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Breves considerações conceituais e metodológicas sobre o Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil

[Este texto se refere ao Mapa de Conflitos na versão inicial, disponibilizada na internet em 2010, com 297 casos.]

Um primeiro aspecto do Mapa, de natureza conceitual e política, diz respeito ao seu foco principal. Nosso objetivo não se reduz a listar territórios onde riscos e impactos ambientais afetam diferentes populações, mas sim tornar públicas vozes que lutam por justiça ambiental de populações frequentemente discriminadas e invisibilizadas pelas instituições e pela mídia. Muitos casos mostram como tais populações são ameaçadas e vítimas de violência quando buscam exercer sua cidadania, ao defenderem seus direitos pela vida, que incluem o território, a saúde, os ecossistemas, a cultura e a construção de uma sociedade mais humana, saudável e democrática. A prática de uma ciência cidadã adotada neste projeto assume uma posição ética solidária com tais populações, reconhecendo que os problemas e conflitos apresentados são complexos e exigem soluções de curto, médio e longo prazo, incluindo mudanças estruturais nos sistemas de produção e consumo das sociedades capitalistas modernas, bem como nas políticas públicas e práticas das organizações.

O conceito de promoção da saúde acoplado ao de justiça ambiental que assumimos implica em incorporar a defesa dos direitos humanos fundamentais, a redução das desigualdades e o fortalecimento da democracia na defesa da vida e da saúde. Isso engloba, igualmente, o direito à terra, a alimentos saudáveis, à democracia, à cultura e às tradições, em especial das populações atingidas frequentemente vulnerabilizadas e discriminadas. Ou seja, nossa concepção de saúde e ambiente transcende as variáveis do saneamento básico, da contaminação ambiental por poluentes e das doenças e mortes decorrentes desses fatores. Ela está intimamente associada à noção de justiça ambiental e seus movimentos, conforme apregoado no Manifesto de Lançamento da Rede Brasileira de Justiça Ambiental*.

Portanto, defender e promover a saúde significa não somente a construção de ambientes mais saudáveis, mas de uma sociedade mais fraterna, mais igualitária em que a dignidade humana seja intocável. Tais objetivos são abalados quando investimentos econômicos, políticas e decisões governamentais acabam por prejudicar os direitos fundamentais de comunidades indígenas e quilombolas, agricultores familiares, pescadores artesanais, comunidades tradicionais diversas, mas também trabalhadores e moradores das cidades que vivem nas “zonas de sacrifício”. Nesse sentido, os casos selecionados revelam situações decorrentes de um modelo de desenvolvimento cujos empreendimentos – sejam eles indústrias petroquímicas, hidrelétricas, agronegócio para exportação, hotéis “ecológicos” de luxo ou aterros sanitários – desprezam a vida de inúmeras populações que habitam seus territórios. As políticas intersetoriais que poderão alcançar os objetivos de reverterem tais vulnerabilidades e promoverem saúde são, em nossa concepção, fundamentais para a construção de uma sociedade socialmente justa e ambientalmente sustentável.

Coerente com tais premissas, o mapeamento dos conflitos ambientais realizado tem por foco a visão das populações atingidas, suas demandas, estratégias de resistência e propostas de encaminhamento. O estudo não desenvolveu trabalhos e avaliações de campo que aprofundassem, do ponto de vista técnico-científico, os detalhes dos impactos ambientais e à saúde. As informações destacadas no casos revelam posições assumidas por parcela expressiva das populações atingidas, seja a partir de suas experiências, seja a partir de relatórios e artigos desenvolvidos por entidades, ONGs e instituições parceiras, inclusive grupos acadêmicos, instituições governamentais, Ministérios Públicos ou órgãos do judiciário. O fato de tais posições serem muitas vezes contraditórias com as versões apresentadas por outras instituições ou empresas envolvidas expressa, mais que o grau de incertezas e falta de informações existentes, o nível de conflito e de dificuldades no encaminhamento de soluções que atendam aos interesses legítimos das populações atingidas. Ao privilegiarmos a visão de tais populações, buscando não cair em reducionismos ou denúncias inconsequentes, estamos contribuindo, acreditamos, com o papel de dialogar com a sociedade e transformá-la para que sejamos mais democráticos, sustentáveis e saudáveis.

As fontes de informação privilegiadas e sistematizadas nos casos apresentados seguiram essa orientação e provêm, em grande parte, do acúmulo da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA), incluindo a experiência de suas entidades, suas discussões e seus Grupos de Trabalho. Dentre eles destacamos o GT Químicos e o GT Racismo Ambiental, sendo deste último o levantamento inicial, baseado no Mapa do Racismo Ambiental no Brasil. Parcela dos documentos que circulam na RBJA e seus GTs encontram-se disponibilizadas no Banco Temático, ferramenta construída pela Fiocruz e Fase acessível na internet que permite a busca e consulta de documentos.

Além disso, a construção dos casos incorporou a experiência de vários parceiros, como grupos acadêmicos e entidades que vêm atuando nos movimentos por justiça ambiental no país. Somente para citar alguns exemplos, destacamos: o Mapa dos Conflitos Ambientais no Estado do Rio de Janeiro construído pelo IPPUR/UFRJ; o Mapa dos Conflitos Socioambientais da Amazônia Legal, organizado pela Fase Belém; os dados constantes da Nova Cartografia Social, organizada pelo pesquisador Alfredo Wagner; trabalhos realizados por universidades e centros de pesquisa como o Gesta/UFMG, UFCE, UFBA, UFMT e UFMS, dentre outros; os relatórios da Plataforma DESCH sobre direitos humanos, em especial a Relatoria de Meio Ambiente; e as contribuições de inúmeras ONGs e fóruns atuantes na justiça ambiental e na própria RBJA. Tais fontes foram complementadas pelo acesso a informações da mídia ou de instituições, incluindo Ministérios Públicos e a Justiça, quando envolviam informações sobre ações ou processos em andamento.

A proposta inicial foi de levantar casos de conflito em todos os estados brasileiros, com uma média de 15 conflitos por estado; chegamos a números que vão desde cinco até 30, dependendo da intensidade de conflitos, sua extensão e mobilizações. Por exemplo, estados como Roraima e Sergipe possuem um número de casos bem menor que os levantados em estados como Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo.

O levantamento teve como recorte denúncias existentes desde janeiro de 2006, mesmo que suas origens fossem anteriores a essa data. Para o fichamento dos casos, foram considerados, entre outros, os seguintes itens:

– o tipo de população atingida e o local do conflito, como: povos indígenas, operários/as, quilombolas, agricultores/as familiares, moradores/as em encostas, ribeirinhos/as, pescadores/as e outros/as tantos/as, urbanos ou rurais;

– tipo de dano à saúde (contaminação por chumbo, desnutrição, violência física, dentre outros) e de agravo ambiental (desmatamento, queimada, contaminação do solo e das águas por agrotóxicos, por exemplo);

– a síntese do conflito e o contexto ampliado do mesmo, apresentando os principais responsáveis pelo conflito, as entidades e populações envolvidas na luta por justiça ambiental, os apoios recebidos ou não (como participação de órgãos governamentais, do Ministério Público e de parceiros da sociedade civil), as soluções buscadas e/ou encontradas;

– os principais documentos e fontes de pesquisa usadas na pesquisa sobre o caso.

Inicialmente as informações trabalhadas foram inseridas pelos pesquisadores num banco de dados criado a partir de um programa do DataSus, o FormSus. À medida que cada estado era considerado fechado, o material era enviado para “validação” por um pesquisador ou uma pesquisadora local – acadêmico ou militante de movimentos sociais e ONGs -, que teve a incumbência de criticar a pesquisa realizada, complementando-a ou corrigindo dados, se necessário. Cumprida essa etapa, as fichas aprovadas foram encaminhadas para editoração e padronização, para então serem inseridas no banco de dados que alimenta o Mapa em sua disposição final na internet. Esta ferramenta foi criada por uma equipe técnica do ICICT/Fiocruz especializada no georreferenciamento de informações sobre saúde, utilizando-se do GoogleEarth como plataforma auxiliar de localização espacial dos territórios onde os casos estão inseridos.

Os casos sistematizados até o momento não esgotam as inúmeras situações existentes no País, mas refletem uma parcela importante nos quais populações atingidas, movimentos sociais e entidades ambientalistas vêm se posicionando. As informações nele contidas devem ser vistas como dinâmicas e em processo de aperfeiçoamento, na medida em que novas informações e situações possam, na continuidade do projeto, aprimorar, corrigir e complementar o presente resultado. Portanto é importante ressaltar que não consideramos o Mapa “fechado”. Muito pelo contrário, ele é o momento inicial de um novo espaço para denúncias, para o monitoramento de políticas públicas e, ainda, de desafio para que o Estado, em seus diversos níveis, responda às necessidades da cidadania, respeitando e implementando a Constituição Federal. A partir deste momento, ele pertence a todos nós.