Povo indígena Guarasugwe aguarda regularização fundiária de seu território para garantir acesso a direitos à saúde, educação e segurança
UF: RO
Município Atingido: Pimenteiras do Oeste (RO)
Outros Municípios: Costa Marques (RO), São Francisco do Guaporé (RO)
População: Povos indígenas
Atividades Geradoras do Conflito: Atuação de entidades governamentais, Monoculturas
Impactos Socioambientais: Alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território, Falta / irregularidade na demarcação de território tradicional, Invasão / dano a área protegida ou unidade de conservação
Danos à Saúde: Doenças não transmissíveis ou crônicas, Piora na qualidade de vida
Síntese
O povo indígena Guarasugwe está localizado em Rondônia, nos municípios de Pimenteiras do Oeste, São Francisco do Guaporé, Costa Marques e Guajá Mirim, especialmente na periferia urbana dessas cidades. Há ainda uma parte vivendo em território boliviano, na região de fronteira à margem esquerda do rio Guaporé. Devido a processos de extermínio ao longo das décadas de 1960/70, eles se dividiram em diferentes grupos. De acordo com o Ministério Público Federal (MPF) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a ausência de território dificulta o acesso a vários direitos desse grupo, especialmente o direito à saúde, à educação e à segurança.
Conforme descrito em documento da Ação Civil Pública (ACP 1002051-40.2022.4.01.4103) movida em 2023 pelo MPF, os Guarasugwe haviam solicitado o reconhecimento de seu território tradicional à margem do rio Pimenta em 2012. Na época, os indígenas apresentaram um “abaixo-assinado” solicitando reconhecimento étnico e territorial para conhecimento e cadastro no banco de dados de demandas de reivindicações territoriais.
Afirma o Cimi que o território tradicional deste povo se encontra atualmente sob posse de grandes fazendeiros, especialmente sojicultores, tendo a área sido totalmente desmatada pelo agronegócio. O Cimi também relata (2021) que o patrimônio arqueológico associado à ancestralidade da etnia e vestígios da ocupação tradicional do território demandado, como algumas urnas funerárias, foram destruídos pelos fazendeiros invasores. Enquanto aguardam a regularização fundiária, os indígenas vivem em situação de miserabilidade nas periferias das cidades.
Contexto Ampliado
O povo Guarasugwe habita tradicionalmente o território Yakarerupa, localizado no município de Pimenteiras do Oeste, no estado de Rondônia. De acordo com o pesquisador Max Guarasugwe, da Universidade Federal de Rondônia (Unir), são cerca de 600 indígenas da etnia. Parte deles vive atualmente na cidade de Bella Vista, na Bolívia, sendo um povo cuja territorialidade tradicional transcende as fronteiras internacionais, traçadas após o advento da colonização europeia na região.
Desde 2012, os indígenas Guarasugwe aguardam a demarcação do território tradicionalmente ocupado. Conforme aponta Max Guarasugwe:
“O meu povo também é conhecido como: Guarayú, Guarasugwe ou Warazúkwe. Nosso território tradicional está localizado no Riozinho – em Pimenteiras do Oeste, aldeia Urukuritxi-, um afluente do Rio Guaporé (na nossa língua materna o nomeamos por Rio Iete); atualmente, essa região do nosso território está ocupado por fazendas, na fronteira do Brasil com a Bolívia. Não possuímos território demarcado, portanto vivemos fora da nossa terra tradicional”.
Eles também foram citados pelo antropólogo sueco Ernest Nordenskiöld, em 1913, na área de Riozinho, e no livro “Exploraciones y Aventuras en Sudamérica”, produzido em 2001 pela organização não-governamental (ONG) Apoyo del Campesino-Indígena del Oriente Boliviano (APCOB, 2001). O também antropólogo Jürgen Riester, alemão, pesquisou os Guarasugwe entre 1964-1965 e em 1970, o que resultou na obra: “Los Guarasug’we: crónica de sus últimos días”, publicada em 1977.
Ambos explicam, nas respectivas obras, que os Guarasugwe, também conhecidos como Guarayú ou Pauserna, viviam na fronteira boliviano-brasileira, entre a foz do rio Paraguá e Pimenteira, desde o século XVIII, na área denominada Guarayuta. Portanto, a área tradicional Guarasugwe abrange Riozinho e seus arredores, conforme aponta o Cimi Regional Rondônia.
De acordo com o trabalho de Riester (1977), citado por José Costa (2021), a unidade de produção e consumo dos Guarasugwe é constituída por famílias nucleares que, mesmo morando em aldeias separadas, se agregavam em torno de uma liderança. Na época da visita de Riester (em 1964-1965), a liderança, denominada por eles como muruvísa, era exercida por Miguel ou Terékewé, seu nome em língua materna, que contava com a ajuda de Aramana, karai ou pajé da comunidade, responsável pela intermediação espiritual e saúde de seu povo. Ambos se opunham fortemente às tentativas de servidão dos indígenas pelos seringalistas.
Em 1968, Miguel, chamado de capitão Miguel pelos Guarasugwe, foi assassinado a mando de fazendeiros da região. A consequência dessa violência forjou, durante as décadas seguintes, a fragilização da unidade sociocultural e da coesão linguística do grupo, assim descrita por Riester (1977):
“Después de la muerte violenta del último capitán de los Quarasugwê, Miguel, quien fue asesinato por mestizos a otillas del rio Itenez em el ano 1968, la tribu se dividió. La muerte del capitán y la conseguiente confusíon por falta de una personalidade fuerte que hubiese podido reunir nuevamente a la tribu, desconcertaron de tal manera a los Guarasugwê, que decidieron huir. Así, subsisten hoy restos de la tribu em Cafetal, (rio Iténez, Prov. Alto Iténez, Depto. Beni), en Cafecito (cerca del poblado Porvenir, rio Paraguá, Prov. Velasco, Depto. Santa Cruz), Riosinho (rio Iténez em Brasil), como también, en el ya mencionado El Cerro”.
José Costa (2020) aponta que, depois a morte de Miguel (Terékewé), que ocorrera em benefício dos donos dos seringais, iniciou-se um período de medo e fuga dos indígenas em busca de locais mais seguros nos montes, o que possibilitou a espoliação de parte substancial de seu território.
Muitos também foram compulsoriamente levados para trabalhar nos seringais: “Diante de tamanha depopulação, o pesquisador [Riester] chegou acreditar que os Guarasugwê estavam extintos enquanto unidade sociocultural com a previsível dispersão de seus membros, levado a cabo pelo trabalho constante dos não índios por mais de um século”.
Na década de 1970, com o avanço das frentes de colonização em curso, promovidas pela política de incentivo à ocupação da Amazônia característica da ditadura militar brasileira, e com a extensão da pecuária e grilagem da terra, os Guarasugwe foram expulsos de Riozinho, perdendo seu território tradicional. Após a morte da grande liderança do povo, capitão Miguel, seus filhos se dispersam e passaram a viver em Pimenteiras, no Brasil, e em Bella Vista, na Bolívia.
Portanto, o avanço do agronegócio gerou um entendimento equivocado por parte da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai, então Fundação Nacional do Índio) de que teriam sido dizimados ao longo do século XX, pois os Guarasugwe seguem na busca de seus direitos constitucionais, numa resistência que se expressa, por exemplo, pela manutenção da língua warázu.
Essa luta emerge como um potente caminho de resistência contra o apagamento cultural e o racismo estrutural. A pesquisa de Henri Ramirez (2007), também divulgada pelo Cimi, fez um profundo levantamento linguístico dos Guarasugwe e oportunizou o encontro com o casal José Frey Leite e Ernestina Guarasugwe [na língua warázu: Híwa e Känätsi]. Moradores de Pimenteiras (RO), falam e conservam a língua pertencente ao povo Guarasugwe. José Frey Leite nasceu em Riozinho e é filho de (Cacique) Miguel Capitão e neto de Hierônimo Leite, antigo chefe dos Guarasugwe de Riozinho, local atualmente invadido por fazendas.
De acordo com Ramirez (2012):
“Em 2007, o acaso das viagens levou-nos à margem do alto rio Guaporé e permitiu que encontrássemos Känä́tsɨ e Híwa, os dois últimos falantes ativos da língua warázu. Dada a idade avançada e o estado de saúde precário desse casal, informamos à comunidade científica sobre a urgência de uma pesquisa que seria ao mesmo tempo a primeira e a última”.
Segundo a publicação da Fundação Memorial da América Latina “Línguas Ameríndias ontem, hoje e amanhã” (2021): “Os Warazúkwe são os mesmos Guarasugwe, Guaraiutá ou os Pauserna que a Bolívia diz estarem extintos. Vários nomes para o mesmo povo originário submetido ao silêncio epistêmico pela sociedade envolvente”.
Sobre a importância dos guardiões Känätsi e Híwa:
“Gostam mesmo é de usar o Warázu, língua de seus pais e avós. Seus filhos e netos, porém, esqueceram-na, não quiseram aprendê-la ou têm vergonha de usá-la. Sim, todas as outras pessoas do mundo falam outros idiomas, somente eles falam Warázu. Känätsi e Híwa são os últimos falantes ativos de Warázu, língua da família Tupi-Guarani do povo ameríndio Warazúkwe e hoje em avançado estágio de extinção”.
Os pesquisadores Henri Ramirez, Valdir Vegini e Maria Cristina Victorino de França, da Universidade Federal de Rondônia (Unir), relatam que, ao entrarem na casa de Känätsi e Híwa, foram apresentados à língua warázu e a seu mundo: “Aquela casa desperta, para quem entra nela, uma sensação incômoda de estranheza, como se o casal idoso que vive nela viesse de outro planeta, de um mundo que eles nunca poderão ressuscitar”, conforme escreveram na revista Liames, da Universidade de Campinas (Unicamp), em 2012.
Segundo relata o Cimi, no ano de 2012 foram encaminhados à Funai e ao Ministério Público Federal (MPF) documentos solicitando o reconhecimento étnico e territorial dos Guarasugwe. Em 2013, depois de muitas cobranças por parte deles, a Funai, por recomendação do procurador da República Henrique Felber, do MPF em Ji-Paraná, emitiu a documentação pessoal de José Frei Leite Guarasugwe, se comprometendo a emitir a documentação dos demais no ano seguinte.
Ainda em 2013, por meio da Nota nº 423/PFE-FUNAI/PGF/AGU-GAB – baseando-se nas informações do relatório da Coordenação Regional da Funai em Ji Paraná (CR JI-PARANÁ), bem como em atenção à análise da Coordenação Geral de Promoção aos Direitos Sociais – CGPDS/DPDS -, a Procuradoria Federal Especializada junto à Funai (PFE/Funai) afirmou reconhecer a procedência do pleito de cadastro no Registro Administrativo de Nascimento Indígena (Rani), pois seria possível concluir “que o Sr. José Frey [cujo sobrenome correto é Frei] é um indígena pertencente ao povo Guarasug’we, que habita a faixa de fronteira entre o Brasil e a Bolívia”.
De acordo com a Funai, o Registro Administrativo de Nascimento de Indígena (Rani) é um documento administrativo fornecido pelo órgão indigenista, instituído pelo Estatuto do Índio, Lei nº 6.001 de 19 de dezembro de 1973:
“O registro administrativo constituirá, quando couber, documento hábil para proceder ao registro civil do ato correspondente, admitido, na falta deste, como meio subsidiário de prova. (…) O RANI pode servir como documento para solicitar o registro civil. O registro do RANI é realizado em livros próprios por funcionários da Funai, e para cada registro é emitido o documento correspondente, devidamente autenticado e assinado”.
A Coordenação Geral de Promoção aos Direitos Sociais da Funai (CGPDS/DPDS) expediu o Memorando nº 163/2013/COPS/CGPDS/DPDS/FUNAI-MJ, informando que a Funai acatava as recomendações do MPF e emitiria a documentação referente ao cadastramento tardio de José Frei Leite e, ainda, estabeleceu que a CR Ji-Paraná realizasse um levantamento de todos os indígenas ainda sem documentos.
Essa tarefa deveria ser incluída no plano de trabalho de 2014 da Coordenação Regional. Rayane Lima (2016) aponta que a declaração oficial do órgão indigenista, no sentido de proceder ao cadastramento de toda a comunidade no Rani, não foi posta em prática para todo o grupo. Esse processo foi interrompido ainda em 2014 e interpretado pelos indígenas como recusa do Estado em reconhecer sua etnicidade, mostrando a tamanha importância que o documento adquiriu, como analisa a pesquisadora.
Entre 23 e 25 agosto de 2013, os Guarasugwe e mais 20 povos e comunidades indígenas (Tupinambá do Baixo Tapajós, Migueleno, Cumaruara, Arapiun, Borari, Mura, Arara Vermelha, Apurinã, Krenyê, Kanela Apanekra, Munduruku, Munduruku Cara Preta, Maytapu, Kokama, Miranha, Wai Wai, Tupaiu, Krenak, Maraguá, e Tapajó) participaram do II Encontro Nacional dos Povos Indígenas, em Santarém, oeste do Pará, onde debateram sobre as principais demandas e lutas.
De acordo com o documento final do encontro, reafirmaram a necessidade da demarcação dos territórios tradicionais e da realização das consultas prévias, com poder de veto, sobre os projetos de infraestrutura que impactam suas terras e modos de vida:
“Constatamos que nossas terras continuam sem ser demarcadas e estão invadidas por fazendeiros, madeireiros, pescadores, garimpeiros. Em várias delas houve sobreposição de unidades de conservação, desrespeitando o nosso direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais, como garante o artigo 231 da Constituição Federal. Sofremos os impactos de grandes empreendimentos hidrelétricos, madeireiros, minerários, agropecuários e de construção de estradas, que colocam em risco a existência futura de nossos povos e depredam o meio ambiente. Frequentemente, aqueles que têm a intenção de usurpar nossas terras utilizam os meios de comunicação social para dizer que não somos indígenas e, assim, negar o nosso direito à terra. (…) Nossos direitos constitucionais estão sendo atacados pelos setores antiindígenas [sic] vinculados ao agronegócio, que agem dentro do governo federal e do Congresso Nacional para paralisar a demarcação de nossas terras, para diminuir as já demarcadas e para que as grandes empresas possam explorar os recursos naturais que estão dentro delas.”
Em 12 e 13 de novembro de 2014, aconteceu o 2° Encontro do Povo Guarasugwe, na casa de José Frei Guarasugwe, com o de objetivo fortalecer a luta do povo pelo reconhecimento étnico e territorial. De acordo com Laura Vicuña, integrante do povo Guarasugwe e do Cimi Regional Rondônia, participaram aproximadamente 30 pessoas, dentre elas representantes das famílias que vivem nos municípios de Pimenteira do Oeste, Costa Marques, Vilhena (RO) e Bella Vista/Bolívia, além de representantes do povo Wajaro e dos Mamaindê do Mato Grosso. Também esteve presente a antropóloga do Ministério Público Federal (MPF), Rebeca Campos Ferreira, e membros do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
No primeiro momento do encontro, foi realizada uma visita ao território tradicional dos Guarasugwe. José Guarasugwe e seus filhos relembraram quando ainda podiam usufruir das riquezas do território, de onde tiravam o sustento diário, com a grande quantidade de caça, peixes e outras riquezas naturais, que eram fontes de vida e garantia de sobrevivência.
Os representantes dos guarasugwe de Costa Marques relataram que a Funai em Ji-Paraná foi até o município e realizou o cadastramento das famílias, mas que não receberam nenhuma declaração que comprovasse pertencimento ao povo Guarasugwe, corroborando o relato de Lima (2016) sobre o caso.
A Funai havia prometido que, no ano de 2014, regularizaria a documentação, mas a promessa não havia se concretizado e o povo sofria com sua demora. Em dezembro de 2014, o Cimi denunciou a morosidade da Funai em reconhecer o povo Guarasugwe pelo Estado brasileiro, visto que não possuíam acesso à saúde e educação. Pediam, também, a explicitação do nome da etnia Guarasugwe em seus documentos individuais, como meio de reconhecimento de sua identidade indígena. A falta desse registro inviabilizava o acesso à saúde indígena e aos demais benefícios da política indigenista estatal.
Conforme relatado pela antropóloga Rebeca Campos Ferreira, do MPF, a instituição se incumbiu de cobrar da Funai maior agilidade na documentação do povo, pois segundo os relatos deles, crianças estavam sendo impedidas de frequentar a escola, podendo perder o ano letivo, por falta de documentação –como o Registro Administrativo de Nascimento de Indígena (Rani).
Lima (2016) acrescenta que, em 2015, a emissão de Rani foi oficialmente suspensa devido à fragilidade dos procedimentos de expedição. De acordo com carta de novembro de 2015, encaminhada pelos Guarasugwe à Diretoria de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável (DPDS) da Funai, essa interrupção teria causado incontáveis prejuízos. Sem o documento expedido pelo órgão indigenista, muitos não conseguiam acessar as vagas reservadas para indígenas no sistema da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai),como mulheres grávidas e outras pessoas que precisavam de acompanhamento médico e intervenções
Reportagem da BBC Brasil de 04 de março de 2018, “O que faz o Brasil ter 190 línguas em perigo de extinção”, resgata a informação de que, da família linguística tupi-guarani, o warázu é apenas uma de dezenas de línguas brasileiras em perigo de extinção.
A reportagem cita o Atlas das Línguas em Perigo da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), com 190 idiomas em risco no Brasil, com a participação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a Funai, o Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (Unaids) e o Museu do Índio.
Segundo a reportagem, o número de idiomas em risco pode ser ainda maior do que o apontado pela Unesco. Algumas línguas que nunca foram estudadas ficaram de fora, como o warázu, por exemplo, que não está incluso no mapa.
O mapa reúne línguas em perigo no mundo todo – e o Brasil é o segundo país com mais idiomas que podem entrar em extinção, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. Adauto Soares, coordenador do setor de Comunicação e Informação da Unesco no Brasil, explica que o mapa foi feito com a colaboração de pesquisadores especialistas em cada região, além de entidades governamentais e não governamentais.
Outra informação sobre a etnia Guarasugwe e as possibilidades de conhecimento do idioma é que ainda haveria três pessoas, como o irmão mais velho Känä́tsɨ, que sumiu há anos. Os outros dois, Mercedes e Carmelo, vivem na Bolívia, mas já não conversam mais em warázu.
De acordo com o estudo, de Henri Ramirez (2017), também citado pela BBC, por um forte motivo:
“Conforme nossa pesquisa, ainda haveria 4-5 falantes (ativos ou passivos) de warázu. Känä́tsi e Híwa expressam-se mal em castelhano ou em português, preferindo conversar entre si no idioma warázu, falado por eles fluentemente. Em Bella Vista (lado boliviano), vivem seus irmãos Mercedes e Carmelo. Parece que a ‘vergonha étnica’ que os warazúkwe e os chiquitano do Guaporé experimentaram foi tão intensa que Mercedes não gosta de proferir alguma palavra no seu idioma e Carmelo afirma que esqueceu tudo. Haveria outra pessoa que mereceria ser procurada, o ‘tio Juan’, irmão mais velho de Känä́tsi, que viveria longe do Guaporé, entre Porvenir e San Ignacio de Velasco (Bolívia), e que há anos não dá mais notícias”.
Adauto Soares, coordenador do setor de Comunicação e Informação da Unesco no Brasil, explicou que para a pesquisa foram usados diversos critérios para definir se uma língua está em risco: o número absoluto de falantes, a proporção dentro do total da população do país, se há e como é feita a transmissão entre gerações, a atitude dos falantes em relação à língua, mudanças no domínio e uso da linguagem, tipo e qualidade da documentação, se ela é usada pela mídia, se há material para educação e alfabetização no idioma.
De acordo com o linguista Angel Corbera Mori, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Unicamp, a morte de uma língua não significa apenas que pessoas ou grupos deixem de se comunicar da forma como faziam seus antepassados, mas sim a consequência de profundos mecanismos de etnocídio contra um povo. Ou seja, a perda de uma língua também é a perda de referências culturais, da cosmologia e percepções dos povos originários: a preservação da cultura de um povo depende da preservação do seu idioma.
“Se a língua se perde, se perde a medicina, a culinária, as histórias, o conhecimento tradicional. No idioma estão a questão da identidade, o conhecimento do bosque, do mato, dos bichos”, explica Mori.
Em 11 de março de 2020, a direção da Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que estava em curso no mundo a pandemia do novo vírus SARS-Cov-2, causador da covid-19, doença que causa infecção respiratória aguda grave na população, podendo desencadear um quadro mortal de pneumonia. No entanto, até aquele momento, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), subordinada ao Ministério da Saúde (MS), não havia anunciado medidas nem investimentos para prevenir a disseminação da doença nas terras indígenas do Brasil. Assim, indígenas combatiam por conta própria o novo coronavírus nos territórios, como publicou Izabel Santos, no Amazônia Real (mar. 2020)
Em nota, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) expressou novamente preocupação com as consequências das medidas adotadas pelo governo do então presidente Jair Bolsonaro em relação à saúde indígena e ao contato com povos isolados por missões evangélicas. “Ressaltamos, também, que pandemias como estas alertam para o quanto gravoso pode significar uma política de contato com os povos isolados e de recente contato, em razão dos riscos não só de etnocídio, mas também a um doloso genocídio”, disse a Apib.
Em agosto de 2020, o Cimi Regional Rondônia divulgou suas ações de enfretamento à covid-19 juntos aos povos indígenas, como a doação de cestas básicas, kits de higiene pessoal e denúncia das invasões aos territórios às autoridades competentes. Na época, além do próprio avanço do coronavírus, as violações aos povos indígenas foram denunciadas, especialmente os localizados em contexto urbano, a exemplo dos Guarasugwe.
De acordo com o Cimi, além de terem sido expulsos de seus territórios tradicionais, enfrentavam o descaso e a falta de assistência à saúde: “Nós não estamos tendo atendimento básico no que se trata da covid-19. Muitos dos nossos parentes já foram a óbito e nós nem sequer aparecemos na lista de registro dos casos de indígenas de covid-19”, denunciava Rosa Maria Guarasugwe, que mora na capital de Rondônia, Porto Velho.
A liderança Guarasugwe quis saber o motivo de o Estado brasileiro se negar a prestar atendimento aos povos indígenas que se localizavam fora do seu território tradicional. “Se nós estamos fora do nosso território tradicional, não é culpa dos indígenas. A maioria desses indígenas tem território sim, mas se encontra na mão de invasores”.
Denunciou também a existência da diferenciação, para o Estado brasileiro naquele governo, entre os indígenas aldeados em terras indígenas homologadas e os que habitavam terras indígenas em processo de demarcação ou estavam desaldeados em centros urbanos:
“Estamos cansados, foram muitas mortes, muitas vidas que os indígenas perderam e nós não temos nenhuma política básica para esse atendimento, quando se trata desses indígenas que vivem em contexto urbano. A esperança vai se acabando, junto com nossas histórias, que estão sendo enterradas”.
A partilha dos alimentos e kits de higiene teve apoio de organizações como a Arquidiocese de Porto Velho, Caritas, Instituto Madeira Vivo (IMV), Conferência Latino-Americana e Caribenha de Religiosos e Religiosas (CLAR), Greenpeace, EntreCulturas, Misereor, Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam) e Associação das Guerreiras Indígenas de Rondônia (AGIR).
Entre os dias 23 e 26 de maio de 2022 ocorreu uma série de reuniões entre os participantes da Assembleia Geral da Organização dos Povos Indígenas de Rondônia, Noroeste do Mato Grosso e Sul do Amazonas (Opiroma), em Rondônia, que publicaram uma carta de repúdio ao avanço de políticas do governo de Jair Bolsonaro (na época, sem partido) em evidentes oposições aos direitos dos povos indígenas.
Assinaram o documento as lideranças indígenas dos povos Aikanã, Arara, Wajuru, Apurinã, Cabixi, Cinta Larga, Cassupá, Canoé, Gavião, Oro Jowin, Oro Win, Oro Waram, Oro Mon, Oro Nao’, Oro Eo, Oro At, Cao Oro Waje, Oro Waram Xiejin, Massacá, Migueleno, Mamaindê, Puruborá, Paiter Suruí, Tupari, Guarasugwe, Macurap, Jabuti, Kwazá, Karitiana, Karipuna, Kaxarari, Kujubim, Sakirabia, Parintintin e Uru Eu Wau Wau.
As lideranças fizeram 11 exigências para assegurar os direitos originários dos povos indígenas e diminuir os frequentes ataques dentro dos territórios. Em um dos pontos, pediam que os órgãos responsáveis, como a Funai, Ministério da Justiça (MJ), MPF e Supremo Tribunal Federal (STF), garantissem, de fato, os direitos indígenas e validassem a Constituição Federal de 1988, a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas (da Organização das Nações Unidas – ONU) e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Além disso, apontavam a necessidade de criação de grupo de trabalho (GT) para a identificação e demarcação do território do povo Guarasugwe, demandando da Funai o cumprimento do seu papel “institucional e celeridade à demanda do povo Guarasugwe, no que trata da inclusão da etnia no sistema de acesso a políticas públicas, a exemplo de saúde/SUS/programas sociais e no cadastro de etnias do Brasil”.
Em 26 de fevereiro de 2023, o povo Guarasugwe denunciou, em carta ao MPF, agressões físicas e ameaça de morte contra Ângelo Mansilla Guarasugwe, em Pimenteiras do Oeste. Ele foi atacado no sábado, 25 de fevereiro, enquanto pescava no rio Guaporé para alimentar a família, golpeado com um remo de pesca no corpo e na cabeça pelo pescador e guia de barco Lindovan dos Santos. O povo Guarasugwe termina sua carta lembrando: “O Rio Guaporé é de direito dos povos originários que ali vivem”.
No documento, o povo também exige justiça e a punição ao agressor, um “ato de covardia, um crime”. As lideranças também denunciaram ao Ministério Público Federal (MPF) as ações e cobraram providências por parte do Estado.
“Repudiamos este ato com nosso povo, que vem sendo atacado diariamente por parte do Estado brasileiro. Hoje, em específico, por um não indígena, atacando um dos nossos parentes, com golpes de madeira e xenofobia por se tratar de um povo transfronteiriço. Ressaltamos que o indígena é indígena em qualquer lugar”, enfatizam os Guarasugwe.
Em 15 de maio de 2023, atendendo a pedido do MPF na ação civil pública nº 1002051-40.2022.4.01.4103, a Justiça Federal em Vilhena (RO) determinou à Funai a criação, em até 60 dias, de um grupo de trabalho para elaborar um Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCid) das terras do povo Guarasugwe. Conforme afirmou o MPF, a medida é um importante passo para acelerar o processo de demarcação, praticamente parado desde 2015 na Funai.
A decisão da JF-Vilhena determinava ainda o prazo máximo de 30 dias, contados da data da publicação da portaria, para ser instituído um plano de trabalho, com cronograma de atividades apresentado ao tribunal, e prazo de um ano para finalização do relatório. Todas essas etapas deverão contar com suporte da União, sob pena de multa diária no valor de R$ 2 mil.
Esperava-se que a decisão judicial permitisse acelerar a tramitação na Funai do processo SEI 08620.016006/2014-17. O procedimento está em estágio de qualificação – etapa inicial de todo o processo de demarcação –, que consiste em reunir, por meio de pesquisa de campo e documental, elementos de natureza histórica, sociológica, fundiária, etnográfica e ambiental.
Em 14 de julho de 2023, o MPF emitiu recomendação ao Município de Pimenteiras do Oeste para assegurar que os Guarasugwe tivessem acesso adequado aos serviços de atenção básica à saúde. Além da prefeitura, o documento foi dirigido à Secretaria Municipal de Saúde (SMS) para que fossem tomadas providências para solucionar os obstáculos que vinham dificultando o atendimento médico dessa população na rede pública municipal.
De acordo com o procurador da República Leonardo Trevizani Caberlon, autor da recomendação, representantes da comunidade guarasugwe informaram ao MPF que não eram atendidos de maneira adequada pela Casa de Saúde Indígena (Casai), em razão – como já mencionado em denúncias anteriores – de não possuírem território demarcado e residirem na área urbana de Pimenteiras do Oeste.
Segundo o procurador, o cenário de demora na emissão da documentação significava afronta ao direito à saúde. Como recomendado, a prefeitura de Pimenteiras do Oeste e a SMS teriam 30 dias para informar ao MPF acerca das medidas efetivamente tomadas para o cumprimento da recomendação.
Atualizada em novembro de 2023
Cronologia
1968 – Capitão Miguel ou Terékewé, liderança do povo Guarasugwe, é assassinado a mando de fazendeiros da região de Riozinho.
Década de 1970 – Com o avanço das frentes de colonização em curso, durante a ditadura militar brasileira, e com a extensão da pecuária e a grilagem da terra, os Guarasugwe são expulsos de Riozinho, perdendo seu território tradicional.
2012- Encaminhados à Funai e ao Ministério Público Federal (MPF) documentos solicitando o reconhecimento étnico e territorial dos Guarasugwe.
2013 – A Funai, por recomendação do procurador Henrique Felber do MPF em Ji-Paraná, emite a documentação de José Frei Leite Guarasugwe e se compromete, no ano de 2014, a emitir a documentação dos demais membros da etnia.
2013 – Por meio da Nota nº 423/PFE-FUNAI/PGF/AGU-GAB, a Procuradoria Federal Especializada junto à Funai (PFE/Funai) afirma reconhecer a procedência do pleito de cadastro no Registro Administrativo de Nascimento Indígena (Rani) de José Frei Leite Guarasugwe.
2013 – A Coordenação Geral de Promoção aos Direitos Sociais da Funai (CGPDS/DPDS) expede o Memorando nº 163/2013/COPS/CGPDS/DPDS/FUNAI-MJ informando que a Funai acata as recomendações do MP e vai emitir a documentação referente ao cadastramento tardio de José Frei Leite Guarasugwe.
23 e 25 agosto de 2013 – Os Guarasugwe e mais 20 povos e comunidades indígenas participam do II Encontro Nacional dos Povos Indígenas, em Santarém, oeste do Pará, e debatem sobre as principais demandas e lutas comuns.
12 e 13 de novembro de 2014 – 2° Encontro do Povo Guarasugwe ocorre na casa de José Frei Leite Guarasugwe para fortalecer a luta do povo pelo reconhecimento étnico e territorial.
Dezembro de 2014 – Cimi denuncia morosidade da Funai em reconhecer o povo Guarasugwe pelo Estado brasileiro, dificultando acesso à saúde e educação indígenas.
2015 – A emissão de Rani dos demais membros da etnia é oficialmente suspensa devido à fragilidade dos procedimentos de expedição, causando prejuízos e impossibilitando acesso aos serviços públicos.
11 de março de 2020 – Organização Mundial da Saúde (OMS) decreta pandemia global de covid-19.
23 e 26 de maio de 2020 – Reuniões entre os participantes da Assembleia Geral da Organização dos Povos Indígenas de Rondônia, noroeste do Mato Grosso e sul do Amazonas (Opiroma), em Rondônia, publicam carta de repúdio aos retrocessos do governo de Jair Bolsonaro em relação às políticas que garantem os direitos dos povos indígenas.
25 de fevereiro de 2023 – Agressões físicas e ameaça de morte contra Ângelo Mansilla Guarasugwe, em Pimenteiras do Oeste.
15 de maio de 2023 – Atendendo pedido do MPF na ação civil pública 1002051-40.2022.4.01.4103, a Justiça Federal em Vilhena (RO) determina à Funai a criação, em até 60 dias, de um grupo de trabalho para elaborar um Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação das terras do povo Guarasugwe.
14 de julho de 2023 – MPF emite recomendação ao Município de Pimenteiras do Oeste para assegurar que os Guarasugwe tenham acesso adequado aos serviços de atenção básica à saúde.
Fontes
ATO de covardia, um crime”: denuncia o povo Guarasugwe sobre agressão física e ameaça de morte contra Ângelo Mansilla. Conselho Indigenista Missionário – Cimi, 01 mar. 2023. Disponível em: https://bit.ly/3YEQbKT. Acesso em: 15 ago. 2023.
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