BA – Ambientalistas e comunidades tradicionais formam coalizão vitoriosa pela economia sustentável e a preservação do Parque dos Abrolhos e do estuário Cassurubá
UF: BA
Município Atingido: Caravelas (BA)
Outros Municípios: Caravelas (BA)
População: Caiçaras, Marisqueiras, Pescadores artesanais
Atividades Geradoras do Conflito: Atividades pesqueiras, aquicultura, carcinicultura e maricultura
Impactos Socioambientais: Alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território, Falta / irregularidade na autorização ou licenciamento ambiental, Invasão / dano a área protegida ou unidade de conservação, Poluição de recurso hídrico
Danos à Saúde: Piora na qualidade de vida
Síntese
Nos primeiros meses de 2004, o Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente de Caravelas (Condema) começou a receber denúncias de desmatamento de manguezais e a se preocupar com a perspectiva da exploração da carcinicultura (criação de camarões em cativeiro) na região. Uma das medidas então adotadas foi a de estabelecer limitações à atividade da carcinicultura em áreas de preservação permanente locais. Dois anos antes, a verificação da perda de reservas de caranguejos, pela ação de extrativistas não locais, começou a incutir nas comunidades de Caravelas e Nova Viçosa o desejo de criação de uma Reserva Extrativista (Resex) que lhes garantisse a sustentabilidade da subsistência, baseada na coleta e na pesca artesanal.
Em 2003, comunidades ambientalistas e de pesquisa vislumbraram as possíveis consequências da exploração petrolífera e do gás natural para a preservação da biodiversidade do complexo do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos (Parnam ou Parque /dos/ Abrolhos) e de toda a região costeira, considerada berçário e fonte de alimentos para muitas das espécies da sua fauna. Foi nessa circunstância e ano que a Coalizão SOS Abrolhos, conseguindo impedir a exploração de gás e petróleo na região, surgiu – reunindo várias ongs, redes ambientais, movimentos sociais e grupos de pesquisa.
O assunto da exploração petrolífera voltou à pauta, em março de 2009, em manifesto cobrando a implantação da Resex e a não exploração de blocos de petróleo e gás na Zona de Amortecimento do parque – o que em parte será atendido no decreto de 5 de junho deste ano. Atualmente, a coalizão está à frente da campanha "SOS Abrolhos: Pescadores e Manguezais Ameaçados".
Desde 2004, o Condema de Caravelas começou a solicitar ao Centro de Recursos Ambientais da Bahia (CRA) " atual Instituto do Meio Ambiente (IMA) ", órgão responsável pelo licenciamento ambiental no Estado, informações sobre eventuais projetos de carcinicultura que pleiteassem licenciamento para se instalar na região de Caravelas.
Em outubro de 2004, a empresa Cooperativa dos Criadores de Camarão do Extremo Sul da Bahia (Coopex) deu entrada no CRA ao pedido de Licença de Localização, equivalente à Licença Prévia, de uma fazenda de carcinicultura em Caravelas. Somente em agosto de 2005, o pedido veio a público, ao ser encaminhado para a anuência do Condema, do Parque dos Abrolhos e da Colônia dos Pescadores locais.
O ano de 2005 marcou o início do conflito envolvendo comunidades de pescadores, marisqueiros e catadores de caranguejo, entidades ambientalistas e movimentos sociais contra a tentativa de implantação do empreendimento de carcinicultura da Coopex, uma sociedade subsidiária do grupo português Lusomar, mas com investidores brasileiros no grupo de 26 associados. A fazenda de camarões ocuparia 1.500 hectares (à época, a maior área de um empreendimento de carcinicultura do Brasil), entre os canais estuarinos dos rios Macaco e Massangano, em Caravelas.
A área pleiteada para a instalação do empreendimento se sobreporia, entretanto, àquela reivindicada por comunidades de pescadores, de marisqueiros e entidades ambientalistas para a criação da Reserva Extrativista de Cassurubá. A Resex Cassurubá " uma área de preservação permanente sob responsabilidade da União " cumpriria ainda a a função de área de amortecimento do Parnam Abrolhos.
A concorrência dos projetos resultou numa série de conflitos jurídicos, marcados por audiências públicas, ações judiciais, ações civis públicas e outros procedimentos administrativos e políticos, além de campanha promovida pela Coopex, em parceria com a Prefeitura e a Câmara Municipal de Caravelas. As comunidades tradicionais, grupos ambientalistas e movimentos sociais denunciaram a campanha como tendo o propósito de desinformar a sociedade sobre as verdadeiras implicações do projeto.
Em 5 de junho de 2009, o governo federal publicou decreto do presidente Lula criando a Resex Cassurubá, numa área de 100 mil hectares entre Caravelas e Nova Viçosa.
Contexto Ampliado
Embora o processo já se encontrasse em análise no Estado, a comunidade local só tomaria conhecimento do projeto a partir da audiência pública, divulgada na rádio local, dez dias antes da sua realização. A audiência aconteceu em Caravelas em 10 de novembro de 2005, com cerca de 500 pessoas. Foram então apresentados o projeto, o Estudo e o Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) elaborados pela empresa Plama para o empreendedor. O EIA foi contestado pelas entidades ambientais e conservacionistas que atuam na região, e um grupo de profissionais de diferentes áreas organizou o Parecer Independente e questionamentos sobre o EIA-RIMA do projeto de Carcinicultura da Cooperativa de Criadores de Camarão do Extremo Sul da Bahia – Coopex.
Por conta das inconsistências no processo de licenciamento, o Ministério Público do Estado da Bahia (MPE) entrou com ação civil pública (ACP), solicitando a suspensão do processo de licenciamento. Como resultado, em março de 2006, o juiz da comarca de Caravelas determinou, por meio de liminar, a suspensão de todas as fases do processo de licenciamento ambiental do empreendimento. A liminar foi cassada no mês seguinte pelo Tribunal de Justiça do Estado e o projeto voltou à pauta do Conselho Estadual de Meio Ambiente da Bahia (Cepram). O Cepram aprovou a Licença de Localização do empreendimento no dia 19 de maio do mesmo ano. Entretanto, o Ibama havia publicado a portaria nº 39, três dias antes, estabelecendo a Zona de Amortecimento (ZA) do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos.
A portaria nº 39 ampliou a proteção da região do entorno do Parque dos Abrolhos e estabeleceu que quaisquer empreendimentos que afetassem a sua Zona de Amortecimento estariam sujeitos às exigências específicas no âmbito do licenciamento ambiental, a serem definidas pelo Ibama.
Em maio de 2006, a Coalizão SOS Abrolhos, Pescadores e Marisqueiras de Caravelas entregaram à ministra Marina Silva a Carta de Cabrália, pedindo a criação da Reserva Extrativista de Cassurubá. Poucos dias depois, os senadores do Espírito Santo João Batista Motta (PSDB), Magno Malta (PL) e Marcos Guerra (PSDB), e os senadores pefelistas baianos Antônio Carlos Magalhães , César Borges e Rodolpho Tourinho buscaram a edição de um Decreto Legislativo (projeto DL 328/06) que anulasse a portaria nº 39 do Ibama. Entre os meses de outubro e novembro de 2006, o então governador da Bahia Paulo Souto tentou derrubar a ZA do Parque de Abrolhos, com mandado de segurança contra o presidente do Ibama à época. Em agosto de 2007, a gestão das unidades de conservação federais passou a ser atribuição do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). O objetivo dos senadores e do governador não foi alcançado.
Lembra contudo Omar Nicolau que, distintamente do veto da Portaria 39 à prospecção de petróleo e gás natural , o instrumento da ZA em si não seria garantia suficiente para impedir a instalação de empreendimentos como o da carcinicultura. A criação da Resex seria portanto a medida necessária para dar segurança jurídica à proteção da região estuarina formada por manguezais, restingas, lagoas e nascentes, que, com o arquipélago dos Abrolhos, compõem complexo ecossistema. Segundo a ong Conservação Internacional, esta é a região [marinha] com a maior biodiversidade registrada no Atlântico Sul e a área mais piscosa da Bahia.
Paralelamente à disputa legal, os pescadores da região denunciaram a prefeitura e a Coopex pela promoção de uma campanha de desinformação sobre o empreendimento, inclusive com a pressão sobre funcionários (especialmente professores da rede pública municipal) para que evitassem comentários ou debates sobre o assunto. Os adversários da reserva extrativista estariam se aproveitando do debate em torno da efetividade jurídica da Zona de Amortecimento, da morosidade e indefinição sobre a criação da Resex, para, frente à carência de certezas e informações da comunidade local, melindrar as expectativas sobre as possibilidades de proteção da área. O apelo à geração de empregos, utilizado na estratégia adversária à Resex, foi também denunciado pelos movimentos socioambientais como falacioso – se chegou a prometer entre 1500 a 3000 postos de trabalho, estimativa proporcionalmente incompatível com as experiências de empregabilidade do setor, em número muito inferior ao propagandeado.
Em 29 de maio de 2007, o Ministério Público Federal em Ilhéus ajuizou ação civil pública requerendo, à justiça federal em Eunápolis, a concessão de liminar para suspensão do licenciamento do projeto da Coopex. A procuradora da República Fernanda Oliveira solicitava na ação que o Ibama assumisse o licenciamento, adotando as medidas necessárias para a correção das irregularidades e o cancelamento das licenças já concedidas. Em julho de 2007, o juiz federal Ailton Schramm de Rocha concedeu liminar suspendendo a continuidade do licenciamento ambiental.
Paralelamente à atuação jurídica do MP, entidades e apoiadores realizaram consultas e audiências públicas para denunciar os impactos ambientais e sociais da carcinicultura e promover as condições para a criação da Reserva Extrativista de Cassurubá. A Câmara de Vereadores de Caravelas chegou a impetrar ação para impedir a realização da consulta pública marcada para 20 de novembro de 2007. A tentativa dos vereadores de Caravelas não foi acolhida pela justiça.
Em documento que relatava a realidade da carcinicultura na Bahia, a Rede MangueMar lembrava que
as fazendas de camarão instaladas na Bahia tiveram sua implantação e expansão amplamente financiadas por investimentos públicos, oriundos tanto do BNDES, como do Banco do Nordeste, sem que fosse verificado o respeito às normas ambientais vigentes e os impactos negativos sobre os ambientes de uso comum geradores de trabalho e renda para grande parcela da população costeira.
[Nicolau lembra também que a atividade da carcinicultura na Bahia era também fomentada pelo Programa de Desenvolvimento da Aquicultura e da Pesca, da Bahia Pesca S/A, empresa ligada à Secretaria de Agricultura, Irrigação e Reforma Agrária do Estado da Bahia.]
O caso da Coopex-Resex se insere num contexto de conflito pelo domínio sobre um território de uso tradicional e comum. De um lado estão as demandas coletivas das comunidades tradicionais das regiões litorâneas da Bahia e do Nordeste brasileiro, e do outro o negócio da criação de camarões que chegam aos pratos dos consumidores sem que estes façam a menor ideia dos impactos, injustiças e degradação causadas ao próprio sistema natural de onde os camarões provêm.
A falta de lideranças políticas e intelectuais nestes menores ou maiores rincões torna os representantes e administradores públicos reféns da primeira oferta generosa de apoio (de toda ordem) e de alguma possibilidade de geração de emprego e renda para as comunidades desassistidas. As comunidades invisíveis que sempre viveram, comeram e pisaram o sal da terra são colocadas em segundo plano, como se os seus valores pouco significassem e sua sabedoria nada representasse para as mentes vazias de boa parte dos mandatários públicos.
Contudo, mesmo com os esforços das elites oligárquicas da Bahia e do Espírito Santo, Abrolhos e Cassurubá demonstram que uma coalizão de entidades ambientalistas e comunidades tradicionais, apoiadas pela ação determinada do Ministério Público, conseguiu atingir um tento importante, ao ser decretada a Resex sonhada e defendida por muitos.
Certamente, a forte presença do monumento natural, dos Abrolhos terá sido fundamental para a decisão do governo federal. Mas essa presença também auxiliou a chamada e articulação de movimentos locais, estaduais, e de expressão nacional e internacional na determinação de se empreender uma coalizão socioambiental – que juntou defesa da biodiversidade defendida com o reconhecimento de um modo de vida que com ela convive harmônica e respeitosamente. Dependesse da aliança conservadora antes hegemônica na Bahia, o significado socioambiental do bem e fazeres protegidos não teria sido suficiente para conter os compromissos político-econômicos que tentaram de diferentes formas inviabilizar a implantação da Zona de Amortecimento do Parque dos Abrolhos e da Resex que vem reforçar sua segurança jurídica e a sustentabilidade dos comunitários.
Consideremos ainda que a vontade e missão enobrecida pela atuação de um conselho local o Condema foi fundamental para a consolidação da força e da intenção política que agiu em defesa do Parque e da sua ZA. Tal foi o sentido da Resolução Normativa Condema n°12/2004, que regulamentou as atividades de carcinicultura em Caravelas, dispondo sobre os limites de Áreas de Preservação Permanente (APP). Conforme lembra Nicolau, em 14 de dezembro de 2005, o prefeito de Caravelas, numa atitude inédita, presidiu a reunião do Condema que alterou a resolução nº 12/2004, reduzindo os empecilhos à atividade da carcinicultura, particularmente da Coopex, nas APPs do município. Antes de colocar a votação da alteração da resolução em pauta, o Sr. Prefeito municipal destituiu duas instituições locais da composição do Conselho e instituiu uma associação exonerada em 2003. Nesse mesmo período, acrescenta Nicolau, uma campanha de difamação é inaugurada (…) diretamente contra o Ibama, na pessoa de um analista ambiental, e indiretamente contra todo o movimento ambientalista. A coalizão prefeitura-Coopex intenta, inclusive divulgando informações por vezes distorcidas, atravancar o processo de criação da UC – [Resex/ZA].
Basicamente as frentes de luta neste episódio se resumiram (1) à tentativa de criação da Resex visando a manutenção da exploração do estuário de Caravelas pelas comunidades tradicionais (350 famílias, além de uma comunidade de cerca de 20 mil pessoas que vivem da fauna marinha que cresce e se alimenta neste estuário) e (2) a luta pela suspensão do licenciamento ambiental do empreendimento carcinicultor por parte do Ministério Público (Estadual e Federal) e do Ibama/ICMBio, que, no caso em questão, tiveram uma conduta exemplar – desde o corpo técnico à direção do órgão, que não cedeu às chantagens e pressões políticas.
Anunciada em janeiro de 2008, a criação da Resex de Cassurubá esperou 16 meses para se tornar realidade. Essa demora talvez sugira a hesitação governamental na fixação de áreas demarcadas para exploração exclusiva de quilombolas, indígenas e comunidades tradicionais, quando estas se chocam com interesses econômicos hegemônicos e presentes nas alianças de governabilidade. Tradicionalmente, os chefes do executivo tendem a protelar ao máximo a publicação de portarias e decretos de demarcação de terras, tendo em vista o objetivo de evitar os efeitos políticos negativos desses processos junto aos grupos de interesse dominantes.
A vitória da criação da Resex, que poupou 75% da Zona de Amortecimento do Parque dos Abrolhos da exploração petrolífera e do gás natural, deve ser comemorada, mas não é motivo para acomodação diante das novas tentativas de usurpação que já estarão em curso, especialmente nos lugares que não asseguraram juridicamente as conquistas decorrentes de uma conjunção de forças.
Última atualização em: 25 de novembro de 2009
Fontes
Cronologia dos acontecimentos recentes no Complexo dos Abrolhos. http://www.redmanglar.org/imagesFTP/5918.Cronologia___ZA_RESEX_Coopex.pdf
RÉGIS, Mayron. Comunidade e autoridades participam de Consulta Pública decisiva para a criação de Reserva em Abrolhos.
AMBIENTE BRASIL. Justiça federal suspende licenciamento de empreendimento de carcinicultura em Caravelas/BA. Disponível em: http://noticias.ambientebrasil.com.br/noticia/?id=32502. Acesso em: 04 nov. 2008.
Região de Abrolho ameaçada por megaempreendimento de criação de camarões (27/04/2006). http://www.agenciacosteira.org.br/downloads/artigos/carcinicultura_abrolhos.pdf
Abrolhos ameaçado por empreendimento de carcinicultura (27/04/2006). http://www.conservation.org.br/noticias/noticia.php?id=162
MPF/BA quer que Ibama assuma licenciamento de carcinicultura em Caravelas (26/01/2007). http://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias-do-site/meio-ambiente-e-patrimonio-cultural/MPF-BA-quer-que-Ibama-assuma-licenciamento-de-carcinicultura-em-Caravelas
MPF/BA: suspenso licenciamento de carcinicultura em Caravelas (23/07/2007). http://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias-do-site/meio-ambiente-e-patrimonio-cultural/mpf-ba-suspenso-licenciamento-de-carcinicultura-em-caravelas-ba/
Ativistas fazem protesto em defesa de Abrolhos na ANP em Salvador (11/02/2009).
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NICOLAU, Omar. Ambientalismo e carcinicultura: disputa de verdades e conflito social no extremo sul da Bahia
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Portaria Ibama nº 39/2006. http://arruda.rits.org.br/oeco/reading/oeco/reading/pdf/abrolhos_portariaZA39.pdf
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Governo libera R$ 450 mil para Resex de Cassurubá (09/05/2009).
http://www.corredoresecologicos.ba.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=79:resex-cassuruba&catid=10:textos&Itemid=10