-DFE), foi constituída a equipe técnica responsável pela elaboração do RTID. Os trabalhos da equipe foram iniciados neste mesmo mês, provocando uma movimentação atípica na cidade de Nova Roma e causando grande mobilização por parte da comunidade. No final de 2006, realizou-se uma reunião entre a equipe do INCRA e a Comunidade Quilombo Família Magalhães para definir e aprovar a proposta final de delimitação do território da comunidade, que após longas discussões resultou na definição da área do quilombo. O RTID foi publicado no Diário Oficial da União no dia 21 de agosto de 2007.
No dia 30 de abril de 2011, Jesus et al (2011) indicam que foi realizada uma oficina proposta pelo Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição Escolar da Universidade Federal de Goiás (CECANE/UFG) visando construir uma proposta de investigação sobre alimentação, saúde e qualidade de vida em comunidades quilombolas do estado de Goiás, a partir dos parâmetros do Programa Nacional de Alimentação Escolar Quilombola (PNAQ). Participaram da oficina lideranças de 22 comunidades quilombolas certificadas pela FCP – dentre elas, a comunidade Quilombo dos Magalhães – além de pesquisadores da UFG e de outras instituições. Da oficina, originou-se um grupo que ficou responsável por estruturar uma proposta de trabalho com a finalidade de intervir sobre os problemas de alimentação presentes nas comunidades e elaborou-se um cronograma de ações que deveriam ser cumpridas até o final do segundo semestre de 2011.
A Portaria nº 237 do INCRA, de 31 de maio de 2011, também foi publicada em junho de 2011, reconhecendo e declarando como terras da Comunidade Remanescente de Quilombo Família Magalhães a área de 5.492,1421 hectares e 48.461,21 de perímetro; anexado a ela estava o memorial descritivo.
Entre 20 e 23 de julho de 2012, ocorreu o I Encontro de Lideranças Quilombolas de Goiás, na Vila São Jorge, em Alto Paraíso (GO). O encontro teve como proposta promover uma integração entre os líderes quilombolas de várias regiões do estado para discutir políticas públicas voltadas para os povos tradicionais. Também estiveram presentes representantes da comunidade do Quilombo Família Magalhães.
Em 21 de novembro de 2012, os quilombolas conseguiram, enfim, que a presidente da república, Dilma Rousseff, assinasse um decreto de desapropriação, declarando de interesse social os imóveis sob domínio privado válido abrangidos pelo território da comunidade remanescente do quilombo Família Magalhães, para futura titulação do território quilombola. Todavia, após a publicação deste decreto, nenhuma ação efetiva foi realizada para a garantia da titulação do quilombo. De acordo com Perutti (2014), dois dos proprietários a serem desapropriados manifestaram o desejo de vender suas terras ao INCRA, sendo que um deles, segundo os Magalhães, procurou o órgão oferecendo sua propriedade para desapropriação.
Em fevereiro de 2014, durante uma reunião no INCRA, foi explicado para a comunidade que o processo de titulação estava em fase de vistoria dos imóveis e posses incidentes no território, mas até aquela data a vistoria propriamente não tinha sido iniciada.
Por isso, em 22 de março de 2014, a comunidade enviou uma carta ao superintendente regional do INCRA do DF e Entorno, Sr. Marco Aurélio Bezerra da Rocha. A comunidade alegava que estava há muito tempo aguardando pela titulação do território. Durante este tempo, destacaram as ameaças e o sofrimento para conseguirem permanecer na terra, período marcado tanto pela ação de pistoleiros quanto por ações de despejo. Os quilombolas relataram também a insegurança em mexer no território ainda não legalmente sob o domínio da comunidade. Apontam ainda que as dificuldades têm feito com que muitos moradores abandonem a comunidade para irem trabalhar em Brasília, Goiânia e em fazendas vizinhas. Ao fim, solicitaram que o direito deles fosse garantido o mais rápido possível, ainda no primeiro semestre de 2014, pedindo que o INCRA concluísse com mais celeridade a vistoria e o ajuizamento das ações de desapropriação. Perutti (2014) diz que a comunidade não obteve qualquer resposta por parte do superintendente.
Perutti (2014) afirma que mesmo com uma situação favorável, devido ao baixo número de propriedades a serem desapropriadas, até julho de 2014 a ação de desapropriação não havia sido ajuizada, e o processo encontrava-se paralisado. O INCRA alegou que ainda seria necessário realizar uma vistoria no território para verificar os títulos incidentes e possíveis posseiros na área antes de proceder o ajuizamento da ação, que é o primeiro passo à desapropriação. No entanto, o tempo foi passando e nada de concreto foi feito.
Ao passo que a titulação de suas terras é processada com morosidade, a comunidade continua sofrendo as consequências, tais como o impedimento de realizar roças maiores, a falta de alternativas de geração de renda ou a dificuldade de acessar créditos devido à ausência da titulação. Perutti (2014) ressalta ainda que, nos últimos tempos, a comunidade da Família Magalhães tem preseciado atividades irregulares no seu território, como a extração de areia, que vem contribuindo para a degradação da área. Além do mais, as consequências da pesca predatória, realizada por terceiros há décadas na região, é um problema que vem se aflorando, tornando-se queixa constante dos moradores, que observam os peixes desaparecendo.
O Quilombo da Família Magalhães é um dos 19 territórios no estado de Goiás que aguardam pela titulação, estado este que não possui nenhuma terra titulada pelo governo federal. Enquanto isso, segundo registra Peruti (2014), Dona Alvina, hoje com mais de 90 anos, sonha em ainda estar viva para ver seu pedaço de chão, de seus filhos, netos, bisnetos e tataraneta, enfim titulado.
Cronologia
Século XVII e XVIII O interior do Brasil começa a ser colonizado devido à descoberta de Minas e os escravos passam a fugir dos centros de extração de ouro, resultando nas primeiras formações quilombolas.
1930 Inicia-se a formação da comunidade quilombola Família Magalhães, a partir da migração de três irmãos oriundos da região dos Kalungas, que subiram o rio Paranã em busca de melhores condições de vida.
1944 – Seu Pedro Magalhães da Cunha, um dos irmãos, se casa com Alvina Pereira dos Santos.
1946 O casal se muda para a fazenda Gameleira.
1954 – O casal fundador da comunidade, naquele momento com apenas quatro filhos, ocupa uma pequena área livre de domínio, numa região de terra devoluta ou de terra da nação.
1964 – Quatro grandes garimpos de cassiterita são abertos a meio caminho entre os Magalhães e o povoado de Ourominas.
1974 Chegam os primeiros vizinhos próximos, os paulistas, alegando serem proprietários da Fazenda Areia, Lavado ou Ilha.
1976 – Os paulistas Chiquito e Sérgio, considerados os segundos proprietários, entram na região como sendo donos da fazenda e instalam sua sede bem próxima à área dos Magalhães.
Década de 1980 – São abertas estradas de terra ligando a região dos Magalhães à Nova Roma e ao povoado de Ourominas.
– A comunidade sofre com a chegada do terceiro paulista, de nome Rael, que corta definitivamente o acesso dos Magalhães às áreas de plantio nas matas de beira do córrego Lavado.
1990 – O grupo passa a plantar nas fazendas vizinhas e volta a fazer roças coletivas.
– Chegam os atuais supostos proprietários, a Família Rodrigues, formada pela viúva de Rodrigues e seus filhos.
1992 A família Rodrigues contrata o advogado Osmani Barreto dos Santos, que faz uma visita intimidadora aos Magalhães e passa a tentar expulsar a comunidade dali.
18 e 19 de março de 2004 – Osmani é assassinado na sede da Fazenda dos Rodrigues por um pistoleiro que se aproximou numa moto.
Junho de 2004 A Portaria nº 19, de 14 de maio de 2004, é publicada no Diário Oficial da União, registrando e certificando que a Comunidade da Família Magalhães é remanescente de quilombos.
2004 – O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) é acionado e abre o processo de regularização do território da Família Magalhães.
Outubro de 2006 – No âmbito da Superintendência Regional do INCRA no Distrito Federal e Entorno (SR 28-DFE), é constituída a equipe técnica responsável pela elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID).
Final de 2006 – Realiza-se uma reunião entre a equipe do INCRA e a Comunidade Quilombo Família Magalhães para definir e aprovar a proposta final de delimitação do território da comunidade.
21 de agosto de 2007 – O RTID é publicado no Diário Oficial da União.
30 de abril de 2011 – É realizada uma oficina proposta pelo Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição Escolar da Universidade Federal de Goiás (CECANE/UFG).
Junho de 2011 – A Portaria nº 237 do INCRA, de 31 de maio de 2011, é publicada e reconhece e declara como terras da Comunidade Remanescente de Quilombo Família Magalhães a área de 5.492,1421 hectares e 48.461,21 de perímetro; anexado a ela está o memorial descritivo.
20 e 23 de julho de 2012 Ocorre o I Encontro de Lideranças Quilombolas de Goiás, na Vila São Jorge, em Alto Paraíso (GO).
21 de novembro de 2012 Presidente Dilma Rousseff assina um decreto de desapropriação, declarando de interesse social os imóveis sob domínio privado válido abrangidos pelo território da comunidade remanescente do quilombo Família Magalhães.
Fevereiro de 2014 – Durante uma reunião no INCRA, é explicado para a comunidade que o processo de titulação está em fase de vistoria dos imóveis e posses incidentes no território.
22 de março de 2014 Com o atraso no início da vistoria, a comunidade envia uma carta ao superintendente regional do INCRA do DF e Entorno, Sr. Marco Aurélio Bezerra da Rocha, mas não obtém retorno.
Julho de 2014 Até este momento, a ação de desapropriação não é ajuizada, resultando na paralisação do processo.
Fontes
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