Criação da RDS Córregos Tamanduá-Poções-Peixe Bravo pode frear a degradação do meio ambiente e a destruição dos modos de vida de geraizeiros e quilombolas

UF: MG

Município Atingido: Riacho dos Machados (MG)

Outros Municípios: Rio Pardo de Minas (MG), Serranópolis (MG)

População: Geraizeiros, Quilombolas, Trabalhadores rurais assalariados, Trabalhadores rurais sem terra

Atividades Geradoras do Conflito: Extrativismo comercial, Implantação de áreas protegidas, Madeireiras, Mineração, garimpo e siderurgia

Impactos Socioambientais: Alteração no ciclo reprodutivo da fauna, Alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território, Contaminação ou intoxicação por substâncias nocivas, Desertificação, Desmatamento e/ou queimada, Erosão do solo, Mudanças climáticas, Poluição de recurso hídrico, Poluição do solo

Danos à Saúde: Contaminação por agrotóxico, Desnutrição, Insegurança alimentar, Piora na qualidade de vida

Síntese

Desde 2025, está em curso a proposta da criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Córregos Tamanduá-Poções-Peixe Bravo, localizada nos municípios de Riacho dos Machados, Rio Pardo de Minas e Serranópolis (MG), pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

Esta proposta encontra forte oposição de representantes de empresas que atuam na região desde a década de 1970 com empreendimentos de mineração e plantio de eucalipto: Usina Siderúrgica Ltda – Usifer, Planta7 – Empreendimentos Rurais, Replasa Reflorestadora S/A, Companhia Siderúrgica Guanabara – Cosigua, Companha Vale do Rio Doce (Vale), Carpathian Gold Inc, Mineração Riacho dos Machados Ltda (MRDM), Sicafe Produtos Siderúrgicos Ltda., SulAmericana Metai e Yamana Gold.

A ideia da criação de uma RDS se baseia em mais de 30 anos de reivindicações de boa parte da população destes municípios, especialmente de comunidades rurais tradicionais como geraizeiros e quilombolas, que buscam formas de frear a degradação do meio ambiente e a destruição dos seus modos de vida.

O município de Riacho dos Machados tem a maior parte da área prevista na proposta de criação da RDS Córregos Tamanduá-Poções-Peixe Bravo (cerca de 82% da área total). É um município cuja maioria da população vive em comunidades rurais, apesar da recente intensificação da migração para os núcleos urbanos desse e de outros municípios próximos, por conta da devastação dos rios, córregos, vegetação e solos promovida pela ação das empresas de mineração e plantio de eucalipto na região (Souza, 2020).

A comunidade de geraizeiros mais ligada à proposta de criação da RDS é o Projeto de Assentamento (PA) Tapera, uma comunidade que conseguiu seu direito de assentamento por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 1993, quando foi iniciada a luta para a construção de uma Unidade de Conservação (UC) ambiental na região, já muito afetada pela ação da mineração e pelo plantio de eucalipto. Além dos geraizeiros, outra população tradicional que vive na área estudada para a implementação da RDS são os quilombolas da comunidade remanescente do Quilombo de Peixe Bravo.

Até a década de 1970, as populações rurais destes municípios em questão conseguiam reproduzir seus modos de vida com mais tranquilidade por conta da alta disponibilidade de terras para realizar seu manejo do solo, das plantações e de seu extrativismo artesanal.

Em 1972, foi criada a Sicafe Produtos Siderúrgicos Ltda, empresa que se dedica à implantação de monoculturas comerciais de eucalipto em terras públicas da União arrendadas. A entrada dessa e de outras empresas semelhantes causou, desde então, grandes modificações prejudiciais aos processos naturais da região.

Em 1985, o município de Rio Pardo de Minas já registrava mais de 35% de seu território coberto pela monocultura de eucalipto, o que correspondia a 89.743,23 ha (Cardoso, 2000 apud Brito, 2013). As empresas registradas nos contratos de arrendamento de terras públicas no município em questão desde 1975 são: Usina Siderúrgica Ltda – Usifer, Planta7 – Empreendimentos rurais, Replasa Reflorestadora S/A e Companhia Siderúrgica Guanabara – Cosigua.

Em 2009, com apoio do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA/NM), moradores do PA Taperas protocolaram requerimento junto ao ICMBio para a implementação de uma Unidade de Conservação (UC) ambiental no município de Riacho dos Machados, abrangendo o território do assentamento. Inicialmente, a ideia era a criação de uma Reserva Extrativista – Resex, porém, com o andamento de conversas, encontros com a comunidade e visitas técnicas do ICMBio realizadas entre 2010 e 2025, a categoria sugerida foi alterada para Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS), no âmbito do processo, por se adequar mais aos modos de vida dos geraizeiros e quilombolas (ICMBio, 2025).

A exploração dos recursos do Cerrado por parte das comunidades tradicionais que vivem no bioma ocorre por meio da retirada de frutos e de madeiras, além da produção de medicamentos com plantas, ervas e outros elementos da biodiversidade local.

O estudo técnico publicado pelo ICMBio aponta ainda que, com o avanço das plantações de eucalipto e de algodão (estas especialmente nas áreas de clima semi-árido), os ecossistemas dos quais os geraizeiros e demais populações tradicionais da região retiram seu sustento estão sendo gravemente impactados, impossibilitando muitas vezes a atividade do extrativismo por parte dessas pessoas, resultando na diminuição da ocorrência das feiras locais.

Vale ainda destacar que, após a publicação do estudo-síntese do ICMBio em abril de 2025, no mesmo mês foi realizada uma consulta pública no município de Riacho dos Machados para debate com a população e esclarecimento de dúvidas a respeito da proposta.

Porém, ao passo que os representantes comunitários geraizeiros e quilombolas apresentaram seus argumentos favoráveis à criação da RDS com clareza e firmeza, pessoas ligadas aos empreendimentos dos monocultivoss de eucaliptos e das minerações, bem como a políticos de extrema-direita, foram à audiência pública para “tumultuá-la e difundir desinformações a respeito de desapropriações e expulsões de famílias da área da RDS” (Moreira, 2025), que justamente tem um modelo de Unidade de Conservação que permite a exploração adequada dos recursos naturais.

Ao fim deste relato, de acordo com o que conclui o relatório da síntese de estudos técnicos realizados pelo ICMbio em abril de 2025, frente as ameaças ao meio ambiente e aos povos tradicionais do Cerrado em curso na região, a melhor alternativa para manter o bioma em pé e as pessoas vivendo com dignidade e direitos fundamentais garantidos seria a implementação da proposta de criação da RDS Córregos Tamanduá-Poções-Peixe Bravo.

 

Contexto Ampliado

Atualmente, está em curso a proposta da criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Córregos Tamanduá-Poções-Peixe Bravo, localizada nos municípios de Riacho dos Machados, Rio Pardo de Minas e Serranópolis (MG), pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Essa proposta encontra forte oposição de representantes de empresas que atuam na região desde a década de 1970 com empreendimentos de mineração e plantio de eucalipto (Usina Siderúrgica Ltda – Usifer, Planta7 – Empreendimentos rurais, Replasa Reflorestadora S/A, Companhia Siderúrgica Guanabara – Cosigua, Companha Vale do Rio Doce (Vale), Carpathian Gold Inc, Mineração Riacho dos Machados Ltda (MRDM), Sicafe Produtos Siderúrgicos Ltda., SulAmericana Metais e Yamana Gold).

A ideia da criação de uma RDS se baseia em mais de 30 anos de reivindicações de boa parte da população desses municípios, especialmente de comunidades rurais tradicionais como geraizeiros e quilombolas, que buscam formas de frear a degradação do meio ambiente e da destruição dos seus modos de vida.

 

Proposta de RDS Tamanduá-Poções-Peixe Bravo. Fonte: ICMBio, 2025.

 

“Riacho dos Machados e Serranópolis de Minas pertencem, segundo a classificação do IBGE e adotada pelo governo do Estado de Minas Gerais, à microrregião de Janaúba, enquanto Rio Pardo de Minas compõe a de Salinas. Ambas pertencem à macrorregião do Norte de Minas. Ainda de acordo com os dados do IBGE, em 2022 as populações e densidades populacionais (habitantes por quilômetro quadrado) desses municípios são: Riacho dos Machados: população de 8.756 hab. e densidade de 6,6 hab/km2; Serranópolis de Minas: população de 4.399 hab. e densidade de 7,97 hab/km2; Rio Pardo de Minas: população de 28.271 hab. e densidade de 9,07 hab/km2.” (ICMBio, 2025)

O município de Riacho dos Machados é onde se localiza a maior parte da área prevista na proposta de criação da RDS Córregos Tamanduá-Poções-Peixe Bravo (cerca de 82% da área total). A maior parte de sua população vive em comunidades rurais, apesar da recente intensificação da migração para os núcleos urbanos desse e de outros municípios próximos, por conta da devastação dos rios, córregos, vegetação e solo promovida pela ação das empresas de mineração e plantio de eucalipto na região (Souza, 2020).

Na área rural do município existem muitas comunidades de geraizeiros, grupos de camponeses que se instalaram historicamente na região do norte de Minas Gerais, definidos pelo autor Carlos Alberto Dayrell assim:

Geraizeiros, como cultural e contrastivamente assim denominados, são os habitantes dos gerais. Desenvolveram a habilidade de cultivar às margens dos pequenos cursos d´água uma diversidade de culturas como a mandioca, cana, amendoim, feijões diversos, milho e arroz. Além das aves o gado bovino e mesmo o suíno eram criados soltos, até em período muito recente, nas áreas de chapadas, tabuleiros e campinas de uso comunal. E são nestas áreas, denominadas genericamente como gerais, que vão buscar o suplemento para garantir a sua subsistência: caça, frutos diversos, plantas medicinais, madeiras para diversos fins, mel silvestre etc. Os produtos que levam para o mercado – farinha de mandioca, goma, rapadura, aguardente, frutas nativas, plantas medicinais, artesanato – refletem o ambiente, o modo de vida, as possibilidades e potencialidades dos agroecossistemas onde vivem.” (Dayrell, 1998: 74 apud ICMBio, 2025)

 

Casa típica de família geraizeira. Fonte: Isabel Oliveira, 2011.

 

Portanto, podemos notar que os geraizeiros são pessoas que têm seu modo de viver intimamente ligado à terra onde vivem e onde viveram seus antepassados, com quem aprenderam os ciclos e os tempos do ambiente e dos ecossistemas onde estão inseridos.

A comunidade de geraizeiros mais ligada à proposta de criação da RDS é o Projeto de Assentamento (PA) Tapera, uma comunidade que conseguiu seu direito de assentamento por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 1993, quando foi iniciada a luta pela construção de uma Unidade de Conservação (UC) ambiental na região, já muito afetada pela ação da mineração e pelo plantio de eucalipto.

Atualmente, o Assentamento Tapera conta com 53 lotes demarcados, sendo que 42 deles são ocupados por 76 famílias, totalizando aproximadamente 260 habitantes. Oito lotes tornaram-se áreas coletivas e três são destinados à Reserva Legal.

Além dos geraizeiros, outra população tradicional que vive na área estudada para a implementação da RDS são os quilombolas. Na região prevista para a criação da RDS há a comunidade remanescente do Quilombo de Peixe Bravo, certificada pela Fundação Cultural Palmares (FCP) pelo Registro 1089, fl. 105, cadastro 1011 de 15/10/2008, publicado no Diário Oficial da União (DOU) em 15/12/2008. Ela se localiza às marges do curso d’água que lhe confere o nome e é o limite natural entre os municípios de Riacho dos Machados e Rio Pardo de Minas.

Segundo o ICMBio, a relação das famílias residentes na comunidade indica que reside nela uma população total de 1.596 pessoas. Ainda segundo estudos da instituição citada acima, a ocupação quilombola da área da bacia do Rio Peixe Bravo remonta à década de 1820, quando populações de pessoas escravizadas vindas do arraial Serra de Santo Antônio de Itacambiruçu, atual Grão Mogol, ou da Bahia se estabeleceram no local. A data foi levantada por meio de entrevistas com moradores.

Segundo o relatório do ICMBio para a implementação da RDS:

“Povos e Comunidades Tradicionais são, de acordo com o Decreto Federal n° 6.040/2007, grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.”

Até a década de 1970, as populações tradicionais desses municípios em questão conseguiam reproduzir seus modos de vida com mais tranquilidade, por conta da alta disponibilidade de terras para realizar seu manejo do solo, das plantações e de seu extrativismo artesanal. Uma das técnicas mais usadas pelos geraizeiros e pela população historicamente assentada no norte de Minas Gerais é o cultivo em pousio.

Essa prática tradicional ”consiste na derrubada de uma área de mata (‘capão’), que, após seca, é queimada. A mesma área pode ser cultivada por dois a três anos, e depois deixada em repouso, sendo tomada pela vegetação nativa, enquanto uma nova área é aberta para a repetição do processo. A paisagem local fica formada assim por um mosaico produtivo, composto por roças novas, roças velhas e áreas de pousio.” (Nogueira, 2009 apud ICMBio, 2025)

Em 1972, foi criada a Sicafe Produtos Siderúrgicos Ltda, uma empresa que se dedica à implantação de monoculturas comerciais de eucalipto em terras públicas arrendadas da União. A entrada dessa e de outras empresas semelhantes causou, desde então, grandes modificações prejudiciais aos processos naturais da região, como relata Gabriel Ribeiro, em publicação de 2025:

“A SICAFE Produtos Siderúrgicos Ltda é uma empresa dedicada ao cultivo comercial de monoculturas de eucalipto da espécie clone, que veio a compor na região da Serra Geral e do Alto Rio Pardo um mosaico agroindustrial pelo qual as matas de cerrado presentes nas chapadas dos gerais acabaram por sofrer intensos distúrbios quanto aos seus ciclos biogeoquímicos em nível de plantas, gentes, animais e ecossistemas. Os moradores locais acabaram encurralados em pequenos fragmentos de grotas, enquanto as chapadas, que eram utilizadas como áreas coletivas para a coleta de frutos do cerrado e criação de animais ‘na solta’, acabaram devastadas.” (Ribeiro, 2025)

Em 1985, o município de Rio Pardo de Minas já registrava mais de 35% de seu território coberto pela monocultura de eucalipto, o que correspondia a 89.743,23 ha (Cardoso, 2000 apud Brito, 2013). As empresas registradas nos contratos de arrendamento de terras públicas no município em questão desde 1975 são: Usina Siderúrgica Ltda – Usifer; Planta7 – Empreendimentos rurais; Replasa Reflorestadora S/A; Companhia Siderúrgica Guanabara – Cosigua.

Os contratos, iniciados entre 1975 e 1987, tinham tempo de duração entre 22 e 25 anos, terminando entre 1999 e 2012. A empresa que concentrava mais terras em seu nome foi a Cosigua, registrando mais de 34 mil hectares de plantação de eucaliptos em sua posse (Brito, 2013). O mapa abaixo mostra a situação da vegetação na região do Norte de Minas em 2007, com a cor vermelha representando a área de monocultura de eucalipto:

 

Mapa de vegetação do norte de Minas Gerais – 2007. Fonte: IEF, 2007. Org. Veloso, G. A., 2011 apud Brito, 2013.

 

Em sua tese de doutorado, publicada em 2013, a doutora em desenvolvimento sustentável Isabel Brito aponta que, desde a década de 1990, a comunidade dos geraizeiros da região do Alto Rio Pardo (MG) vem se articulando em rede com apoiadores diversos:

“Os geraizeiros do Alto Rio Pardo vêm se fortalecendo a partir das relações internas, da consolidação e atualização de sua identidade e da construção de uma rede de apoio e colaboração.” (Brito, 2013).

A autora aponta que esse movimento das comunidades de geraizeiros é uma afirmação dessas populações sobre seu direito à existência e sobre seus direitos humanos e individuais garantidos pela Contituição Federal de 1988 frente ao avanço do complexo industrial-florestal composto por minerações e plantações de monoculturas de eucaliptos que “encurralavam” o Cerrado, bioma que serve de morada aos gerazeiros e é parte essencial de sua identidade.

Em março de 2003, um encontro na comunidade de geraizeiros de Brejinhos, em Rio Pardo de Minas, consolidou a rede de geraizeiros, formada inicialmente pelas associações de moradores das comunidades, pelo Sindicato de Trabalhadores Rurais de Rio Pardo de Minas (STR/RPM), o Centro de Agricultura Alternativa no Norte de Minas (CAA-NM) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Vale destacar que este Mapa de Conflitos também conta com uma ficha específica sobre o conflito em Rio Pardo de Minas, que pode ser acessado pelo link: https://shre.ink/xpZ.

Isabel Brito ainda afirma que, à altura da publicação de sua tese de doutorado, o STR/RPM era o elo mais significativo desta rede:

“O Sindicato de Trabalhadores Rurais de Rio Pardo de Minas é o elo mais importante da rede, pois faz mediações externas e internas; tem a anuência direta dos seus sócios e grande representatividade. Parte de seu trabalho se dá em torno da ‘seguridade social’, mas ele tem atuado também no apoio aos agricultores em seu direito à terra e em vários aspectos do desenvolvimento sociopolítico-econômico das comunidades rurais do município.” (Brito, 2013)

O CAA-NM é uma das organizações não governamentais (ONGs) mais ativas e importantes desta rede de apoio dos geraizeiros, e sua atuação abrange assessoria técnica, política e articulação com outras entidades públicas e não governamentais, como: Articulação Nacional de Agroecologia – ANA; Articulação do Semi-árido Brasileiro – ASA; Rede Cerrado; Rede Alerta Contra o Deserto Verde; Articulação Mineira de Agroecologia – AMA; e Articulação do Semiárido de Minas Gerais – ASA/MG (Brito, 2013).

A CPT, fundada em 1975 pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), é um organismo criado para atuação da Igreja Católica junto às comunidades rurais do interior do Brasil. Tornou-se uma entidade com ações ligadas à luta de camponeses brasileiros pelo direito à terra, à saúde, ao trabalho, entre outros direitos humanos, somando na luta de diversas comunidades rurais que têm seus direitos ameaçados por processos produtivos no campo. No norte de Minas, a CPT articula trabalhadores rurais, camponeses e trabalhadores sem terra, atuando na conexão com sindicatos rurais e outros movimentos sociais (Brito, 2013).

Além destes parceiros, a rede de apoio das comunidades geraizeiras da região do norte de Minas conta com a Articulação Rosalino de Povos Tradicionais; os núcleos de pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes); Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental (Niisa); o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Comunidades Tradicionais no Rio São Francisco (Opará Mutum); o Núcleo de Estudos e Pesquisas Regionais e Agrários (Nepra); o Grupo de Pesquisa para uma Educação Decolonial PluriEtnoPopular (GDECO/Etnopo); além de autarquias e empresas públicas, como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).

Com o fortalecimento de sua luta por meio da organização e articulação com outros entes, as comunidades de geraizeiros conseguiram ampliar o escopo de sua resistência pelos seus direitos e pela preservação do Cerrado. Em 2009, com apoio do CAA – NM, moradores do PA Taperas protocolaram o requerimento junto ao ICMBio para a implementação de uma Unidade de Conservação (UC) ambiental no município de Riacho dos Machados, abrangendo o território do assentamento.

Inicialmente, a ideia era a criação de uma Reserva Extrativista – Resex, porém, com o andamento de conversas, encontros com a comunidade e visitas técnicas do ICMBio realizadas entre 2010 e 2025, a categoria sugerida foi alterada para Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) no âmbito do processo por se adequar mais aos modos de vida dos geraizeiros e quilombolas (ICMBio, 2025).

Isso porque a RDS, além de incluir os moradores das comunidades tradicionais no conselho deliberativo que administra a Reserva, permite o uso sustentável do solo no território da UC, contemplando as atividades tradicionais além do extrativismo. Como a agricultura e a pecuária são realizadas historicamente pelos quilombolas, geraizeiros e outras comunidades tradicionais que já vivem na área há décadas, o modelo de RDS se adequaria melhor a todas as práticas de subsistência realizadas pelas populações que residem na região em questão.

Em 2023, o ICMBio iniciou o processo de criação de um Parque Nacional (Parna) Peixe Bravo, na porção norte mineira da Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço. A proposta para sua criação veio de diversas instituições: Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais, Agência de Desenvolvimento Regional Integrado (Aderi), Instituto Prístino, Instituto Grande Sertão, Instituto Ekos e o Comitê Estadual da Reserva da Serra do Espinhaço.

Porém, a partir das discussões realizadas para a implantação, no âmbito da Oficina de Trabalho “Critérios e Priorização para a Criação de Unidades de Conservação Federais”, realizada pelo ICMBio entre janeiro e abril de 2024, que contou com representantes das instituições citadas, do ICMBio, das comunidades tradicionais e organizações não governamentais e governamentais, ficou demonstrado que não havia como implantar uma Unidade de Proteção Integral na região, pois a área é habitada por povos e comunidades tradicionais (ICMBio, 2025).

Além disso, durante essas discussões, foi observada a sobreposição com parte da área destinada à implantação da RDS Córregos Tamanduá e Poções. Logo, foi acordada, junto aos demandantes dos dois processos, a unificação das propostas em uma UC de uso sustentável (RDS Córregos Tamanduá-Poções-Peixe Bravo) (ICMBio, 2025).

“A Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) é uma área natural que abriga populações tradicionais, cuja existência baseia-se em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às condições ecológicas locais e que desempenham um papel fundamental na proteção da natureza e na manutenção da diversidade biológica. Tem como objetivo básico preservar a natureza e, ao mesmo tempo, assegurar as condições e os meios necessários para a reprodução e a melhoria dos modos e da qualidade de vida e exploração dos recursos naturais das populações tradicionais, bem como valorizar, conservar e aperfeiçoar o conhecimento e as técnicas de manejo do ambiente, desenvolvido por estas populações.” (ICMBio, 2025)

 

 

Quadro com as características de uma RDS. Fonte: ICMBio, 2025.

 

A exploração dos recursos do Cerrado por parte das comunidades tradicionais que vivem no bioma se realiza com a retirada de frutos, de madeiras e com a produção de medicamentos. A retirada de madeira se dá basicamente pela coleta de madeira seca já caída, não representando impactos ambientais nocivos aos ecossistemas; e a disponibilidade de frutos típicos é farta, possibilitando a obtenção de renda com o escoamento da produção por meio de cooperativas de produtores locais. Entre os produtos comercializados, os óleos de pequi e rufão se destacam como tendo grande procura por parte dos frequentadores das feiras das quais os gerazeiros participam.

O estudo técnico publicado pelo ICMBio aponta ainda que, com o avanço das plantações de eucalipto e de algodão (estas especialmente nas áreas de clima semi-árido), os ecossistemas dos quais os geraizeiros e demais populações tradicionais da região retiram seu sustento estão sendo gravemente impactados, impossibilitando muitas vezes a atividade do extrativismo, resultando na diminuição da ocorrência das feiras locais. Esta realidade se reflete em uma grave piora das condições de vida para essas famílias, que dependem dessa comercialização de mercadorias para obter sua renda.

O estudo ainda destaca que, recentemente, empreendimentos de mineração ligados à Vale estão sendo estudados na região onde está sendo proposta a RDS, mas que ainda não há nenhum licenciamento ou requerimento de licenciamento em andamento. Apesar disso, vale registrar com o mapa abaixo o quanto a mineração é presente na região, bem como seus impactos negativos sobre os ecossistemas locais e o Cerrado.

O mapa mostra as áreas em 2012 já licenciadas para a extração mineral na região do norte de Minas. Cada quadrado é uma área já decretada para exploração mineral.

 

Mapa de empreendimentos de mineração no norte de Minas Gerais – 2012.

 

Um caso que vale registrar é o da mina Ouro Fino, uma área de mineração de ouro localizada entre os municípios de Riacho dos Machados e Porteirinha, que funcionou de 1989 a 1997 sob a administração da antiga Companhia Vale do Rio Doce – CVRD (hoje, Vale S.A.). Em 2007, a mina foi adquirida pela empresa canadense Carpathian Gold Inc., que no mesmo ano iniciou o processo de autorização da exploração da mina, concedida pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) em 2009.

A partir desta autorização, a empresa iniciou os processos de licenciamento ambiental, que foram concluídos em 2015, quando se retomou a extração de ouro na área, renomeada de Mineração Riacho dos Machados (MRDM). A empresa canadense atua sob o nome de Leagold na região. Em 2017, os direitos de exploração da mina foram repassados ao grupo Yamana Gold (Souza, 2020).

Ao fim do estudo-síntese que baseia a proposta de criação da RDS Córregos Tamanduá-Poções-Peixe Bravo, o ICMBio destaca a seguinte argumentação para defendê-la:

“No que tange aos aspectos ambientais, a região apresenta relevante biodiversidade expressa nas formações de mata seca, mata de galeria, caatinga arbórea e arbustiva, cerrado denso a campo cerrado e rupestre, destacando ainda as áreas de campos ferruginosos (cangas), fundamentais para a disponibilidade hídrica de peculiar riqueza na região. Foram ainda encontradas recentemente cavidades com características específicas e singulares. Referindo-se à configuração social local, a região abriga povos e comunidades tradicionais, em particular os geraizeiros, primeiros demandantes da proposta de criação, e remanescentes de quilombolas em processo de reconhecimento e demarcação territorial. Tais comunidades apresentam riqueza cultural e histórica de notório conhecimento empírico associado aos ecossistemas descritos. Esses grupos populacionais, cuja existência imprescinde da natureza para garantia da reprodução social dos modos de vida, atuam como guardiões da biodiversidade local. A criação de Unidade de Conservação federal no polígono proposto apresenta potencial de contribuir com o fortalecimento da governança territorial, além de servir como mais uma camada de proteção do território diante da complexidade ligada a pressão econômica de grandes empreendimentos. Frente ao exposto, conclui-se que a proposta de criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Córregos Tamanduá-Poções-Peixe Bravo em questão consiste na melhor alternativa técnica, ambiental e social para a região.” (ICMBio, 2025)

Vale ainda destacar que, após a publicação do estudo-síntese, foram realizadas em abril de 2025 duas audiências públicas organizadas pelo ICMBio na comunidade quilombola de Peixe Bravo e na comunidade geraizeira de Córrego Verde, no município de Riacho dos Machados, para debater com a população e esclarecer dúvidas a respeito da proposta.

Porém, ao passo que os representantes comunitários geraizeiros e quilombolas apresentaram seus argumentos favoráveis à criação da RDS com clareza e firmeza, pessoas ligadas aos empreendimentos das monoculturas de eucaliptos e das minerações, bem como a políticos de extrema-direita, foram à audiência pública para tumultuá-la e difundir desinformações a respeito de desapropriações e expulsões de famílias da área da RDS, que justamente tem um modelo de Unidade de Conservação que permite a exploração adequada dos recursos naturais (Moreira, 2025).

A repercussão desta ação de tentativa de coação levou o ICMBio a publicar em seu site, em 24 de abril de 2025, uma nota de esclarecimento desmentindo diversas notícias falsas criadas para atrapalhar o andamento da implementação da RDS Córregos Tamanduá-Poções-Peixe Bravo.

O relatório do estudo-síntese realizado pelo ICMBio em abril de 2025 conclui que, frente as ameaças ao meio ambiente e aos povos tradicionais do Cerrado na região, a melhor alternativa para manter o bioma em pé e as pessoas vivendo com dignidade, e tendo seus direitos fundamentais garantidos, seria a criação da RDS Córregos Tamanduá-Poções-Peixe Bravo.

 

 

Cronologia

1972: Criação da empresa Sicafe Produtos Siderúrgicos Ltda, responsável pela implantação de diversas áreas de monocultura de eucaliptos em terras públicas da União arrendadas na região do Alto Rio Pardo e da Serra Geral, norte de Minas Gerais.

1975: Outras empresas de arrendamento de terras públicas para implementação de monocultura de eucaliptos chegam à região, especialmente ao município de Rio Pardo de Minas: Companhia Siderúrgica Guanabara – Cosigua; Usina Siderúrgica Ltda – Usifer; Planta7 – Empreendimentos rurais; Replasa Reflorestadora S/A.

1989: A Mina Ouro Fino começa a operar entre Riacho dos Machados e Porteirinha (MG), sob administração da então Companhia Vale do Rio Doce (CVRD, hoje Vale). A mina opera em lavra a céu aberto até 1997.

1993: PA Taperas (Riacho dos Machados, MG) consegue sua regularização de assentamento da reforma agrária pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

2003: Encontro das comunidades atingidas pela monocultura de eucalipto, realizado na comunidade de Brejinho, município de Rio Pardo de Minas, dá início a uma série de movimentações articuladas que marcam a consolidação da rede dos geraizeiros na região.

2007: Carpathian Gold Inc., empresa de mineração canadense, consegue a concessão de lavra para reabrir a mina Ouro Fino, mediante o investimento de 250 milhões de reais.

05/2009: Carpathian Gold recebe autorização do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) para exploração da mina Ouro Fino, agora sob o nome de Mineração Riacho dos Machados (MRDM).

2009: Abertura do processo de criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS), inicialmente Reserva Extrativista (Resex) de Córregos Tamanduá e Poções, Riacho do Machado (MG), no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), por iniciativa do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA – NM), em apoio aos movimentos dos geraizeiros.

2015: Licenciamento ambiental – Estudo e Relatório de Impactos Ambientais (EIA – RIMA) é concedido à Carpathian Gold pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente de Minas Gerais (Sema/MG), que atua sob o nome de Leagold, para a exploração de ouro na MRDM.

2017: Grupo Yamana Gold compra a mina Ouro Fino e passa a administrar a Mineração Riacho dos Machados (MRDM)

2023: Começa no ICMBio o processo de criação do Parque Nacional (Parna) Peixe Bravo, na porção norte mineira da Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço, Rio Pardo de Minas (MG) .

Janeiro/Fevereiro 2024: A partir da Oficina de Trabalho “Critérios e Priorização para a Criação de Unidades de Conservação Federais”, realizada pelo ICMBio em Brasília, com representantes de órgãos e entidades públicas, pesquisadores e representantes de organizações não governamentais e povos tradicionais, fica acordada a anexação da proposta do Parna Peixe Bravo à RDS de Córregos Tamanduá e Poções.

2025: Proposta da RDS dos Córregos Tamanduá e Poções acrescenta formalmente a àrea do Quilombo do Peixe Bravo.

2025: Publicação do estudo-síntese do ICMBio defendendo a criação da RDS Córregos Tamanduá-Poções-Peixe Bravo.

Abril 2025: Realização de Consultas Públicas organizadas pelo ICMBio na comunidade quilombola de Peixe Bravo e na comunidade geraizeira de Córrego Verde, em Riacho dos Machados, a respeito da implementação da RDS Córregos Tamanduá-Poções-Peixe Bravo no município em questão.

 

Fontes

BRASIL. Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima – MMA. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio. Coordenação de Criação de Unidades de Conservação. Síntese de estudos técnicos: proposta de criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Córregos Tamanduá‑Poções‑Peixe Bravo. Brasília: ICMBio, abr. 2025. Disponível em: https://shre.ink/xpDx. Acesso em: 09 jun. 2025.

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