Comunidade do PDS João Canuto luta para realizar a gestão de seu território, combater o desmatamento ilegal e adotar práticas de cultivo pautadas no uso sustentável

UF: PA

Município Atingido: Tucuruí (PA)

Outros Municípios: Novo Repartimento (PA)

População: Agricultores familiares, Atingidos por barragens, Moradores do entorno de unidades de conservação, Trabalhadores rurais sem terra

Atividades Geradoras do Conflito: Atuação do Judiciário e/ou do Ministério Público, Barragens e hidrelétricas, Implantação de áreas protegidas, Madeireiras

Impactos Socioambientais: Alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território, Desmatamento e/ou queimada, Falta / irregularidade na demarcação de território tradicional

Danos à Saúde: Insegurança alimentar, Piora na qualidade de vida, Violência – ameaça, Violência – coação física, Violência psicológica

Síntese

O Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) João Canuto está inserido na região de Tucuruí, no sul do Pará, no km 22 da rodovia federal BR-422, sentido Tucuruí/Novo Repartimento. A região de Tucuruí foi fortemente atingida pela política de desenvolvimento realizada durante a ditadura militar com a construção da BR-230, conhecida como Rodovia Transamazônica, e com a construção da Usina Hidrelétrica (UHE) de Tucuruí, em 1975, pela Eletronorte.

Nesse período, houve um intenso fluxo migratório, sobretudo advindo do Nordeste para a região Amazônica, atraído pelo slogan oficial “terras sem homens para homens sem terra”, durante o Plano de Integração Nacional (PIN) do presidente Emílio Garrastazu Médici (1969-1974). No entanto, a concentração da terra em mãos de fazendeiros na região provocou uma realidade de muita violência no campo.

Em função disso, surgiram diversas entidades e movimentos sociais na região do sul do Pará para assessorar os trabalhadores rurais nesses conflitos, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no sudeste do Pará, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e, posteriormente, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetagri).

O caso do acampamento João Canuto explicita essa realidade de conflito pela terra. Muitos integrantes da comunidade trabalharam na construção civil da Usina Hidrelétrica de Tucuruí e, após o início de seu funcionamento, ficaram desempregados, sem terra e sem condições econômicas para retornarem aos seus estados de origem (Costa, 2021).

Em 2002, aproximadamente 60 famílias de trabalhadores rurais sem-terra, ligados ao MST e à Fetagri, ocuparam a propriedade rural denominada Fazenda Arumateua. Em paralelo, essa área da fazenda passou a compor a Área de Proteção Ambiental do Lago de Tucuruí (APA), criada em 08 de abril de 2002 pelo governo do estado do Pará, por meio da lei estadual no 6.451, abrangendo o reservatório da UHE Tucuruí.

Esse fato gerou uma especificidade para o caso, pois, como veremos adiante, inicialmente a ocupação foi denominada como Acampamento João Canuto, mas, em seguida, foi enquadrada como Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) por se localizar dentro de uma Unidade de Conservação (UC) de Uso Sustentável.

Com o início da ocupação, instaurou-se um processo de litígio pela terra, que se estendeu para o âmbito judicial, entre a Agropecuária Bom Jesus e Palmares S/A, representada legalmente pelo pretenso proprietário da fazenda, Yoshio Kamizono, e a comunidade de João Canuto. A comunidade buscou parcerias com a Fetagri e a CPT, bem como negociação com o Departamento Nacional de Trânsito (Dnit), para desenvolver as atividades produtivas nas margens da rodovia BR-422.

Além disso, houve a formação da Associação dos Trabalhadores (as) Rurais João Canuto, em abril de 2008. Cabe destacar que, entre 2005 e 2016, o suposto proprietário realizou tentativas de despejo das famílias sem autorização judicial. Mas, em todas as vezes, as famílias resistiram e retornaram posteriormente para a ocupação.

Enquanto o processo tramitava na Vara Agrária de Marabá, ocorreram diversas investigações realizadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em relação à fazenda em litígio. Como resultado disso, uma série de irregularidades envolvendo o pretenso proprietário foi sendo revelada, e a ocupação de João Canuto foi ganhando cada vez mais legitimidade.

Dentre tais irregularidades podemos destacar: a) a área da Fazenda Arumateua Agropecuária Bom Jesus e Palmares era uma área pública que sofreu grilagem cartorial, conforme explicou Costa (2021); b) o MPT inspecionou a área da fazenda e fez um laudo definindo as relações de trabalho voltadas para a pecuária em condições análogas à escravidão; c) o Ibama verificou supressão de floresta irregular na área, de proteção ambiental, conforme referido anteriormente.

Para agravar ainda mais a situação, em 2016, o suposto proprietário, sem autorização judicial e com apoio de membros da Polícia Militar e da Polícia Civil do Estado do Pará (PMPA e PCPA, respectivamente), tentou expulsar as famílias da área de forma arbitrária, levando inclusive à prisão de alguns trabalhadores rurais (Costa, 2021). Mas, a comunidade resistiu e permaneceu na região.

Naquele mesmo ano, em 2016, os trabalhadores rurais realizaram a divisão dos lotes nas terras em disputa, efetuaram as respectivas inscrições no Cadastro Ambiental Rural – CAR, e assinaram um Termo de Compromisso Ambiental – TCA com a Prefeitura Municipal de Tucuruí, com a obrigação de não realizarem nenhuma supressão ou alteração de qualquer forma de vegetação primária ou secundária sem a devida autorização.

Desde então, a comunidade do PDS João Canuto tem feito parcerias com universidades e demais instituições públicas para assessorá-los na gestão do território, tanto para combater o desmatamento ilegal quanto para auxiliá-los a adotar práticas de cultivo pautadas no uso sustentável. Um desses projetos, iniciado em 2021, é o manejo de cacau em Sistemas Agroflorestais, que conta com a assessoria técnica do Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Pará (Ideflor-Bio).

Em 11 de dezembro de 2023, a Associação dos Trabalhadores (as) Rurais João Canuto foi reconhecida como de utilidade pública para o Estado do Pará por meio da lei estadual nº 10.235. Em 28 de maio de 2024, o presidente do Incra declarou a área pública denominada Fazenda Arumateua, dentro da Gleba Tucuruí, como de interesse social para fins de criação de projeto de assentamento. E, finalmente, depois de 22 anos de luta, foi criado oficialmente o Projeto de Desenvolvimento Sustentável – PDS João Canuto, em 25 de junho de 2024, por meio da Portaria Incra n° 543.

 

Contexto Ampliado

A Comunidade João Canuto está inserida na região de Tucuruí, no sul do Pará, no Km 22 da rodovia federal BR-422, sentido Tucuruí/Novo Repartimento. A região de Tucuruí foi fortemente atingida pela política de desenvolvimento realizada durante a ditadura militar e ganhou grande projeção após a construção da Usina Hidrelétrica do Tucuruí, em 1975, pela empresa estatal Centrais Elétricas do Norte do Brasil (Eletronorte). Os conflitos decorrentes dessa barragem, envolvendo as populações tradicionais, foram registrados neste Mapa de Conflitos de Injustiça e Saúde no Brasil, em: PA – Atingidos por barragens, indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais de Tucuruí lutam por seus direitos.

Naquele período, houve o aumento da violência no campo e a afirmação do latifúndio nas regiões sul e sudeste do Pará, segundo Araújo (2009). Em função desse acirramento da violência contra camponeses, foram criadas diversas entidades em prol dos trabalhadores rurais, como, por exemplo, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), que começou a atuar ativamente na região sul do estado do Pará a partir de 1975 (Araújo, 2009).

Na década de 1980, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) passou a atuar no sudeste do Pará, bem como outros movimentos sociais a favor dessa causa. Por exemplo: o Movimento de Luta pela Terra (MLT), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o Movimento de Mulheres Campesinas (MMC); e, posteriormente, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). A Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará (Fetagri-PA) iniciou suas atividades no estado do Pará na década de 1990.

Um dos marcos do acirramento da violência na região do sul do Pará foi o assassinato de João Canuto, o primeiro presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Rio Maria. Segundo a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos (RSJDH):

“Após várias ameaças de morte, João Canuto foi assassinado com 18 tiros, no dia 18 de dezembro de 1985. Ele era perseguido principalmente por sua luta pela reforma agrária. O crime foi planejado por um grupo de fazendeiros do sul do Pará, entre eles Adilson Carvalho Laranjeira, fazendeiro e prefeito de Rio Maria na ocasião do assassinato, e Vantuir Gonçalves de Paula. A demora na apuração dos fatos foi alvo de denúncia feita pelo Ministério Público e motivou a condenação do governo brasileiro pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), em 1999”.

Ao longo desse período, a perseguição e violência contra os trabalhadores rurais continuaram na região. Ainda segundo a RSJDH:

“Cinco anos após a morte de João Canuto, três de seus filhos, Orlando, José e Paulo, foram sequestrados e dois deles foram assassinados. Orlando sobreviveu, mas ficou gravemente ferido. Expedito Ribeiro, sucessor de João Canuto na presidência do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, também foi assassinado em 2 de fevereiro de 1991. Um mês depois, Carlos Cabral, sucessor de Ribeiro e genro de Canuto, foi ferido num atentado à bala. O resultado de toda a pressão de organizações de direitos humanos teve êxito e, em 2001, finalmente os dois acusados foram pronunciados como mandantes do assassinato de João Canuto”.

Com o fim do período da ditadura militar e com a promulgação da Constituição de 1988, houve o fortalecimento dos movimentos camponeses. Um ponto a favor dos movimentos sociais do campo era que a nova Carta Magna passou a prever a exigência do cumprimento da função social da propriedade rural, conforme o Artigo 186. Apesar dessa conquista, a violência do campo ainda é uma realidade, e um grande número de trabalhadores e suas respectivas lideranças continuam sendo perseguidos em sua      luta pela terra.

Outro marco da violência do campo no sul do Pará foi o Massacre de Eldorado de Carajás, em 17 de abril de 1996, quando 19 trabalhadores rurais sem-terra foram assassinados. José Batista Gonçalves Afonso (2016), que realizou uma pesquisa sobre esse episódio, afirmou:

O intuito dos grupos econômicos e fazendeiros era enfraquecer e intimidar as lideranças e movimentos que lutavam por reforma agrária, no entanto, os anos posteriores ao Massacre de Eldorado dos Carajás foram marcados por dezenas de ocupações de terras e a criação massiva de Projetos de Assentamento”.

O caso do Acampamento João Canuto confirma essa análise do pesquisador, pois a comunidade não se intimidou com os altos índices de violência no campo paraense; pelo contrário, nomeou o acampamento em homenagem a uma das lideranças assassinadas na luta pela reforma agrária, como referido anteriormente.

Segundo a pesquisadora Yara Marinho Costa (2021), a comunidade de João Canuto é fruto de mobilizações de migrantes que se deslocaram para Tucuruí em busca de terras e trabalho, como podemos ver a seguir:

Muitos trabalhavam na construção civil da Usina Hidrelétrica de Tucuruí e, após o seu funcionamento, muitos ficaram desempregados, sem-terra e sem condições econômicas para retornarem para seus estados de origem. E viram, como única alternativa, ocupar as propriedades rurais que não cumprem com sua função social”. 

A pesquisadora Yara Marinho Costa levantou o histórico da comunidade João Canuto e afirmou:

“Em 2002, um grupo de aproximadamente 60 famílias de trabalhadores rurais sem-terra, ligados ao MST e a FETAGRI, ocuparam a propriedade rural denominada Fazenda Arumateua Agropecuária Bom Jesus e Palmares, que tem como suposto proprietário o Sr. Yoshio Kamizono. A propriedade fica localizada no município de Tucuruí – PA, rodovia BR-422, sentido Tucuruí/Novo Repartimento, KM 22, Gleba Tucuruí – Parte II, georreferenciada e certificada pelo Programa Terra legal e também está inserida na Área de Proteção Ambiental do Reservatório de Tucuruí (APA), criada em 08 de abril de 2002 pela lei no 6.451, que abrange o reservatório da UHE Tucuruí e abrange parte dos territórios de sete municípios da região”.

Isso quer dizer que, em 2002, ano em que surgiu o Acampamento João Canuto, também foi criada a Área de Proteção Ambiental do Reservatório de Tucuruí (APA). Essa APA está inserida no mosaico de unidades de conservação do Lago de Tucuruí, que engloba duas Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS), Alcobaça e Pucuruí-Ararão, e ainda as áreas definidas como Zonas de Preservação da Vida Silvestre (ZPVS). A geógrafa Aline Araújo (2009) fez um estudo sobre os territórios protegidos na área de influência da UHE Tucuruí e esclareceu que:

“O mosaico de Unidades de Conservação do lago Tucuruí está diretamente associado à resolução dos conflitos sócio-ambientais provocados com a operação da UHE Tucuruí. A Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA) determinou que a Eletronorte, no âmbito do processo de licenciamento da UHE Tucuruí, utilizasse parte dos recursos da compensação ambiental (9 milhões), para a criação e gestão do mosaico de unidades de conservação do lago de Tucuruí”.

Mapa do mosaico de unidades de conservação do Lago de Tucuruí. Fonte: Araújo, 2009.

De acordo com o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), a Área de Proteção Ambiental é uma área em geral extensa, com um certo grau de ocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais especialmente importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das populações humanas, com objetivos básicos de proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais.

A APA do Lago do Tucuruí foi criada pela lei estadual nº 6.451 de 08 de abril de 2002, com uma área de 568.667,00 ha (quinhentos e sessenta e oito mil, seiscentos e sessenta e sete hectares), abrangendo os territórios dos municípios de Breu Branco, Goianésia do Pará, Itupiranga, Jacundá, Nova Ipixuna, Novo Repartimento e Tucuruí. Esse tipo de unidade de conservação é classificada como de uso sustentável e, segundo o Art. 3º da Lei nº 6.451 de 08/04/2002, tem os seguintes objetivos:

“I – a promoção da melhoria da qualidade de vida da população local, inclusive a tradicional; II – a realização de estudos técnico-científicos para a conservação dos recursos naturais; III – o desenvolvimento de projetos de uso sustentável dos recursos naturais; IV – a proteção e restauração da diversidade biológica, inclusive quanto a sua valorização econômica e social, dos recursos genéticos e das espécies ameaçadas de extinção; V – a recuperação de áreas alteradas; VI – o disciplinamento do processo de ocupação da área; VII – a proteção das características relevantes de natureza geológica, geomorfológica, espeleológica, arqueológica, paleontológica e cultural; VIII – o estabelecimento de condições necessárias à promoção da interpretação e da educação ambiental, da recreação e do ecoturismo; IX – a proteção dos recursos naturais necessários à subsistência da população local, inclusive a tradicional, preservando o seu conhecimento e a sua cultura, visando o desenvolvimento social e econômico das mesmas”.

O fato de o Acampamento João Canuto se situar numa área de APA gerou uma situação diferenciada, pois a área ganha uma proteção especial por parte do Estado. Embora essa Unidade de Conservação seja de Uso Sustentável, garantindo assim a permanência e o uso da população local/tradicional para manter o seu sustento, como veremos a seguir, a comunidade João Canuto precisou considerar mais essa particularidade no processo de luta pela terra.

O processo de ocupação do acampamento foi muito desgastante para os trabalhadores rurais. Uma das primeiras dificuldades enfrentadas foi levantar o acampamento, como podemos perceber nos relatos registrados pelo Projeto Mapeamento Social como Instrumento de Gestão Territorial, realizado pela equipe do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA), sediado na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), em visita à comunidade em 2013. Na ocasião, a equipe entrevistou diversos acampados sobre esse processo de formação do acampamento, como João Rodrigues de Souza, que relembrou:

“Quando a gente subiu no Acampamento, nós reuniu as treze famílias pra nós vir pro acampamento e nós tinha aquela esperança que nós ganhava o direito da terra. Mas pra nós chegar aqui foi uma dificuldade muito grande! Seu Francisco arranjou um caminhão que dava entrada de ar de 10 em 10 min. Nós saímos de Tucuruí às duas e meia da manhã e viemos dar entrada aqui só cinco horas da manhã, mas chegamos e subimos pra cá, começamos fazer os barraquinhos. Começamos a fazer os barracos, nós. Fizemos primeiro um barracão maior mais lá na frente. Depois fizemos mais dois aqui. Era como seu Antônio falava, um barraquinho só abrigava quatro, cinco famílias dentro, porque nós não tinha espaço pra fazer nosso barraco. Então, eu subi porque eu senti, assim, um pensamento de um dia possuir um pedaço de terra pra trabalhar, foi o que fez eu subir o Acampamento de terra João Canuto e ter orgulho dele, é muito importante pra mim. Com a fé em Deus e eu espero que nós vamos receber o nosso pedaço de terra aqui nele pra trabalhar. Foi uma dificuldade muito grande, nós ouvimos muitas propostas feia, mas que Deus amenizou todas elas e hoje nós está bem mais melhor, graças a Deus!

Após essas dificuldades iniciais de formação do acampamento, vieram os enfrentamentos com o pretenso proprietário da Fazenda Arumateua e consecutivas tentativas de remoção da comunidade. A pesquisadora Yara Costa (2021) acessou os arquivos físicos da CPT – Tucuruí / PA e descreveu detalhadamente esse processo de litígio pela terra, bem como o processo de constituição da Associação dos Trabalhadores (as) Rurais João Canuto.

“O primeiro despejo ocorreu no dia 14 de agosto de 2005. No dia 10 de novembro de 2005, aproximadamente 80 famílias ocupam novamente o imóvel Fazenda Arumateua, no entanto, no dia 14 de agosto de 2006 novamente as famílias foram despejadas. Porém, parte dessas famílias foram assentadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) no Assentamento Ararandeua, no município de Jacundá – PA. No dia 09 de janeiro de 2008, com o apoio da Federação dos Trabalhadores na Agricultura (FETAGRI) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), cerca de 20 famílias reocupam o imóvel, nesta feita, o acampamento foi montado à margem da estrada denominada área do Departamento Nacional de Infraestrutura (DNIT) (área federal), que na ocasião concedeu permissão tanto para montagem do Acampamento como para desenvolvimento de atividades produtivas e de geração de renda pelas famílias acampadas. No dia 30 de abril de 2008, os trabalhadores instituíram uma associação – Associação dos Trabalhadores (as) Rurais João Canuto, CNPJ: 11.161.086/0001-50, com 72 famílias.”

As estratégias adotadas pela comunidade em buscar parcerias com a Fetagri e a CPT, assim como negociação com o Dnit para desenvolver as atividades produtivas, e a constituição da associação de moradores foram essenciais para o fortalecimento do movimento. Mas, conforme nos contou o acampado Antônio Reis Coelho, por meio de entrevista à equipe do Projeto da Nova cartografia Social, esse processo foi penoso e oneroso para a comunidade.

“Hoje são 62 famílias, eram 66, houve algumas desistências. A gente foi buscar a prefeitura, a câmara da prefeitura, os vereadores pra poder então conseguir a constituição de uma associação, pra poder ganhar o poder de uma pessoa representar o Acampamento lá fora, porque aí então já se tratava de uma grande quantidade de gente, que numa reunião não poderia ir 20, 30 pessoas ao INCRA, mas um representante da associação representava todas as famílias. Tivemos a dificuldade da burocracia, da questão de cartório, porque é muito difícil se constituir uma associação onde não tem um endereço fixo. Então eu tive que entrar no DNIT, no Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), pegar autorização de estar aqui, trazer juiz da Vara Agrária aqui, e então tirar um laudo que pudesse provar que a área pertence ao governo federal, que a nossa família poderia entrar aqui, se alojar não no interior da fazenda, mas na área do DNIT pra possibilitar o cartório fazer os registros de ata e estatuto. E também tivemos que criar um estatuto pela área que nós estamos, que é uma área ambiental, e tinha que ser um estatuto modificado. Até então os estatutos tem um regimento de 4 a 5 páginas e o nosso tem 14, custou uma fortuna pra gente fazer isso”.

Um ano depois da constituição da Associação dos Trabalhadores (as) Rurais de João Canuto, em 07 de janeiro de 2019, houve uma nova ação de manutenção de posse por parte do pretenso proprietário da Fazenda Arumateua com o objetivo de expulsar as famílias do local. A pesquisadora Yara Costa relatou que, ao receber essa ação, o juízo entendeu a necessidade de realizar uma audiência de justificação prévia e notificou os seguintes órgãos: Incra, Instituto de Terras do Pará (Iterpa), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Ministério Público do Trabalho (MPT), solicitando informações sobre o caso. Na dissertação de Yara Costa, é possível acompanhar essas solicitações encaminhadas aos órgãos públicos:

“Ao analisar os argumentos aduzidos na exordial, o juízo entendeu que era necessário realizar audiência de justificação prévia do alegado, nos termos do art. 928, caput, 2º parte, do antigo CPC17. Notificou os órgãos de terra (INCRA e ITERPA) para participar da audiência ordenando aos institutos que informassem acerca da existência, autenticidade e legitimidade de títulos dominiais envolvendo o imóvel, bem como processos administrativos ou judiciais instaurados visando a desapropriação do imóvel. Notificou que oficiasse o IBAMA para que informasse acerca da existência de autuações por infração ambiental em relação à área em litígio, bem como o Ministério Público do trabalho para que informasse a existência de autuações por infração à legislação trabalhista (Fls. 117-118)”

Em resposta à solicitação, o MPT encaminhou o Relatório de Inspeção realizado na fazenda Arumateua, destacando as irregularidades do imóvel em relação às questões trabalhistas e ambientais, como destaca      trecho do estudo da pesquisadora Yara Costa:

“a) forçoso é reconhecer que o ambiente de trabalho ao qual os trabalhadores eram submetidos estava em desacordo com a lei, uma vez que dormiam em alojamentos insalubres, conforme descrito neste relatório; além disso, não foram submetidos a exames médicos ocupacionais, não tinham instalações sanitárias, bebiam sem nenhum tratamento a água de cor turva e contendo material orgânico em suspensão. Além disso, nada era feito para mitigar os efeitos danosos provocados pelo meio ambiente inadequado ao trabalhador, uma vez que nenhum deles recebia equipamento de proteção individual. As botinas que usavam eram destituídas de certificado de aprovação, que eles mesmos haviam comprado nos comércios das cidades. Também não lhes eram disponibilizados equipamento e material para primeiros socorros, assim como local adequado para refeições e banheiros. Recebiam para as refeições arroz, feijão e pequena quantidade de carne. Acresça-se a tudo isso a inexistência de gestão de segurança, saúde e meio ambiente no trabalho rural. b) assim como o empregador desobedecia às normas de proteção ao ambiente de trabalho e a segurança e saúde do trabalhador, agia em relação aos demais ditames das leis trabalhistas, começando por fazer ouvidos moucos os reclamos dos trabalhadores, descumprindo, entre outros, preceitos relativos ao registro de empregados ao depósito do fundo de garantia do tempo de serviço e da anotação em Carteira de Trabalho e Previdência Social. É bom lembrar que, com a falta de anotação da Carteira de Trabalho e Previdência Social, o trabalhador perde outros direitos, alguns até mesmo essenciais à sua sobrevivência, tais como: participação no PIS, auxílios enfermidade e acidentário, seguro desemprego e aposentadoria. Quanto à perda do direito à aposentadoria, nos parece ser o mais grave de todos os prejuízos. Principalmente se colocarmos pari passu o patrão e o empregado, um se enriquecendo, o outro, se fosse possível ser mais pobre, sendo empobrecido: o rico se fortalecendo, o pobre perdendo as forças vitais, o patrão, com futuro garantido; o empregado, morrendo sem aposentadoria, caso consiga chegar à idade dos cabelos brancos. c) A condição análoga à escravidão foi encontrada no conjunto de agressões aos trabalhadores rurais, principalmente pelas condições degradantes a que eram submetidos, como já demonstrado nos itens VI e IX, acima (Fls. 219-220)”.

No dia 19 de junho de 2009, foi realizada nova inspeção na área, dessa vez realizada pelo perito judicial Sr. Sandro Mesquita para avaliar se, de fato, o Acampamento João Canuto estava na área da fazenda. Yara Costa informou o resultado da inspeção:

“Em resumo, a área avaliada, encontra-se 40% fora dos limites da fazenda Arumateua e da faixa de domínio da rodovia BR-422 (Área denominada Acampamento), e 60% inserida nos limites da propriedade (Área denominada de lavoura) como pode-se constatar através dos pontos observados e referenciados nos mapas em anexo (Fls. 290)”.

Após o resultado desse laudo pericial, foi designada uma nova audiência entre as partes para buscar celebração de possível acordo, que se realizou em 30 de julho de 2010. Na ocasião, os acampados solicitaram uma nova vistoria na área, mas o alegado proprietário da fazenda não aceitou, conforme explicou Yara Costa:

“No dia 30/07/2010, foi realizada a audiência, os Requeridos solicitaram que fosse realizada uma nova vistoria na área, porém, o Autor não aceitou alegando que o imóvel foi vistoriado pelo INCRA em 2004, que constatou que o imóvel era produtivo, não sendo passível de desapropriação para fins de reforma agrária (Fls. 23-47).”

Diante disso, a representante legal dos acampados solicitou que fosse esclarecida pelo perito a área da fazenda ocupada pelos acampados em relação ao total da área do imóvel. O pedido foi encaminhado ao perito e ao Ministério Público (MP), como podemos ver em trecho dos estudos de Yara Costa:

“A Advogada dos Requeridos solicitou que fosse esclarecido pelo perito a quantificação da área do imóvel ocupada pela lavoura dos Requeridos em relação ao total do imóvel. A juíza solicita resposta ao perito e deu vista dos Autos ao MP para apreciação do pedido liminar”.

O MP se manifestou pelo indeferimento do pedido liminar sob a justificativa que a fazenda Arumateua não realizava a função social da propriedade, conforme vê-se a seguir.:

“O MP se manifesta pelo indeferimento do pedido liminar, alegando que o descumprimento da função social concernente a infringência da legislação trabalhista e a exploração da atividade do Autor desfavoreceu os trabalhadores, inviabilizando a liminar possessória pleiteada. O Autor para fazer jus ao pedido de liminar deveria demonstrar que se encontrava na posse agrária do imóvel, assim como viabilizar o uso, o gozo e o fluir da propriedade por meio do implemento de atividades agrárias compatíveis com a função social imputada aos imóveis rurais (Fls. 326-328). (…) Após manifestação do MP, o juízo da Vara Agrária profere decisão interlocutória, e indefere o pedido liminar de manutenção de posse da fazenda Arumateua, alegando haver indícios de violação aos pressupostos da posse agrária (art. 186, da CF/88)18), desta forma, entendeu que a medida liminar pleiteada não merecia amparo judicial (Fls. 332-335)”.

Do outro lado, os advogados do Acampamento João Canuto apresentaram uma contestação à qual se opôs o pretenso proprietário, conforme relatado por Yara Costa:

“Os advogados dos Requeridos apresentaram contestação reforçando o reconhecimento da propriedade ao cumprimento da função social e dos índices de produtividade, que deve estar em harmonia com os demais direitos tidos como fundamentais, como a vida, o trabalho, a renda, alimentação, moradia, educação, enfim, a dignidade humana. (Fls. 344-349). O Autor apresenta impugnação à contestação (366-368).”

Nova audiência foi realizada em 01 de fevereiro de 2012 entre as partes, sem acordo. Depois de toda essa tramitação do processo, houve uma sentença a favor do pretenso proprietário em abril de 2013, segundo a pesquisadora Yara Costa:

“Após longos anos de tramitação processual, o juízo da Vara agrária proferiu sentença de mérito no dia 18 de abril de 2013. Nesta feita, o juízo garante a proteção possessória da área rural sem ouvir os órgãos de terra, sem saber se se tratava de terra pública ou não (Fls. 425- 429)”.

Como a Vara Agrária de Marabá se pronunciou em favor do suposto proprietário, os acampados de João Canuto novamente se viram ameaçados de remoção e sob pena de multa. No entanto, a assessoria Jurídica da CPT começou a se mobilizar em favor da comunidade considerando as inconsistências jurídicas da decisão, conforme esclarece Yara Costa:

“Tendo em vista que apesar da Fazenda Arumateua tratar-se de área pública federal em que não houve o regular destaque do domínio público para o particular, o juízo garantiu a proteção possessória ao Autor, argumentando que o mesmo está cumprindo com a função social e penalizou as 60 famílias com multa de mil reais por dia caso molestassem a posse do Autor. (PROCESSO JUDICIAL, Ação de Manutenção de Posse nº 0000031-52.2009.814.00028)”.

Yara Costa ainda detalhou os fundamentos que descaracterizam a decisão da Vara Agrária no processo, citando as inconsistências em relação às questões trabalhistas e ambientais:

“a) o juízo da Vara Agrária de Marabá indefere o pedido liminar de manutenção de posse da fazenda Arumateua, alegando haver indícios de violação aos pressupostos da posse agrária, elencados no art. 186, da CF/88 (Fls. 332-335). Como ficou comprovado nas folhas 197-235, o Autor ignorava a legislação trabalhista, destarte, descumpriu um requisito da posse agrária. No entanto, ao proferir sentença o juízo garante a proteção possessória ao Autor alegando que este cumpre com a função social da propriedade. Ficando evidente, neste caso, o posicionamento contraditório e parcial desta Vara. Ora, o Autor Marques (2007), ao fazer um estudo dos requisitos da posse agrária, menciona que os mesmos devem ser observados simultaneamente, ou seja, todos ao mesmo tempo: ‘Não se cumpre função social, observando-se apenas um ou dois requisitos. (…) se há trabalho escravo ou a exploração do trabalho de menores, descumpre-se a função social, à luz da legislação vigente’ (MARQUES, 2007, p. 40). Se há o descumprimento de um dos requisitos da posse agrária, descumpre-se a função social da terra. No caso em comento, esse descumprimento fora comprovado pelo MPT, não se trata de meras especulações; b) de acordo com o Dossiê elaborado por Marin (2016), foi constatado que havia repetição de corte, retirada de madeira e a abertura de roças na área de proteção ambiental do reservatório de Tucuruí, na qual existe a Fazenda Arumateua, que realiza atividades incompatíveis com o estatuto da APA. Como trazido nos autos do processo judicial, o Autor realizava atividade pecuarista. Em contrapartida, os acampados realizam atividades conduzidas dentro de uma ótica agroecológica, como preservadores dos recursos florestais e hídricos, além de realizarem denúncias contra o desmatamento e a extração ilegal de madeiras.”

Yara Costa acrescentou que, ao analisar os autos dos processos administrativos que tramitavam no Incra, encontrou uma carta do Acampamento João Canuto denunciando a extração ilegal de madeira na área entre 2010 e 2015. Ou seja, os acampados, além de tudo, colocaram-se na posição de fiscalizar as ações de desmatamento ilegal, conforme verifica-se no trecho a seguir:

“Como fora demonstrado nos autos do processo administrativo que tramita no INCRA, os acampados fizeram uma carta denunciando a extração ilegal de madeira no período de 2010 a 2015 (PROCESSO ADM. nº 54000.026947/2019-98, Fls. 90-110). Sobre o desmatamento e a extração ilegal de madeira na área de proteção ambiental na qual a fazenda Arumateua está inserida, Marin (2016) menciona que: Os madeireiros e fazendeiros agem mancomunadamente na retirada das madeiras e ignoram interesses e propósitos de preservação declarados na política ambiental brasileira. De maneira escancarada, provocam os acampados que assumem uma postura de vigilância da chamada ‘ressaca’ (PROCESSO ADM. nº 54000.026947/2019-98, p. 91)”.

Em função de tais denúncias, a pesquisadora relatou em seu trabalho que os acampados sofreram ameaças e ataques de fazendeiros e madeireiros:

“Mesmo sofrendo ameaças de fazendeiros e madeireiros, os acampados não se intimidaram e continuaram protegendo o meio ambiente e realizando denúncias visando combater essas violações ambientais. Nas folhas 163 e 164 do processo judicial há boletins de ocorrência prestados pelos acampados que relatam que houve disparo contra o assentamento com foguete canhão; nesta feita, o acampamento pegou fogo. Também houve vários disparos de armas de fogo contra o acampamento no período de 21 horas às 5 da manhã”.

Nesse ínterim, em junho de 2013, o Acampamento João Canuto recebeu a visita da Equipe do Projeto da Nova Cartografia Social da Amazônia, sob a coordenação geral do prof. Alfredo Wagner Berno de Almeida. O Projeto realizou oficinas na comunidade com o objetivo de capacitar os acampados contra as ameaças em seu território de desmatamento e devastação.

Participantes da oficina no Acampamento João Canuto realizado pela Equipe da Nova Cartografia Social. Fonte: Projeto Mapeamento Social como Instrumento de Gestão Territorial, junho de 2013.
Participantes da oficina no Acampamento João Canuto estudam a imagem oficial da “região de Tucuruí”. Fonte: Projeto Mapeamento Social como Instrumento de Gestão Territorial, junho de 2013.

O acampado João Rodrigues de Souza relatou à equipe que uma das estratégias adotadas pela comunidade nesse período de litígio pela terra foi a busca de parcerias e a realização do plantio, tanto para viabilizar quanto para legitimar a ocupação.

“Na questão da sobrevivência das nossas famílias. Na época o INCRA não forneceu as cestas básicas pro seu Francisco. Ele foi em Marabá atrás de cesta básica pro Acampamento; na época, nós fomos na intenção dos funcionários do INCRA de fornecer, a fim de mobilizar o nosso acampamento porque eles não aceitavam a nossa reivindicação da área. E aí a saída foi tentar sustentar essas famílias através de hortas porque é um plantio rápido, 35, 45 dias, 60 dias, e além de tirar pro seu próprio sustento, pra fazer o seu dinheirinho, pras pessoas comprarem alguma coisa e se manterem aqui. Precisava ter pelo menos 30% das famílias acampadas, pela questão de tamanho da área, e teve de haver essa queda de braço entre o INCRA e nós pra manter essas famílias equilibradas aqui dentro. É uma vergonha a gente falar do órgão, muita gente vê aquela sigla lá INCRA, não sabe nem o que é, mas é sediado pra ele pra tentar buscar um pedaço de terra e na hora só com massacre, um descaso público muito grande. E quando se consegue ter liderança que busca o conhecimento e, graças a Deus, ter parceria com outras pessoas que tem o conhecimento da Legislação da República Federativa do Brasil, aí vai apertando eles, colocando eles nos seus devidos lugares e é isso que a gente tem tentado fazer aqui. Como? O próprio INCRA fez uma documentação em Tucuruí, dizendo não ter interesse na área, que a área não produzia. Então, tivemos que produzir, tivemos que ocupar a área, plantar, produzir, trazer juiz pra ver que realmente acontece a produção; se hoje nós temos um laudo todinho que é dessa posse, é da consciência da parte do movimento”.

Outro ponto destacado pelos acampados foi a questão da escolha pela horta orgânica e o respeito pela preservação das florestas na área de ressaca, conforme relatado a seguir:

“Nós não usamos medicamento [agrotóxico] nenhum. Eu vou chegar daqui com um produto orgânico com aquelas folhas de couve que as lagartas comeu alguma coisa, ele vai deixar essa que a lagarta comeu e vai apanhar aquela que tá limpinha, só que a lagarta comeu e não morreu porque ela comeu produto orgânico, que você também vai comer e não vai morrer. Então, isso acaba tendo um custo maior, e também a técnica de você fazer o seu insumo com fumo, com álcool, com sabão, com seus próprios produtos, que você consegue manter o equilíbrio de espantar as pragas e tendo uma vegetação próxima da horta, que você está colocando elas pra lá e não matando elas, transferindo pra um local onde realmente elas deveriam ficar”. (Antônio Coelho – Junho/2013)

“É uma preservação, porque nós estamos aqui não pra bagunçar as nossas florestas. Nós estamos aqui pra zelar, é uma família competente, treinada e capacitada pra viver aqui dentro dessa área sem destruir, é o nosso sonho”. (Raimundo Valdemir Conceição Martins – Junho/2013)

Durante a oficina realizada pela equipe do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, os moradores se reuniram para desenhar o croqui do acampamento.

Acampados elaboram croqui do Acampamento João Canuto durante a oficina de mapeamento social. Fonte: Projeto Mapeamento Social como Instrumento de Gestão Territorial, junho de 2013.
Croqui do Acampamento João Canuto mostrando a organização do espaço e, ao fundo, a área de ressaca. Fonte: Projeto Mapeamento Social como Instrumento de Gestão Territorial, junho de 2013

O acampado Raimundo Valdemir Conceição Martins descreveu para a equipe do Projeto Mapeamento Social os registros realizados pela comunidade sobre o território:

“Aqui é a frente do local do nosso acampamento; a subida; as hortas, os barracos, que é o nosso acampamento; a Igreja que representa aqui a nossa comunidade cristã, o pé de castanha-do-pará. A caixa d’água, que nós têm água aqui encanada, mesmo com todas as dificuldades, passando os barracos, as nossas nascentes, os nossos animais da nossa fauna brasileira, que no caso é o jabuti, os pássaros, os veados como alguém conhece, ou servo como queira falar, a raposa, a onça pintada, o mutum, o coelho, bem-te-vi. Bananeira com cacho, ela tá assim meio torta pra cá porque o cacho já tá maduro e já tá bom de tirar, beterraba, couve, cenoura, um pé de cana. Então, isso aqui é a nossa rodovia, a BR 422. Esse lado de lá é a fazenda vizinha aí, aqui é representação da vegetação do Acampamento. Na representação disso aqui são todos que deram uma opinião. Então, foi o máximo de alegria que nós podemos colocar aqui, por isso está bastante colorido. De verdade, o que eu quero é que a gente consiga o mais rápido possível pegar o nosso pedaço de terra, pra gente tentar levar a nossa vida com dignidade, como nós merecemos, porque é um direito nosso. Porque aqui não tá nem a metade do que nós temos aqui na nossa floresta, porque tem animais, tem paca, não tá nem a metade, aqui são só umas coisas que nós conseguimos colocar e achamos mais fácil colocar (…) pra ganhar um pedaço de terra, pra dar pros nossos filhos um futuro, pros nossos netos, que eu já tenho neto, com 44 anos. O que nós quer é nosso pedaço de terra pra viver o resto de nossas vidas e dar um futuro melhor pros nossos filhos e netos. Porque alguém do INCRA uma vez falou que isso daqui era improdutiva, então a prova aqui dessas coisas que é daqui. E esse símbolo aqui que parece uma taça é a entrada de uma área verde que é da ADEPAR;, eu não quis fazer o prédio porque pra mim o interessante era mostrar aqui, esse verde aqui é capim e o azul é o lado de cá. Por trás desse morro é essa água aqui, o lago que passa por trás e está nessa ponte aqui”.

Nesse relatório realizado pela equipe da Nova Cartografia Social, novamente foi sinalizada a ameaça enfrentada pela comunidade por parte das madeireiras. De acordo com esse relatório, o desmatamento ocorria no setor que a comunidade designa como “ressacas”, e foi registrado no mapa abaixo, conforme exposto no fascículo da Nova Cartografia Social que trata sobre o caso do Acampamento João Canuto.

Mapa produzido pela Nova Cartografia Social sobre o território da Comunidade João Canuto. As partes destacadas de vermelho escuro são as áreas alvo do desmatamento. Oficina de mapeamento social, junho/2013

O problema do desmatamento ilegal, no entanto, não se restringe à área do Acampamento João Canuto, mas, segundo os dados do Instituto Socioambiental (ISA), a área da APA do Lago do Tucuruí, como um todo, sofre com essa ameaça. Inclusive, o ISA apresentou a análise dos dados de desmatamento produzidos pelo Projeto de Monitoramento do Desflorestamento na Amazônia Legal (Prodes) referente a essa APA, conforme podemos ver a seguir.

Mapeamento do desmatamento na APA do lago do Tucuruí, Projeto de Monitoramento do Desflorestamento na Amazônia Legal (Prodes); (ISA; 2024).

Em relação ao processo judicial envolvendo a comunidade e o pretenso proprietário da fazenda, a Assessoria Jurídica da CPT protocolou na regional do Incra de Marabá, em 20 de setembro de 2013, pedido de vistoria preliminar desse imóvel para fins de desapropriação. Porém, a superintendência do Incra recusou o pedido, conforme relatou Yara Costa.

“A Superintendência se manifesta, informando que não haveria necessidade de realizar nova vistoria, pois o imóvel já havia sido vistoriado no ano de 2004/2005. Dessarte, foi comprovado que o imóvel rural era produtivo, portanto, não poderia ser requerida a desapropriação para fins de reforma agrária (PROCESSO ADM. nº 54000.026947/2019-98)”.

No ano de 2015, a comunidade João Canuto obteve uma grande vitória, pois, a partir da análise da cadeia dominial da área em litígio, concluiu-se se tratar de uma área pública, conforme relata Yara Costa:

“Em 2015, o INCRA realizou a análise de cadeia dominial da Fazenda Arumateua, e ficou claramente demonstrado que o imóvel se tratava de uma área pública da União, localizada na Gleba Tucuruí. No mesmo ano, uma comissão do Acampamento João Canuto e da CPT esteve na SR27 INCRA Marabá, com o representante do Setor de Obtenção de Terras para obter informações a respeito da destinação do imóvel. Na ocasião, o Chefe do Setor informou à Comissão que havia um impedimento legal que inviabilizava a criação de um Projeto de Assentamento no modelo tradicional do INCRA pelo fato do imóvel reivindicado estar localizado dentro de uma Área de Proteção Ambiental (APA), podendo, portando, ser criado somente um Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) (PROCESSO ADM. nº 54000.026947/2019-98)”.

Com a confirmação por parte do Incra de que a área em litígio se tratava de uma área pública, o passo seguinte foi avaliar o modo que a ocupação seria regularizada pelas vias legais, considerando que a área se tratava de uma Área de Proteção Ambiental. Como visto no relato acima, uma alternativa era o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS). Segundo cartilha do Incra/ Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), o PDS é:

“uma modalidade de assentamento diferenciado (PAD), de interesse sócio-econômico-ambiental e apresenta-se como uma alternativa aos projetos de assentamentos convencionais. Busca conciliar o desenvolvimento de atividades produtivas aliadas à conservação dos recursos naturais. Essa modalidade se mostra mais adequada às especificidades de locais inseridos em zonas florestais e das demandas de suas populações, permitindo respeitar e dinamizar a vocação florestal da região, conservando a biodiversidade, inclusive o ser humano, e diminuindo o impacto ambiental dos projetos de assentamento”.

Cabe lembrar que o PDS ganhou grande repercussão nas mídias sociais após o assassinato da missionária norte-americana, naturalizada brasileira, Dorothy Stang, em 2005 no PDS Anapu I, no município de Anapu, oeste do Pará. Irmã Dorothy foi uma das lideranças que lutaram para que o PDS se tornasse de fato uma alternativa sustentável no contexto da reforma agrária. O caso de conflito ocorrido em Anapu-PA está registrado no Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, sob o título: PA – Em Anapu, a violência contra os camponeses continua, enquanto jagunços e mandantes de assassinato permanecem gozando da impunidade.

Uma ação necessária para a criação do PDS João Canuto era que as famílias tivessem o perfil exigido para esse modelo de assentamento, e que estivessem de pleno acordo em observar todas as normas e orientações. Para tanto, Yara Costa registrou que:

“O chefe do Setor de Obtenção de Terras solicitou que fosse feito um DOSSIÊ sobre o Acampamento e as famílias acampadas para que o INCRA pudesse montar um processo provisório para encaminhar ao INCRA de Santarém, solicitando apoio à equipe especializada na criação dessa modalidade de Projeto. Posteriormente, seria montado o processo para análise, que seria encaminhado para o INCRA em Brasília (PROCESSO ADM. nº 54000.026947/2019-98)”.

O passo seguinte foi realizado em 2016, quando as 60 famílias realizaram a divisão dos lotes e foram inscritas no Cadastro Ambiental Rural (CAR), mas, logo em seguida, foram surpreendidas por mais uma investida do suposto proprietário, conforme relatou Yara Costa:

“Em 2016, as 60 famílias decidiram adentrar aos limites da fazenda, foi realizada a divisão dos lotes e efetuaram as respectivas inscrições no Cadastro Ambiental Rural – CAR, além de assinarem um Termo de Compromisso Ambiental – TCA com a Prefeitura Municipal de Tucuruí, consignando a obrigação de não realizarem nenhuma supressão ou alteração de qualquer forma de vegetação primária ou secundária sem a devida autorização. Em contrapartida, o suposto proprietário, sem autorização judicial e em conluio com a polícia militar e civil, tentou tirar as famílias da área de forma arbitrária e também levou detidos alguns trabalhadores. Apesar do ocorrido, as famílias permanecem, produzem e resistem na área até o momento (Arquivo Documental, CPT – Tucuruí – PA)”.

A Comunidade João Canuto resistiu e permaneceu na terra, vivendo e produzindo as hortas orgânicas, enquanto aguardavam a resolução do Incra sobre a possibilidade de o acampamento ser enquadrado como um projeto de assentamento em modalidade ambientalmente diferenciada.

A região da APA do Lago de Tucuruí e do Acampamento João Canuto continuava sob ameaça do desmatamento ilegal, e, em função disso, lideranças do acampamento buscaram capacitação por meio da Universidade do Estado do Pará (Uepa). Uma das capacitações realizadas na comunidade ocorreu em abril de 2018, com o Curso de Extensão “Madeiras Ameaçadas de Extinção da Amazônia: subsídio para conservação da biodiversidade florestal”. A notícia veiculada no site da Uepa, em 13 de abril de 2018, detalhou as ações realizadas durante essa capacitação:

“As cinquenta famílias das comunidades de Lago de Tucuruí e João Canuto aprenderam a chamada técnica de identificação macroscópica, utilizando lupa e estilete, para poderem diferenciar que tipo de madeira poderiam ou não comercializar, uma vez que as duas comunidades são projetos de desenvolvimento sustentável e sofrem constantemente com ações de desmatamento ilegal feita por grileiros, posseiros e madeireiros”.

Em 2019, finalmente, o Incra se pronunciou a respeito do caso. Apresentou os dados de um relatório de pré-qualificação da Fazenda Arumateua, que confirmou pelo portal do Ibama que a fazenda já tinha sido embargada em 2015. Além disso, apresentou-se favorável à ocupação da Comunidade João Canuto, conforme vê-se a seguir:

“Em 2019, o INCRA realizou um relatório de pré-qualificação da Fazenda Arumateua, e ao consultar o portal do IBAMA tomou conhecimento de que o imóvel apresenta uma área embargada no ano de 2015, correspondente a 1,0476 hectare, expedido em nome do antigo detentor, o Dr. Yoshio Kamizono, Autor desta ação de manutenção de posse. (Fls. 540). De acordo com este relatório realizado pelo INCRA, desde que a fazenda foi ocupada, existe um forte indicativo de que as famílias estão explorando a área de maneira sustentável, além de realizarem cursos de capacitações; o relatório aponta esta atitude das famílias ‘como aspecto positivo e raramente visto em ocupações semelhantes, os atuais posseiros têm realizado cursos de capacitação em aprendizagem rural’ (PROCESSO ADM. nº 54000.026947/2019- 98, p. 541).

Em seguida, o Incra declarou que a Comunidade João Canuto se enquadraria em uma modalidade ambientalmente diferenciada, conforme relatou Yara Costa:

“Em 2019, constatou-se que não haveria possibilidades de criar um projeto de assentamento convencional na área rural. Deste modo, observa-se que há vedação técnico administrativa e legal para a criação de projeto de assentamento convencional na Fazenda Arumateua. No entanto, há possibilidade de implantação de um projeto de assentamento em modalidade ambientalmente diferenciada ou a regularização fundiária revelam-se admissíveis, pelo menos a priori (Processo Administrativo n. 54000.026947/2019-98, Fls. 535)”.

Yara Costa fez uma análise do caso em sua dissertação de mestrado, explicando que a área ocupada pelo Acampamento João Canuto era legítima, pois era uma terra pública e os documentos do pretenso proprietário não tinha legitimidade, adquirido por meio de “fraude cartorial”, conforme afirma a autora:

“No caso em comento, verifica-se que o juízo concedeu proteção possessória ao Autor, sem o conhecimento fundiário da área – as matrículas que compõem todo o imóvel da Fazenda Arumateua não obtiveram o regular destaque do domínio público para o particular, ou seja, o título de posse que acobertava a área encontra-se caduco desde 1996, logo, esta posse não foi legitimada. Desta forma, foi constatado que o imóvel trata-se de área pública da União. Mesmo sem o título de propriedade o Cartório de Registro de imóveis abriu matrícula da Fazenda Arumateua, o que não é possível legalmente, pois só é possível abrir matrículas nos cartórios com o título de propriedade. Ocorre que nos cartórios sempre existiu uma fraude conhecida por ‘grilagem Cartorial’, que é uma forma de grilagem de terras. No entanto, todas as matrículas deste imóvel foram canceladas por força do Provimento nº 002/2010 – CJC – que foi cumprido pelos cartórios, apenas, em 2018, por determinação do INCRA.”

Além de acionar a questão da grilagem, Yara Costa reforçou outro instrumento acionado pelo fazendeiro: a violência com anuência dos poderes públicos locais:

“O mesmo usou da violência para amedrontar as famílias que estavam acampadas, pagando capangas da fazenda para aferir tiros contra o acampamento. Além de realizar despejos arbitrários em conluio com a polícia militar e civil de Tucuruí – que não têm competência para atuar em conflitos coletivos pela posse da terra – sem ordem de liminar de despejo”.

No dia 9 de agosto de 2021, houve uma reunião ordinária do Comitê de Decisão Regional da Superintendência Regional do Sul do Pará para dar início aos procedimentos práticos necessários para a efetivação do PDS João Canuto, como a vistoria técnica e a produção de relatório.

Segundo notícia de Patrícia Mandrina, veiculada na Agência Pará, ainda na primeira quinzena de agosto de 2021, o Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Pará (Ideflor-Bio) iniciou um projeto social na comunidade João Canuto com o objetivo de instalação de viveiros de mudas de sementes de plantas regionais, como açaí e cupuaçu. Essa ação contou com o apoio de membros da Associação de Trabalhadores Rurais João Canuto, que atuaram em mutirões.

Mutirões no Acampamento João Canuto para a construção dos viveiros (Agência Pará, 2021).

Antônio Pacheco, vice-presidente da Associação de Trabalhadores Rurais de João Canuto, explicou a importância da ação para a comunidade:

“O viveiro beneficiará os trabalhadores rurais residentes em 32 lotes, 47 famílias que hoje vivem da produção da lavoura branca, baseada na banana, macaxeira e maracujá, sendo metade da produção comercializada no município de Tucuruí; a outra parte é usada para alimentação das famílias e manutenção da segurança alimentar das mais de 30 crianças residentes na comunidade”.

Em 16 de novembro de 2021, o Projeto da Ideflor-Bio na Comunidade João Canuto apareceu novamente nas páginas da Agência Pará. Nesta segunda etapa, o objetivo foi realizar uma visita técnica na comunidade para implantação e manejo de Sistemas Agroflorestais (SAFs). Segundo a reportagem da Agência Pará:

“Os Safs visam ao estabelecimento de um conjunto de medidas para a recuperação das áreas antropicamente alteradas no Pará. A principal estratégia para recompor a vegetação é o plantio de Sistemas Agroflorestais – Comerciais, que reúnem espécies florestais e frutíferas nativas da Amazônia”.

Moradores da Comunidade João Canuto participaram de capacitação em técnica de implantação e manejo de Sistemas Agroflorestais-Safs (Agência Pará, 2021).

Em 27 de abril de 2023, a Ideflor-Bio visitou a Comunidade João Canuto novamente para apresentar sua nova gestão e também alguns representantes do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae-PA). Segundo a reportagem da Agência Pará, a comunidade receberia mais uma assessoria, conforme exposto a seguir:

“Trouxemos eles [SEBRAE-PA] a pedido das secretarias de Pesca e Turismo de Tucuruí, para tratar da ‘Feira da Agricultura Familiar’ que deve ser implantada brevemente no município e sobre a assessoria que a entidade prestará no assentamento João Canuto, a fim de criar empreendimentos de comercialização para a comunidade rural que está dentro da nossa APA”.

 

Visita da Ideflor-Bio e Sebrae-PA à Comunidade João Canuto (Agência Pará, 27/04/2023).

Em julho de 2023, segundo a reportagem do Pará Terra Boa, a Comunidade João Canuto recebeu mais um treinamento voltado para os SAFs, realizado em parceria com a CPT, o Ideflor-Bio e a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Rural (SMDR). As 40 famílias participaram de experiências teóricas e práticas sobre manejo de cacaueiro em Sistemas Agroflorestais.

Produção de cacau na Comunidade João Canuto em Sistema de Agroflorestal. Foto: Embrapa Amazônia Oriental. Pará Terra Boa, 2024.

Em 11 de dezembro de 2023, a Comunidade João Canuto teve uma importante vitória, pois a Assembleia Legislativa do Estado do Pará (Alepa), por meio da Lei estadual nº 10.235, declarou que reconhecia a Associação dos Trabalhadores (as) Rurais João Canuto como de utilidade pública para o estado do Pará. Com isso, a associação recebeu habilitação para obter incentivos de qualquer natureza, por meio da celebração de convênios e/ou parcerias com órgãos do poder público estadual em projetos sociais, econômicos, culturais, profissionalizantes, desportivos, ambientais e outros eventos de inclusão social.

Em dezembro de 2023, a equipe da Ideflor-Bio realizou mais uma capacitação técnica na Comunidade João Canuto para o plantio de mudas de cacau a partir de Sistemas Agroflorestais.

E, finalmente, em 28 de maio de 2024, o presidente do Incra, César Fernando Schiavon Aldrighi, declarou como de interesse social para fins de criação de projeto de assentamento a área pública denominada Fazenda Arumateua, dentro da Gleba Tucuruí. Tendo como culminância, a instauração da Portaria n° 543 de 25 de junho de 2024, que determinou a criação do Projeto de Desenvolvimento Sustentável – PDS João Canuto (código SIPRA nº MB0543000).

Depois de 22 anos de lutas, famílias agricultoras conquistam assentamento por meio de Projeto de Desenvolvimento Sustentável em Tucuruí/PA. Imagem: Sirlei Carneiro/CPT (CPT, 2024).

 

Atualizada em agosto de 2024

 

Cronologia

Década de 1970 – Construção da rodovia federal BR-230, conhecida por Transamazônica, e da Usina Hidrelétrica (UHE) de Tucuruí. Acirramento das disputas pela terra e aumento da violência no campo no sul do Pará.

18 de dezembro de 1985 – Morte de João Canuto, primeiro presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, no sul do Pará, por dois pistoleiros em consequência da disputa de terras entre agricultores e proprietários rurais.

1990 – Os três filhos de João Canuto, Orlando, José e Paulo, são sequestrados e dois deles são assassinados. Somente Orlando sobrevive.

02 de fevereiro de 1991 – Expedito Ribeiro, sucessor de João Canuto na presidência do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, é assassinado.

Março de 1991 – Carlos Cabral, sucessor de Ribeiro e genro de Canuto, é ferido num atentado.

1992 – O Brasil é condenado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) pela morte de João Canuto e pela deficiência na apuração do crime.

17 de abril de 1996 – Massacre de Eldorado de Carajás vitima 19 trabalhadores rurais sem-terra que reivindicavam a desapropriação do imóvel rural denominado Fazenda Macaxeira, no sul do Pará.

08 de abril de 2002 – Criação da APA Lago de Tucuruí abrangendo áreas territoriais dos municípios de Breu Branco, Goianésia do Pará, Itupiranga, Jacundá, Nova Ipixuna, Novo Repartimento e Tucuruí.

2002 – Um grupo de 66 famílias de trabalhadores rurais sem-terra forma o Acampamento João Canuto e ocupa a área da Fazenda Arumateua.

2003 – Movimento Humanos Direitos cria o Prêmio João Canuto para dar visibilidade a violações dos direitos humanos como o trabalho escravo, a prostituição infantil, a luta pela demarcação das terras indígenas e das áreas dos quilombolas, em favor de ações socioambientais, entre outras.

14 de agosto de 2005 – As famílias de trabalhadores rurais são despejadas do Acampamento João Canuto de forma arbitrária.

10 de novembro de 2005 – Aproximadamente 80 famílias ocupam novamente a área do Acampamento João Canuto.

04 de agosto de 2006 – Novamente as famílias são despejadas de forma arbitrária. Parte dessas famílias é assentada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no Assentamento Ararandeua, no município de Jacundá – PA.

15 a 23 de setembro de 2007 – O Ministério Público do Trabalho (MPT) encaminha o Relatório de Inspeção realizado na fazenda Arumateua, que verifica as condições degradantes que os trabalhadrores rurais da fazenda são submetidos (considerados em condição análoga à escravidão).

09 de janeiro de 2008 – Cerca de 20 famílias reocupam o imóvel com o apoio da Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetagri) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT). O acampamento é montado à margem da estrada denominada área do Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes).

30 de abril de 2008 – Criação da Associação dos Trabalhadores (as) Rurais João Canuto.

2008 – O pretenso proprietário ingressa com ação de manutenção de posse com pedido de liminar na Vara Agrária de Marabá – PA, objetivando expulsar as famílias da terra. O pedido de liminar não é deferido, pois constata-se por meio de vistoria técnica que o acampamento está montado fora da área pertencente ao imóvel rural em questão.

07 de janeiro de 2009 – O suposto proprietário do imóvel ingressa novamente com uma ação judicial de manutenção de posse com pedido de liminar à Vara Agrária de Marabá. O juízo entende a necessidade de realizar audiência de justificação prévia do alegado e notifica o Incra, o Instituto de Terras do Pará (Iterpa), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Ministério Público do Trabalho (MPT).

30 de maio de 2009 – Fundação da Comunidade Cristã Nossa Senhora da Conceição no Acampamento João Canuto.

02 de junho de 2009 – Realização de audiência de justificação prévia. O juízo designa a realização de inspeção judicial in loco para verificar se o acampamento e as plantações realizadas pelos acampados se encontravam no interior da Fazenda Arumateua. O Incra solicita prazo para informar quanto à cadeia dominial do imóvel, pois precisava oficiar os cartórios solicitando a documentação da área para análise. MPT divulga laudo do relatório de inspeção realizada na Fazenda Arumateua com irregularidades ambientais e trabalhistas.

19 de junho de 2009 – Inspeção judicial conclui que o acampamento está fora dos limites da Fazenda Arumateua e fora de sua área de preservação permanente (APP), não caracterizando invasão da propriedade. No entanto, as plantações e roças realizadas pelas famílias estão 60% inseridas nos limites do imóvel. A juíza designa audiência entre as partes com a finalidade de ter conhecimento do atual estado em que se encontra o conflito pela posse da terra, buscando celebrar um possível acordo entre os demandantes.

30 de julho de 2010 – Realização de nova audiência, na qual os requeridos solicitam a realização de uma nova vistoria na área. Porém, o suposto proprietário não aceita, alegando que o imóvel foi vistoriado pelo Incra em 2004.

01 de fevereiro de 2012 – Realização de nova audiência, sem acordo entre as partes.

18 de abril de 2013 – Após a ação tramitar por longos anos, o juízo da Vara Agrária profere sentença de mérito concedendo em favor do suposto proprietário um interdito proibitório sem que os órgãos de terras tenham definido se a destinação do imóvel em disputa ficará com o fazendeiro ou com as famílias sem-terra –foi comprovado, após a sentença, que a área em litígio pertence à União.

Junho de 2013 – Realização de oficinas no Acampamento João Canuto promovidas pelo Projeto Mapeamento Social como Instrumento de Gestão Territorial contra o Desmatamento e a Devastação.

20 de setembro de 2013 – A CPT, por intermédio de sua Assessoria Jurídica, protocola na Superintendência do Incra de Marabá solicitação de vistoria preliminar do imóvel para fins de desapropriação.

2015 – O Incra realiza a análise de cadeia dominial da Fazenda Arumateua e demonstra que o imóvel se trata de uma área pública da União, localizada na Gleba Tucuruí.

015 – Uma comissão do Acampamento João Canuto e da CPT se desloca para o Incra Marabá para obter informações a respeito da destinação do imóvel. O Chefe do Setor informa à comissão sobre um impedimento legal que inviabiliza a criação de um Projeto de Assentamento no modelo tradicional do Incra, pois o imóvel reivindicado está localizado dentro de uma Área de Proteção Ambiental (APA), sendo possível apenas a criação de um Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS).

2016 – O suposto proprietário, sem autorização judicial e com apoio de membros da polícia militar e da polícia civil, tenta expulsar as famílias da área de forma arbitrária. A polícia leva detidos alguns trabalhadores, mas outros resistem e permanecem no local.

2016 – As 60 famílias realizam a divisão dos lotes nas terras em disputa e efetuam as respectivas inscrições no Cadastro Ambiental Rural – CAR, além de assinarem um Termo de Compromisso Ambiental – TCA com a Prefeitura Municipal de Tucuruí, consignando a obrigação de não realizarem nenhuma supressão ou alteração de qualquer forma de vegetação primária ou secundária sem a devida autorização.

Abril de 2018 – A comunidade do Acampamento João Canuto realiza o Curso de Extensão promovido pela Universidade do Estado do Pará (Uepa), intitulado “Madeiras Ameaçadas de Extinção da Amazônia: subsídio para conservação da biodiversidade florestal”, que tem como principal objetivo a identificação do tipo de madeira permitido para a comercialização, pois sofrem constantemente com ações de desmatamento ilegal por grileiros, posseiros e madeireiros.

2019 – Os acampados fazem denúncias ao Incra em relação ao desmatamento e à extração ilegal de madeira na área de proteção ambiental da área da Fazenda Arumateua.

11 de junho de 2019 – Carlos Cabral Pereira, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Rio Maria, na região sudeste do Pará, é assassinado.

09 de agosto de 2021 – Realização de reunião ordinária do Comitê de Decisão Regional da Superintendência Regional do Sul do Pará do Incra para tratar do processo da Fazenda Arumateua. Criação de grupo técnico multidisciplinar e multissetorial com o objetivo de levantar informações técnicas suficientes para subsidiar a decisão sobre a possibilidade de implantação de um projeto de assentamento em modalidade ambientalmente diferenciada ou a regularização fundiária.

19 de agosto de 2021 – O Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Pará (Ideflor-Bio) realiza ação social para instalar viveiros de mudas de sementes de plantas regionais na comunidade João Canuto.

Julho de 2023 – Realização do manejo de Cacaueiro em Sistemas Agroflorestais no acampamento João Canuto em parceria com a CPT, o Ideflor-Bio e a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Rural (SMDR).

11 de dezembro de 2023 – Assembleia Legislativa do Estado do Pará (Alepa) aprova a Lei nº 10.235, que declara e reconhece a Associação dos Trabalhadores (as) Rurais João Canuto como de utilidade pública para o estado do Pará.

Dezembro de 2023 – A Equipe da Gerência da Região Administrativa do Lago de Tucuruí (GRTUC) do Ideflor-Bio realiza capacitação técnica na Comunidade João Canuto para o plantio de mudas de cacau a partir de Sistemas Agroflorestais.

28 de maio de 2024 – O presidente do Incra, César Fernando Schiavon Aldrighi, declara como de interesse social para fins de criação de projeto de assentamento a área pública denominada Fazenda Arumateua, dentro da Gleba Tucuruí.

25 de junho de 2024 – Portaria n° 543 do Incra determina a criação do Projeto de Desenvolvimento Sustentável – PDS João Canuto, código SIPRA nº MB0543000.

 

Fontes

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ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de Almeida; MARIN, Rosa Elizabeth Acevedo (Coords.). Mapeamento social como instrumento de gestão territorial contra o desmatamento e a devastação: processo de capacitação de povos e comunidades tradicionais: acampados no acampamento João Canuto /Tucuruí – PA, Fascículo 30. Manaus: UEA Edições, 2014. Disponível em: https://l1nq.com/KXteX. Acesso em: 18 jul. 2024.

ARAÚJO, Aline Reis de Oliveira. Os territórios protegidos e a Eletronorte na área de influência da UHE Tucuruí/PA. Dissertação (Mestrado em Geografia). Universidade Federal do Pará, Belém, 2009. Disponível em: https://l1nq.com/RN5e2. Acesso em: 18 jul. 2024.

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BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 9.985 de 18 de julho de 2000, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação e dá outras providências. Disponível em: https://l1nk.dev/wLIbG. Acesso em: 20 jul. 2024.

CRIMES do latifúndio: João Canuto. Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, s/d. Disponível em: https://l1nq.com/3PwZ4. Acesso em: 18 jul. 2024.

DEPOIS de 22 anos de lutas, famílias agricultoras conquistam assentamento por meio de Projeto de Desenvolvimento Sustentável em Tucuruí/PA. Comissão Pastoral da Terra, Tucuruí, 2024. Disponível em: https://bit.ly/3A5AFzz. Acesso em: 18 jul. 2024.

FAMÍLIAS plantam cacau sustentável como estratégia de reflorestamento e geração de renda em Tucuruí. Pará Terra Boa, 2024. Disponível em: https://bit.ly/4catCTk. Acesso em: 17 jul. 2024.

INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL – ISA. Unidades de Conservação do Brasil. Área de Proteção Ambiental do Lago do Tucuruí. Disponível em: https://bit.ly/3Stgf9W. Acesso em: 22 jul. 2024.

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